Coluna da Isabelle Moreira Lima: Férias sem milhagem — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Férias sem milhagem

Da Argentina a Portugal, um relato de férias com pouco deslocamento mas muita descoberta

14 de Julho de 2021

Tirei férias, um mês, um privilégio no Brasil de 2021. Quem, em plena pandemia e com a CLT agonizando, consegue um mês de descanso remunerado? Nem sei há quanto tempo isso não me acontecia e peço desculpas adiantadamente porque este é um pouco um relato no estilo “minhas férias”. Mas com um twist — lemon twist, como é bom no copo.

Sem possibilidade de encarar qualquer tipo de viagem física, e imersa em caixas de papelão de uma mudança, resolvi cabotinamente abraçar minha sugestão e viajar ao centro da taça. Aceitei todo e qualquer convite para degustar vinhos direto do conforto do meu lar. O Zoom foi o meu passaporte.

*

Há mais de um ano, quando a pandemia começou, o mercado de comida e bebida penou para se reinventar. No vinho, logo começaram as degustações online, em que amostras de vinhos de uma região, de um estilo específico ou de um produtor eram enviadas para os especialistas, que provam ao mesmo tempo, unidos por uma apresentação em videoconferência, e tiram suas dúvidas direto com quem fez a bebida.

O Zoom foi o meu passaporte: sem possibilidade de encarar uma viagem física, aceitei todo e qualquer convite para, do conforto do lar, provar vinhos

A coisa se profissionalizou de tal modo que em alguns casos recebemos itens para harmonizar. Na comemoração de aniversário da vinícola portuguesa Pedra Cancela, do Dão, provei seu icônico Intemporal com um prato de bacalhau — no escritório da minha casa. Em uma degustação do Domaine Rolet, produtor do Jura, uma das regiões mais badaladas entre os enófilos cool do momento, provei seu delicioso branco Savagnin com queijo. Na região, o queijo tradicional é o Comté, cujas vacas “roubam” espaço dos vinhedos (a área restrita é disputada a tapas entre os produtores das duas iguarias), tornando a produção dos vinhos ainda menor, rara e cara. Sabendo de todo esse contexto, me senti na sala da produtora degustando suas delícias.

*
Nestes meus 30 dias de férias, fui a duas regiões argentinas, duas portuguesas e dei um pulinho no Uruguai.

Começando pela Argentina, conheci mais sobre Salta, localidade ao norte do país que tem vinhedos de altitude e uma estrada desértica belíssima que leva aos vinhedos. É lá que brilha uma variedade para a qual nunca dei muita bola e com a qual sempre fiz piada por seu caráter extremamente floral, a Torrontés. (Quem se lembra da Primavera de Vivaldi como trilha dos sabonetes Vinólia? Pois bem, essa uva não te deixa esquecer.) O Torrontés da Colomé é sim um imenso bouquet de flores brancas e parece que vai te cobrir de torrões de açúcar, mas na boca ele é outra brincadeira: tem acidez para dar e vender, é super-seco e quase salino, delicioso e muito chique.

Nestes meus 30 dias de férias, fui a duas regiões argentinas, duas portuguesas e dei um pulinho no Uruguai

Também provei um Malbec de Salta e fiquei passada sobre como é diferente dos de Mendoza: a insolação, que é altíssima por ali (deserto, afinal), faz com que a uva tenha uma concentração imensa, o que no vinho se traduz em cor profunda e muito álcool. O Malbec Yacochuya 2016 tem inacreditáveis 16 graus de álcool.

Desci até Mendoza e, mais especificamente, ao Valle de Uco, onde conheci a vinícola Alfa Crux. Lá eles plantam não só no sistema de espaldeiras, mas em pérgola e no chamado vaso também, muito comum na Europa. A vinícola foi comprada por um novo grupo e hoje tem um jovem enólogo à frente de sua produção, fazendo vinhos muito vibrantes. O seu Tempranillo (uva espanhola que não tem fama na Argentina) de R$ 100 me deixou mais animada que o Malbec de R$ 500, feito pela antiga gestão e cheio de madeira. Fica aqui a lembrança de que preço não é garantia de felicidade no mundo do vinho.

Do Uruguai, provei um Tannat fresquíssimo, de piscina quase. (Aqui, aproveito para falar sobre a expressão — linda! — de “vinho de piscina”, que é usada para os vinhos levinhos, que não precisam de comida para acompanhar). Ele era totalmente diferente do que se pensa quando se fala na Tannat e é feito pela Alto de la Ballena, em Maldonado, vizinha de Punta del Este. A Tannat costuma fazer vinhos pesados, cheios de tanino (daí o nome), com uma adstringência louca que parece grudar uma lixa na boca, com muito álcool, muita cor, muito tudo. Com um Tannat diferente de tudo isso, me imaginei dando um rolê pelo litoral, pé descalço, taça na mão.

Cruzando o oceano, Portugal raramente decepciona. No norte está o Douro, uma das paisagens mais lindas do mundo, um rio imenso e sinuoso, ladeado por vinhedos em socalcos, como são chamados seus patamares em degraus. De lá provei os vinhos — e me senti uma visitante — da Quinta do Vallado, construída em 1716 por uma pioneira mítica da região, D. Antónia Adelaide Ferreira (1811-1896). Chamaram atenção o Vallado Tinto Superior 2018, um orgânico muito floral e com um pezinho na Borgonha por sua elegância, e o Vallado Reserva Field Blend Douro Tinto 2017. Este último traz a marca mais tradicional duriense, que é o corte no campo: o blend das uvas que compõem o vinho é feito não depois da fermentação delas, mas no campo, onde diferentes variedades são plantadas juntas, num mesmo vinhedo, para que a natureza se encarregue da mistura ideal. Parece magia, mas é tecnologia centenária, de uma beleza sem tamanho.

Opa, e faltou falar do branco, o Vallado Reserva Douro Branco 2019. O norte de Portugal não é conhecido por seus brancos tradicionalmente — o lance ali é vinho do Porto desde sempre. Mas são eles que têm atraído atenção internacional, especialmente de críticos renomados, porque conseguem ter elegância, complexidade de aromas, acidez, cremosidade, e ainda serem diferentes do que é produzido no resto do mundo. Minha profecia é que no futuro todo mundo vai achar meio curioso que os tintos é que eram a preferência.

Por fim, encerrei minha jornada no Alentejo, região mais ao sul do país e cuja paisagem lembra o cenário dos Teletubbies. A Vinhos do Alentejo, a associação de produtores da região, acaba de lançar um selo de sustentabilidade que certifica as vinícolas que seguem boas práticas como a substituição de herbicidas por morcegos (há casinhas para eles espalhadas ao longo dos vinhedos); a criação de ovelhas, cuja ação funciona para fertilizar o solo; e faz reuso de água de maneira mais eficiente, entre outras. A história é legal, não tem muito papinho pra boi dormir (eles admitem que o interesse é também econômico porque, se essas práticas são caras para serem implantadas, no longo prazo são muito mais baratas) e os vinhos são deliciosos. O Coelheiros 2018 Branco, da Herdade dos Coelheiros, é redondo tal qual a Terra e cremosíssimo; e o Herdade dos Grous 2018 é um néctar de fruta negra madura com especiarias (uma boa pimentinha preta da Syrah que se dá muito bem por lá).

Passado este afortunado mês de descanso, se minha milhagem ficou baixa, minha litragem não parou de crescer. Não vejo a hora de pôr o pé na estrada mais uma vez.

Saca essa rolha

PARA CONHECER SALTA
Sem dúvida o Torrontés da Colomé vale a prova e vai limpar a reputação da casta (se é que ela estava manchada para você como estava para mim). Os vinhos da Almalaya são bem distribuídos e apresentam novas possibilidades para a Malbec.

PARA PROVAR UM POUCO DO VALLE DE UCO
A Alfa Crux é um projeto moderno e arrojado que tem uma linha de entrada que é um verdadeiro achado em termos de preço, por volta dos R$ 50. Chama Urban e é importado pela Inovini. Fique de olho!

PARA VISITAR O LITORAL URUGAIO
O Alto de la Ballena faz vinhos com muito cuidado e, além do delicioso Tannat, vale provar também o exuberante Viognier. Ambos (e outros) estão na Evino. Indico ainda a gigante Garzon, importada pela World Wine, e seu delicioso Albariño da mesma região litorânea de Maldonado.

PARA INICIAR-SE NO DOURO
Aqui é até difícil de saber por onde começar tantos são os produtores incríveis. Vou por preço, os rótulos de entrada das quintas do Crasto e do Vallado, que no Brasil é importado pela Grand Cru, valem demais: Flor de Crasto e Quadrifolia.

PARA PROVAR O ALENTEJO
Luís Duarte é um grande enólogo da região, que faz os vinhos dos Grous e tem sua linha independente, o Rapariga da Quinta. Todos muito macios e frutadíssimos. Gosto demais também dos vinhos do Esporão, que são deliciosos a partir da linha Monte Velho, de preço mais amistoso. Valem o branco e o tinto. Tanto Rapariga quanto Monte Velho são vendidos em supermercados.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação