Coluna da Letrux: Sábado é sempre um pouco pior — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Sábado é sempre um pouco pior

Sentia, sentia, sentia e gastava no show. A catarse cênica me catapultava para um estado de prazer e torpor, que me ajudava a seguir

28 de Abril de 2021

Nem é bom pensar mas se aqui fosse a Nova Zelândia, eu agora estaria fazendo um show. Sábado, quase meia-noite, lua cheia em escorpião, não estou bem. Quem está? Era pra agora eu estar suando consideráveis gotas. Eu era craque em chorar dores no palco, era até meio viciada nesse ciclo de transformação. Sentia, sentia, sentia e gastava no show. A catarse cênica me catapultava prum estado de prazer e torpor, que me ajudava a seguir. Não tenho mais show pra isso. Aqui não é a Nova Zelândia. Não sei quando vou me vacinar. Sábado é sempre um pouco pior.

Brasil, segundo ano da pandemia. Bolsobosta continua me causando dores estomacais e incredulidade máxima. Oscilo entre querer saber sobre festivais de shows na Nova Zelândia com mais de 30 mil pessoas, saber que Nova York aprovou a proposta que legaliza o uso de maconha ou ler as notícias aterrorizantes do meu próprio país. Entre isto ou aquilo (mas incapaz de ter aquilo e detestando o isto), tenho optado pelo delírio. Sempre fui boa nessa arte. Mas a utilização do delírio era sempre nos intervalos da vida capitalista que exigia um bocado. Não que ainda não exija, opa, não chegamos ainda nesse delírio máximo. Não há show, mas ainda há contas. Porém, agora que não estou mais trabalhando, estou numa nuvem perigosa de devaneio constante.

Muitas pessoas continuam com seus trabalhos só que dentro de casa. Meu trabalho envolvia aglomeração. Um show é feito por muitas pessoas. Com sorte, muitas pessoas tanto nos bastidores quanto na plateia. Na pandemia não há mais tal coisa. (A não ser que você seja um alienado com zero empatia). Há as lives, que sem dúvida me trouxeram noites alegres. Tanto fazer, quanto ver. Mas não estou mais trabalhando, sinto isso. Arrumo alguns freelas que envolvem outras questões mas minha maior alegria, minha cachaça, minha loucura, minha cura, meu trabalho principal, não. Não estou mais fazendo show. Sábado é sempre um pouco pior.

Durante a semana, por mais que os dias não obedeçam ordens externas (meu calendário é totalmente inventado visto que não tenho um trabalho formal), ainda sigo uma ordem doida que o mundo impõe. E tenho muitas lembranças de sábados com shows. Sábado era o cume. Segunda era meu domingo, voltava de viagens, mil aeroportos, e às vezes ia à praia ou ao cinema. Comia fora também. Restaurante vazio, um sonho. Terça é o dia que nasci, não que isso sirva pra nada, mas sempre foi um dia mini alegre pra mim. Dolce far niente. Quarta e seu peso de metade da semana, me deixava em alerta para qualquer problema: banco, consertos, lavar roupas, cuidar da casa. Quinta já era um dia de partir pra estrada de novo. E fazer um show ou chegar numa cidade pra conhecer (Manaus e Belém foi assim. Que saudade de conhecer um lugar inédito), já que o show seria na sexta-feira. Mesmo com show quinta ou sexta, sábado tinha peso. Ainda tem. É tudo ruim na pandemia, mas sábado é sempre um pouco pior.

É tudo ruim na pandemia. Se não há vacina pra mim, opto por outra cura: o delírio

A galera da psicanálise (um beijo pra essa galera importante) considera o delírio, um fenômeno elementar. E também uma tentativa de cura, o delírio como portador de uma verdade. Me adequo. Se não há vacina pra mim, opto por outra cura: o delírio. Cumpro com as funções do dia (há dias de miojo e ovo, claro), mas passo boas horas de pura inutilidade social. Apenas delirando. “E se eu ganhasse na loteria, e se eu viajasse agora pro Taiti, e se eu morresse agora o que aconteceria?” Horas. Delírios desse nível e de outros que tenho pudor em dividir. Poderia estudar uma língua, poderia ver um filme clássico que estou querendo há meses, poderia começar a ler “Guerra e Paz” que estou empurrando com a barriga desde que fiz 20 e poucos. Mas não. Na falta de vida, ou melhor na falta de show (porque vida, há. Não do jeito que queremos e amamos, mas há), me coloco em posição quase fetal na cama e sonho de olho aberto.

Sonho muito de olho fechado também. No livro “O Oráculo da Noite”, Sidarta Ribeiro escreve que “Sonho é uma simulação do futuro. Quando pressionado presto atenção nele e tenho boas respostas”. Dormir tem sido quase a melhor hora do dia. As notícias de mortes, fome e desemprego me assombram num ponto tão pericliante. Tenho delírios assassinos também com a familícia do presidente. (Ainda não te parece inacreditável esse monstro ser presidente?). Dormir tem sido bom. Sou privilegiada com casa e comida. E também estou perto da natureza nesse isolamento. Privilégio ao cubo. Mas ainda assim a vida é pantanosa nesse governo genocida, e quando sonho, ninguém usa máscaras (houve um ou dois sonhos que a pandemia existia). Não te disse que eu era boa em delirar?

Não tem vacina. Mas tem delírio. Vocês me aguardem em 2022. Que todos os nossos delírios se tornem reais

Ainda não trouxe tanto o caos aqui de fora pro cosmos aqui de dentro. Tive sim, uns pesadelos envolvendo morte. Mas de 365 dias, ainda acho a conta boa. Gosto dessa simulação biruta que a mente faz. Toda noite me espanto com meu parceiro antes de dormir “Como pode? Vamos morrer umas oito horinhas e daqui a pouco vamos voltar? Como isso não é real? Claro que é.” E quando acordo escrevo ou digito histórias mirabolantes do que aconteceu comigo. E sinto que sim, ACONTECEU COMIGO. É isso então, Sidarta? São simulações do futuro? De olhos abertos também gosto de visualizar a impressão. Lembra desse botão? Antes de imprimir uma página, você clicava nesse botão pra ver como a página vai ficar. Você era do tipo que visualizava ou saía imprimindo? Ah, eu visualizava. E acho que aí está minha mania de delirar.

Sou boa pra fila do banco ou pra tirar o lixo do banheiro, não fujo das responsabilidades adultas só porque deliro. Não sei como consigo, mas só sei que consigo. De olhos fechados ou abertos, com substâncias ou sem substâncias. Não tem vacina. Mas tem delírio. Vocês me aguardem em 2022. Que todos os nossos delírios se tornem reais.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação