O que fazer com J.K. Rowling?
Acusada de transfobia, a autora de Harry Potter se vê como persona non grata até entre fãs da saga. A pergunta que fica é: como separar o mundo mágico das posições políticas da autora?
Um livro novo de J.K. Rowling já significou muita alegria para fãs de Harry Potter: o mundo mágico foi peça fundamental na formação de crianças e adolescentes ao redor do globo, que cresceram com as aventuras de Harry, Rony e Hermione pelos corredores de Hogwarts. Porém, tal qual Dementadores sugando a felicidade das personagens da saga, as ações recentes de J.K. desafiam o amor que os fãs têm pelos livros, fazendo-os questionar se ainda é possível consumir sem culpa o universo que tanto amam.
Na última semana, a revelação da trama do novo livro da escritora gerou polêmica. Em “Troubled Blood”, Rowling conta a história de um homem cisgênero que, para enganar e matar mulheres, se veste como uma delas. Pouco tempo após a divulgação da sinopse, a hashtag “#RIPJKRowling” já estava nos assuntos mais comentados do Twitter.
Acusada de ser transfóbica, a escritora se defendeu afirmando que baseou a personagem em Jerry Brudos e Russell Williams, dois assassinos americanos que roubavam as roupas de suas vítimas. Apesar da justificativa, o histórico de declarações da escritora pesou na recepção do novo romance.
As acusações de transfobia contra J.K. não são novas. Neste ano, a autora já havia se mostrado incomodada com o uso do termo “pessoas que menstruam” em vez de “mulheres” no título de um artigo, e ironizou a adoção da expressão — que visa ser mais inclusiva com homens trans. Ela também foi muito criticada por defender Maya Forstarter, britânica que foi demitida após tecer comentários transfóbicos no Twitter.
Em seu blog pessoal, a escritora publicou um texto em que fala sobre suas preocupações com o “novo ativismo trans”. No ensaio, ela afirma ser a favor da comunidade, mas diz ter medo de que homens se utilizem da luta trans para entrar em banheiros femininos. O medo sentido por Rowling já foi apontado como irreal por inúmeros especialistas, mas a autora permanece firme em suas convicções.
Ao serem confrontados com as declarações da escritora, a resposta de muitos fãs foi simples: eles passaram a fingir que outra pessoa escreveu Harry Potter. A brincadeira pode parecer inocente, mas reflete um incômodo sentido por grande parte do potterheads: como conciliar o amor pela saga com as posições de Rowling?
Esperando a carta de Hogwarts
Para o jornalista Caê Vasconcelos, de 29 anos de idade, as ações de Rowling doem. “Sendo uma pessoa trans, é doloroso demais lidar com o posicionamento dela. Eu não consigo apagar o meu amor pela série, fiz parte da geração que esperou a carta chegar”, afirma Vasconcelos, um fã de carteirinha que sempre defendeu a saga do bruxo.“Harry Potter trouxe o amor pela literatura para uma geração inteira. Foi o primeiro livro que eu li por vontade própria, a primeira saga que acompanhei.”
O relato ecoa nos fãs que encontraram nos livros escritos por J.K. a primeira paixão pela leitura. Fotógrafo e escritor, Camila Cerdeira, de 31 anos de idade, acompanhou a saga durante sua adolescência inteira, crescendo junto a Harry. “Eu sempre fui um leitor ávido e acabei sendo taxado de ‘criança estranha’ por isso. Quando saiu o primeiro filme e a febre estourou, vi muita gente começar a ler e eu já não parecia tão estranho assim. Os amigos que fiz nessa época foram todos por causa de Harry Potter. Conheci meu primeiro namorado pela saga.”
A saga também acompanhou a infância e a adolescência de Míriam Castro, a Mikannn, uma mulher cis de 27 anos que tem um canal no YouTube com mais de meio milhão de inscritos. Para ela, a memória afetiva trazida pelos livros mexe com as pessoas. “Harry Potter versa, dentre muitas outras coisas, sobre pertencimento. Harry não se sente aceito e encontra em Hogwarts o lugar que ele pode ser quem ele é. Mas é horrível quando a própria criadora desse mundo diz que você não é uma pessoa válida”, diz Castro.
“O discurso dela reforça o pensamento transfóbico que mata pessoas trans no Brasil e no mundo. Muitas mulheres trans são mortas por homens que se sentem enganados, que acham que mulheres trans são homens vestidos de mulheres. Se uma pessoa como ela fala isso, inúmeras outras pessoas se sentem confortáveis para compartilhar a mesma opinião”, complementa Caê Vasconcelos.
Até as celebridades e a indústria
O descontentamento com a autora não parte só dos fãs. Diversos atores da franquia cinematográfica se posicionaram contra as falas de J.K. Rowling — incluindo o trio principal Daniel Radcliffe, Emma Watson e Rupert Grint. Eddie Redmayne, atual protagonista de “Animais Fantásticos” — filmes derivados de Harry Potter escritos por Rowling –, criticou publicamente as falas da escritora.
A própria Warner Bros., ao anunciar um novo jogo de videogame baseado no universo mágico, se distanciou da autora, explicando que ela não tinha qualquer envolvimento com a criação da história do jogo.
Apesar da repercussão negativa, Harry Potter continua extremamente popular. Os pedidos dos fãs para que os filmes do bruxo sejam colocados no catálogo da Netflix são tantos que a frase “Mas cadê Harry Potter?” se tornou piada recorrente nas redes sociais do serviço de streaming. A saga, e sua autora, continuam extremamente relevantes.
Dona de um dos universos ficcionais mais marcantes — e lucrativos — dos últimos 20 anos, a escritora britânica é figura constante na lista de escritores mais bem pagos do mundo, com mais de meio bilhão de cópias da saga do bruxo vendidas no mundo inteiro.
Cientes do poder de Rowling, alguns fãs argumentam que o melhor a ser feito é piratear o conteúdo do mundo bruxo. Outros, optam por ignorar as falas da criadora e fingir que os livros de Harry Potter simplesmente aparataram no mundo. Dentre as diversas opções, uma parece ser a mais celebrada — e também a mais difícil de se adotar: o boicote.
Aquela-que-não-deve-ser-nomeada
Camila Cerdeira procura não se engajar com o discurso de Rowling e evita promover as obras e as falas da escritora — mesmo que indiretamente. “Sempre que ela surge com novos comentários transfóbicos, eu busco encher minhas redes sociais de conteúdo de qualidade produzido e protagonizado por pessoas trans. Em vez de me desgastar lutando contra alguém que não vai mudar de opinião, prefiro exaltar a comunidade da qual eu faço parte.”
Caê Vasconcelos também opta por não consumir mais conteúdos produzidos por Rowling. “Se a gente está no sistema capitalista, como eu posso enfraquecer uma pessoa que é transfóbica? Ao não dar dinheiro para uma pessoa que não quer que eu exista.”
“Eu não vou jogar minhas coisas de Harry Potter fora, não vou falar mal de uma saga que foi muito importante para minha vida. Eu sempre tive a ideia de que leria Harry Potter para os meus filhos, porque é uma narrativa tão linda. E mesmo querendo muito ver o próximo Animais Fantásticos no cinema, não vou. E me dói dizer isso”, afirma Vasconcelos.
Em seu canal no Youtube, Mikannn fala sobre filmes, séries, jogos e tudo o que abarca a cultura pop — exceto Harry Potter. Mesmo sendo fã do bruxo desde os nove anos, Castro aderiu ao boicote do conteúdo relacionado a Harry Potter em dezembro do ano passado. Com as declarações mais recentes de Rowling, a youtuber optou por sequer mencionar a obra em seu canal.
Entretanto, a jornalista entende que essa é uma escolha pessoal sobre sua produção — onde tem 100% do controle criativo — e acredita que o boicote não é tão simples. “Já ouvi que tudo deve ser ignorado, que falar a respeito dela é fazer propaganda. Mas uma bilionária, responsável por uma das franquias que mais vendem no mundo todo, não vai precisar de propaganda. Ela já é o próprio veículo com milhões de seguidores nas redes sociais.”
Para ela, é importante entender que J.K. Rowling não está sendo cancelada ou perseguida. “Não é como se ela tivesse cometido um único deslize, ela fala mais sobre a causa trans no Twitter do que sobre a obra dela. Ela se tornou uma ativista que fala contra a existência de pessoas trans.”
A youtuber sabe que o boicote completo é quase impossível, mas também enxerga uma conversa difícil sobre separar a obra do autor. Para ela, é impossível consumir histórias e autores 100% perfeitos, a questão é que Rowling usa a plataforma como escritora de sucesso para espalhar desinformação e preconceito.
“A J.K. Rowling ganha muito dinheiro por conta da relevância de Harry Potter. Ela pode usar esse dinheiro para financiar iniciativas que vão contra os direitos das pessoas trans. Como discordar, mas continuar dando dinheiro para ela? É algo muito grave, não dá pra deixar de lado”, finaliza Castro.
As aflições de uma geração que aprendeu a ler com Harry Potter, e agora vê a criadora de uma obra tão querida se comportando de maneira errática, se assemelham a outros casos famosos de artistas problemáticos. Para os millennials e a geração Z, J.K. Rowling é a Horcrux no meio do caminho.