Leandro Sarmatz
Minimalismo é opressão
Para os super-ricos das big techs, escolher a roupa do dia é para losers. Mas para combater as passadas de perna da vida, gosto de imaginar que cada dia pode ser diferente. Daí a utilidade da roupa
O primeiro computador que comprei, a partir do meu primeiro salário e a prestação, foi um Apple Mac 1995. Uma belezinha bege até tirá-lo da caixa e plugá-lo na tomada: não funcionava. Era novinho em folha e havia sido adquirido numa revendedora autorizada. Coloquei tudo na caixa – funcional e bonita, ela não dava pau – e levei de volta para a loja. Fiquei alguns dias sem computador. O boleto não tardou a chegar.
Não foram muito racionais os motivos para, naquela época, comprar um modelo da Apple, sempre tão mais caro em relação aos outros PCs disponíveis. Eu estava começando a trabalhar num jornal e catava milho o dia inteiro num modelo grande e pesado que ainda rodava DOS – o Windows seria instalado nos computadores da redação apenas alguns meses mais tarde. Havia dois Apple no jornal, ambos no departamento de arte. Dava para perceber um anacronismo (estético e ideológico) entre o meu computador de trabalho e aqueles dois modelos da empresa de Steve Jobs: eu passava o dia grunhindo e retocando uma pintura rupestre, a turma da arte tirava nota alta no Toefl e já havia chegado a Mondrian.
Steve Jobs. Já naquela época ele era saudado como um gênio. Naquele tempo, aliás, ele começou a cristalizar a imagem pessoal que hoje todo mundo conhece: camiseta preta de manga longa, dad jeans e New Balance cinza. Era o minimalismo ambulante, ostensivo, autocelebratório. A razão alegada por Jobs era não perder o seu precioso tempo – que deveria ser idealmente destinado à criação das máquinas mais funcionais e elegantes do mundo – enquanto abria a porta do guarda-roupas para catar a roupa do dia.
Costumamos exigir bastante da vida, mas mal percebemos que é ela que está em posição de estabelecer as mais altas exigências. E isso ela faz com gosto
Virou moda. Muitos super-ricos, em especial das grandes empresas de tecnologia, embarcaram nesse suposto minimalismo. Um paradoxo: eles até podem não desperdiçar seu tempo escolhendo as tediosas camisetas cinza-mescla que usam diuturnamente, mas pavoneiam de tal maneira esse estilo de vida que, bem, nos deixa pensar o quanto de vaidade está em jogo. E de demonstração tácita de poder. No imaginário atual, o bilionário darwinista Bobby Axelrod, interpretado por Damian Lewis na série Billions – sempre de preto, sempre minimal, apenas de vez em quando trocando o tédio monocromático por uma camiseta do Metallica –, encarna esse ideal de vastos poderes e mínima imaginação. Escolher a roupa do dia é para losers, nos parece dizer.
A vida é dura. O dia a dia costuma ser um tupperware morno de frustração, sonhos interrompidos e esperança que se liquefaz. O mundo não vai bem, você já sabe, e algo parece ter sido rompido em nossa suposta harmonia com o planeta. Há uma fissura entre nós e a natureza, entre nós e nós mesmos. Aquele famoso verso de Auden, “a rachadura na xícara de chá abre o caminho para o reino dos mortos”, nunca foi tão verdadeiro. É no cotidiano, aliás, entre os objetos de nossa afeição e as coisas que sequer percebemos a existência, de tão presentes em nossa vida, que travamos nossas maiores batalhas. Costumamos exigir bastante da vida (uma casa maior, um emprego melhor, uma viagem à Itália, um grande amor), mas mal percebemos que é ela, a própria vida, que tem a carta decisiva e que está em posição de estabelecer as mais altas exigências. E isso ela faz com gosto, a filha da puta.
Por isso, desde há muito dispensei as supostas benesses do minimalismo. Essa história, para mim, funciona tanto quanto o Mac 1995 que comprei com meu primeiro salário. É uma promessa jamais cumprida. Alegadamente funcional e prático, o minimalismo na verdade é um tremendo gesto ideologicamente repressivo e esteticamente regressivo. É uma espécie de PSDB do cabideiro: se pretende moderno mas veio com as caravelas. Minimalismo é um desfile ostensivo de poder. E, como todo poder, ele oprime.
Alegadamente funcional e prático, o minimalismo na verdade é um tremendo gesto ideologicamente repressivo e esteticamente regressivo
Para tentar combater um pouquinho o tédio e as passadas de perna da vida, gosto de imaginar que cada dia pode ser diferente. Livros, música, embriaguez e sexo ajudam um bocado. Mas a maior parte de nossa jornada diária está longe desse mundo baudelairiano do “embriagai-vos, com vinho, poesia ou virtude”. A gente fica frio, a gente fica sóbrio, a gente trabalha direitinho.
Daí a utilidade da roupa. Já relatei aqui sobre o meu vício em camisas havaianas. É o meu caminho. Mas não é o único que traço para mim. Há dias em que vou todo de khaki, da camisa às botinas. “Pronto para um safári?”, me perguntou um colega de olho afiado. “Sim, para a selva da cidade”, respondi de improviso. Pode ser, pode ser. Longe de ser um pavão (“sou tímido espalhafatoso”, como canta outro poeta), gosto de interpretar o clima do dia (o bom e velho mood) com um traje à altura. Pouco antes da pandemia estava começando a ficar viciado, por razões estéticas e etárias, no look Cocoon (o filme): jaqueta de nylon sobre camisa havaiana, calça bege, tênis brancos. Tinha algo de restaurador. Rejuvenescia sem esconder a descida na ladeira da vida. Tudo colorido, sem “combinar”, de acordo com a temperatura (emocional) de cada dia. Um gesto de libertação. Porque não há ninguém mais livre que os velhos.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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