Fernando Luna
Brasil na encruzilhada
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre Exu anitirracista, feitiço do tempo na pandemia, a vice-presidente que dança e um lembrete: eu, também, sou América
“QUE É UMA FOTO DA PESSOA MORTA PARA QUEM CONHECEU EM VIDA?”
Oliveira Silveira, 1967
“Carrefour” quer dizer “encruzilhada” em francês. E, agora, em português também.
Estamos numa encruzilhada. De novo.
Na primeira vez, 1888, o Brasil escolheu o caminho da negação. Libertou escravos ao léu, queimou documentos referentes à escravidão e seguiu como se nunca tivesse arrastado pra cá 4,8 milhões de negros acorrentados.
Deu no que deu.
Desta vez, 2020, melhor recalcular o trajeto. A imagem do homem preto espancado até a morte aponta um outro norte, como uma bússola às avessas. Um choque de realidade na fábula da democracia racial.
O corpo de Beto Freitas no chão manchado com seu próprio sangue, estendido em frente à porta automática. Um chinelo fora do pé, como mercadoria mal acomodada na gôndola. Ao fundo, um cartaz exibe em grandes letras brancas a palavra “Ofertas”.
A carne mais barata do supermercado é a carne negra.
Ficou ainda mais difícil fechar os olhos pro racismo e seguir fingindo demência. É preciso escolher melhor os próximos passos. Deixar na esquina da avenida Brasil o padê de Exu, dono das encruzilhadas nas religiões de matriz africana: farofa de dendê e cachaça pra abrir caminho, destrancar o destino da nação.
Ou o país encara e combate o racismo, ou continua matando e morrendo de olhos bem fechados e daltônicos, como diz o outro.
Ou assume as palavras de Abdias Nascimento em seu “O Genocídio do Negro Brasileiro”, ou insiste na cartilha de Gilberto Freyre, amaciando em vão as tensões entre “Casa-Grande e Senzala”.
Ou reconhece os 76% de negros entre as vítimas de assassinato, ou argumenta, cínico, que o problema é apenas econômico: logo a mão invisível do mercado larga o chicote e resolve a desigualdade.
O poeta Oliveira Silveira deixou uma obra que celebra a negritude sem passar pano pro racismo. “Anotações à Margem”, um de seus doze livros de poesia, traz versos potentes como os de “A foto”. Ele também foi um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra.
Justamente o dia em que circularam as imagens terríveis do Brasil na encruzilhada.
“SÓ QUERO SABER O QUE PODE DAR CERTO/ NÃO TENHO TEMPO A PERDER”
Torquato Neto, 1970
A única vantagem de fazer aniversário durante uma pandemia é mesmo fazer aniversário.
O que, reconheço, não é pouco.
Mais de 1,3 milhão de pessoas não conseguiram chegar lá, vítimas do coronavírus, do escárnio de governantes e da combinação calamitosa das duas coisas.
Ainda assim, com a possível exceção da Gabriela Pugliesi, quem tem a sorte de completar outro rolezin ao redor do sol em meio à distopia percebe um certo travo na celebração.
Isso nem acontece tanto pelas restrições do distanciamento social às festinhas – com jeito e com amor, dá pra comemorar e ser feliz seguindo todas as recomendações da OMS. A estranheza vem da maneira caprichosa como o tempo passou a se comportar, desde que assaram aquele pangolin em Wuhan.
O feitiço do tempo sempre foi sua dupla natureza: ora em excesso, ora em falta. A gente alternava momentos de tédio, em que as horas se alongavam infinitamente, com a correria de não ter um minuto sequer a perder diante de tantas tarefas. Era uma coisa ou outra.
Agora, o tempo deu de aparecer em excesso e em falta – ao mesmo tempo.
Parece que, com a flexibilização da quarentena, fomos jogados numa espécie de existência quântica, em que levamos uma vida simultaneamente normal e anormal. Nessa vida de gato de Schrödinger de armazém, o tempo não para e também não passa.
Se 2019 parece outra era geológica, domingo pode durar uma eternidade, o Natal já tá aí e a agenda de amanhã ninguém sabe o que será. Diante dessa confusão, os versos de “Go back”, poema do menino infeliz de Teresina, iluminam nosso senso de urgência.
Quantas vezes mais você vai se lembrar de uma certa tarde da sua infância, uma tarde que faz tanto parte do seu ser, que não dá pra imaginar a vida sem ela? Talvez quatro ou cinco vezes mais. Talvez nem isso. Quantas vezes vai ver a lua cheia nascer? Talvez vinte. E, no entanto, tudo parece não ter limite. Quantas vezes ainda vou citar esse trecho do romance de Paul Bowles sobre o tempo?
Hoje eu faço 50 anos. Ou talvez tenha sido ontem, não sei bem. Só sei que quero mais.
“UMA GAROTA NEGRA SE TORNANDO A MULHER QUE SUA MÃE DESEJOU”
Audre Lorde, 1973
A eleição de Joe Biden foi a segunda melhor notícia do fim de semana. A primeira foi a eleição da Kamala Harris.
Nem vem estragar minha minimicareta política, botando reparo na sua atuação punitivista como procuradora-geral da Califórnia. Ou lembrando que seu parceiro eleitoral representa a quintessência do imperialismo norte-americano.
Popará. Fosse outro ano, até gastava cinco minutos nessa arenga.
Só que isso aqui é 2020. Dois mil e vinte, a.k.a. o pot-pourri mais sinistro do século: pandemia e antivacina chegaram, Moraes Moreira e Rubem Fonseca partiram, Pantanal e Amazônia encolheram, crise econômica e negacionismo cresceram.
Mas pelo menos Donald Trump e Mike Pence foram demitidos.
Já valia um brinde de Chevette se, no lugar deles, entrassem Boitatá presidente e Cuca vice. Então vamos dar uma folga pro Domenico Losurdo e festejar a conquista de uma mulher negra, progressista e sacudida – só acredito em político que sabe dançar.
Amanhã a gente volta a problematizar.
Por enquanto, foco no memorável discurso da Kamala na noite da vitória: “Posso ser a primeira mulher neste cargo, mas não serei a última. Toda garotinha nos assistindo hoje vai ver que este é um país de possibilidades”.
Falando da pequena cidade de Wilmington pro mundo, ela era a própria garotinha se tornando a mulher que sua mãe, a imigrante indiana Shyamala Gopalan Harris, desejou. “Estou pensando nela e em gerações de mulheres negras, asiáticas, brancas, latinas e indígenas que pavimentaram o caminho para este momento.”
Mulheres como Audre Lorde, autora dos versos de “Geração II”.
Negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta, como se definia, pavimentou muitas milhas de asfalto nessa estrada que deu no resultado divulgado a fórceps nesse sábado – não aguentava mais clicar o “refresh” do meu browser. Uma votação recorde, mais de 75 milhões de votos, com o apoio massivo de 91% das eleitoras negras.
Ah, e a amizade de Trump e Jair Bolsonaro, tão boa para o Brasil? Essa brodagem simplesmente não existe. Amizade, ali, só com o Fabrício Queiroz.
“EU, TAMBÉM, SOU AMÉRICA”
Langston Hughes, 1926
Nesta terça Donald Trump e Joe Biden decidem quem será o próximo presidente do Brasil.
Ou quase isso.
Por aqui, o noticiário não fala de outro assunto, as redes sociais estão fritando como se fosse um Fla-Flu e a polarização ianque invadiu até os grupos de WhatsApp da tradicional famíla brasileira.
Ninguém escapa da influência da maior potência do planeta.
Como Jair Bolsonaro costuma espelhar a estratégia política de Trump, o resultado deve reverberar com mais força entre nós – talvez alcançando a eleição de 2022, cuja campanha já começou.
Se Biden vencer, vai ter muito mais gente festejando a derrota de Trump do que comemorando sua vitória. A maior qualidade do democrata é simplesmente não espezinhar a democracia. Parece pouco. É pouco mesmo. É o que temos.
Se Trump vencer, o populismo autoritário de direita recobra o fôlego que parece começar a perder – a pandemia serviu ao menos para lembrar que não existem soluções fáceis para problemas complexos.
A quatro dias da eleição, Biden tinha 8 pontos de vantagem. Mas, pé-de-pato-mangalô-três-vezes, Hillary Clinton também entrou na reta final à frente de Trump em 2016. Eram apenas 4 pontos de folga e deu no que deu.
Pra não dar chance ao azar nem ao coronavírus, mais de 80 milhões de americanos anteciparam o voto, por correio ou presencialmente. Desses, 46% são democratas e 30%, republicanos.
Os eleitores negros podem definir o resultado final – mais de 1/3 deles moram em estados-pêndulo, que frequentemente decidem eleições apertadas como essa. Afro-americanos devem ir em peso às urnas, como não acontece desde quando Barack Obama estava na cédula.
Seria um recado de força e resistência, semelhante àquele de “Eu, também, canto a América”. Langston Hughes, negro, escreveu esses versos numa resposta poética a “Eu Ouço a América Cantando”, de Walt Whitman, branco. Foi um modo de afirmar que Black Lives Matter, quase cem anos antes de o movimento tomar as ruas dos Estados Unidos.
Eu, também, sou América – América do Sul, torcendo pro vento democrático varrer o continente de cima a baixo.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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