“O saber da ignorância conduz ao indizível.”
Nicolau de Cusa
Eu nasci no Brasil dos anos 60, em plena ditadura militar. Me lembro pequeno na escola cantando o hino nacional, vestido de verde e amarelo, assistindo a parada de 7 de setembro. Naquela época, ser patriota era ser obediente em nome da ordem e do progresso. Mais tarde, nos anos 80, participei do movimento das Diretas Já e me vi lutando pela construção de um país livre e democrático que passamos a sonhar. Eram tempos em que a direita pregava a obediência servil, enquanto a esquerda a desobediência civil.
Só que o mundo se tornou muito mais complexo do que nossa visão maniqueísta de bipolaridade. Antes era fácil distinguir as pessoas pelo seu posicionamento em relação a alguns temas chaves; hoje a realidade nos desafia a saber onde estamos num mundo que se apresenta polidimensional.
Um dos pilares fundamentais da disciplina militar é o conceito de obediência. A ideia de firmeza e não hesitação diante de uma autoridade, lei, ou comando são intrínsecas ao regime hierárquico no qual os militares são formados. Se a diretriz não constituir um crime, os militares devem obedecê-la. O positivismo que fundou a República pregava a ordem e nela está embutida uma boa dose de obediência.
O Brasil é um país onde muitos acreditam que respeitar a lei é coisa de otário. Em que persiste o esquema, a exceção, o ‘jeitinho’, o atalho. Esse traço do caráter brasileiro – ou da falta de – é algo com o qual convivemos pacificamente até a atualidade. Sempre se alimentou essa lenda com uma enorme tolerância e elasticidade moral. Um dia chegou a pandemia e nossa flexibilidade passou a ser contabilizada em vidas. Nosso ‘jeitinho’ passou a ser uma ameaça ao direito do outro existir.
Temos um chefe de Estado que sistematicamente desobedece as normas do próprio país e da ciência; um incentivo aos seus seguidores a também desobedecerem
Aí começa o paradoxo brasileiro: temos um chefe de Estado que sistematicamente desobedece as normas do próprio país e da ciência; um incentivo aos seus seguidores a também desobedecerem. Contudo, essa pessoa é um militar de carreira – expulso, é verdade – mas treinado na disciplina militar. A métrica do Brasil é invertida, quem desobedece é quem deveria servir de exemplo para a obediência.
Como disse o pensador francês Edgar Morin: “A nova ignorância é diferente da antiga, que vem da falta de conhecimento. A nova surge do pseudoconhecimento”. Hoje a extrema-direita no governo prega a desobediência civil como forma de resistência contra a ciência. Ela nega a própria raiz positivista que fundou os regimes militares no Brasil no nascimento da República, o progresso da nossa bandeira deveria significar o progresso científico, civilizatório e econômico.
O Brasil caminha para uma tempestade perfeita com a negligência governamental, o isolamento diplomático, a nossa diversidade servindo de fertilidade para a mutação do vírus, uma desenfreada desobediência civil aliada a incompetência burocrática que alimenta uma situação perversa de morte, contaminação e mais morte. Sair desse loop exigirá uma revisão do nosso caráter. Não se deve perder a oportunidade de transformação que a morte nos oferece. A pandemia pode parecer para alguns uma abstração numérica criada pela mídia, até a hora que ela entra no território da afetividade de cada um, que é em si o núcleo duro da realidade.
Estamos atravessando o pior momento da nossa história, depois que gerações lutaram para construir uma democracia com algum nível de justiça. Nos deparamos com um retorno ao revés em direção às trevas e à ignorância, à desordem e ao regresso.
Quando você passar pelo fogo melhor não esperar que a sorte te salve. Um dos pilares da fé do brasileiro é entregar para a sorte o destino de suas próprias tragédias. Acreditamos que alguma força maior nos preservará do pior e isso nos destina ao caminho da catástrofe, certos de que o paraquedas se abrirá no último minuto – e se não abrir? Precisamos pensar como a nossa identidade é responsável pelo nosso rumo. E como podemos usar esse momento como empuxo para transformar traços doentios de nossa cultura em algo que seja mais edificante.
Aos cinco anos de idade minha filha mais velha Enrica me disse: “pai, eu gosto de você, porque você é obediente.” Naquele momento entendi que a ordem era algo que lhe confortava o coração. Ou trazemos a afetividade, a solidariedade, a disciplina e a empatia para o campo principal da nossa existência ou podemos nos preparar para a barbárie.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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