Os livros que a redação da Gama está lendo
Livros que lembram o exílio, que falam de memória ou que contam as miudezas do dia a dia, a equipe Gama compartilha boas leituras dos últimos tempos
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As Pequenas Virtudes, da Natalia Ginzburg
por Isabelle Moreira Lima, editora executiva
Guardada as devidas proporções, quem ainda está levando a quarentena a sério — e às últimas consequências, em lockdowns solitários e voluntários — está vivendo algo próximo de um exílio. E por isso “As Pequenas Virtudes” (Companhia das Letras, 2020), coletânea de ensaios da italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), me fez chorar na segunda página. “Quando a primeira neve começava a cair, uma lenta tristeza se apossava de nós. Aquilo era um exílio? Nossa cidade estava longe, e longe estavam nossos livros, os amigos, as várias e cambiantes vicissitudes de uma verdadeira existência”, escreve em “Inverno em Abruzzo”. Este primeiro ensaio deixa também a mensagem de que, mesmo em situações adversas, devemos buscar beleza e prazer nas mínimas coisas, gestos e experiências. É tão lírico que parece ficção, mas são histórias e impressões baseadas em sua experiência vivida nos anos da Segunda Guerra Mundial e posteriores a ela, mas que se mantém atuais possivelmente pela eternidade, eu arriscaria.
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A ridícula ideia de nunca mais te ver, da Rosa Montero
por Laura Capelhuchnik, redatora
A memória é uma história que reescrevemos a cada dia: ajuda a organizar o passado e dar à vida algum sentido. Por isso, quando morre alguém próximo, nos vemos escrevendo finais. Não só o de quem morre, mas o final de uma vida em comum. É sobre essa escrita que Rosa Montero fala em “A ridícula ideia de nunca mais te ver” (Todavia, 2019), a partir de um diário da física e química Marie Curie feito após a perda repentina do marido. Ao mesmo tempo em que revela a fascinante história da cientista, primeira mulher a ganhar o Nobel, e única a receber dois, Rosa a usa como parâmetro para falar das próprias experiências. Agora que estamos especialmente rodeados de medo e da morte, é um respiro acessar reflexões feitas com tanta leveza sobre as nossas dores indizíveis e a realidade de não poder mais encontrar quem amamos, que é quase inconcebível, mas que precisa ser encarada com alguma naturalidade. Pode parecer um livro centrado na morte, mas é muito mais sobre a monumentalidade da vida.
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Redemoinho em dia quente, da Jarid Arraes
por Luara Calvi Anic, editora-chefe
Li um texto no jornal de uma jovem escritora nascida em Juazeiro do Norte, no Cariri cearense, que fazia poesia, cordéis sobre heroínas negras, que era fã de Lady Gaga. “Pode parecer engraçado. Para muitos, pode soar como coisa menor. E achar menor, eu digo, é desconhecimento”, ela escreveu sobre o gosto pelo pop. Por tudo isso eu logo virei fã — de Jarid, porque de Gaga eu já gostava. Ao abrir seu primeiro livro de contos, publicado em 2019 pela Alfaguara, conheci mulheres de seu mundo, do Cariri onde ela nasceu, “da terra que me fez quem sou”. A oralidade de sua escrita sugere de onde essas personagens vieram, mas seus temas são universais. A garota abusada pelo pai, o amor de irmãs, a beata que escolhe sair da mesmice e toma um LSD, a depressão e a busca por sentido, a bonita amizade entre mulheres. Em um questionário que Jarid respondeu para Gama nós perguntamos: qual qualidade mais admira em uma mulher? E ela: “Rebeldia e consciência política em constante movimento”. Acho que Jarid Arraes tem isso, Lady Gaga também, heroínas em geral tiveram que ser rebeldes para transformar realidades. “Redemoinho em Dia Quente” nos mostra essa força.
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The White Album, da Joan Didion
por Guilherme Falcão, diretor de arte
Você consegue se lembrar da década passada? Da anterior? Das décadas todas em que viveu? Pois é precisamente isso que a jornalista, ensaísta e escritora Joan Didion faz em “The White Album” (“O Álbum Branco”, em português), livro que devorei durante essa quarentena. A coletânea de ensaios — que sim, toma de empréstimo o título do disco dos Beatles — publicada em 1979 tenta passar a limpo, pelos panos sujos da memória, uma década de “paranoia”, capaz de provocar “náusea e vertigem”: os anos 1970 nos estados unidos. The Doors, drogas, Hollywood, Hawaii, Panteras Negras e Orquídeas são personagens em textos de uma percepção afiada e em cores tão vivas que é quase como se eu estivesse ali com ela, fascinado pela sua leitura e vivência. Náusea, vertigem, paranoia, que delícia. As cópias físicas infelizmente são impossíveis de achar, mas o anacronismo de ler esses ensaios no seu leitor digital preferido (eu fiquei entre um kindle velho e o celular) tem um charme. Gosto de pensar que Didion apreciaria.
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Flecha, da Matilde Campilho
por Mariana Payno, redatora
Para quem, assim como eu, ficou órfã da literatura de Matilde Campilho depois de seis anos da publicação dos poemas de “Jóquei” (Editora 34, 2015), o novo “Flecha” (Tinta da China, 2020) chegou como um alento em meio à pandemia. A ansiedade foi tamanha que importei o livro de Portugal, já que ainda não há previsão para uma edição brasileira. “Flecha”, como a própria autora definiu, é “um livro de histórias”. São narrativas curtíssimas — às vezes de uma única frase —, que nascem das miudezas do dia a dia: o vento que bate em uma árvore, atividades manuais de trabalhadores, o caminhar de um cigano, a noite de verão em uma pequena cidade litorânea. Ao mesmo tempo, revelam culturas e personagens dos quatro cantos do mundo: Minsk, Bogotá, Metlakunta, o rio Danúbio. Assim como os versos de “Jóquei”, a prosa de “Flecha” se constrói a partir de um olhar sensível para a potencial grandeza das pequenas coisas. Afinal, escreve Campilho na apresentação, “o sussurro das histórias é permanente e liga tudo” — uma flecha que também nos atravessa, na leitura.
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A Balada do Black Tom, do Victor Lavalle
por Daniel Vila Nova, estagiário de texto
O que fazer quando seu autor favorito é #cancelado? Essa pergunta vem assombrando muitos fãs de literatura, que se veem obrigados a encarar atos e posições políticas horríveis de autores que produziram obras tão queridas pelo público. Para o escritor Victor Lavalle, a situação foi um pouco mais complicada. Negro, ele teve de conciliar sua admiração pela figura de H. P. Lovecraft, pai do horror cósmico e uma das figuras mais importantes do cânone de terror mundial, com as visões escancaradamente racistas da obra do escritor. Assim surgiu “A Balada do Black Tom” (Editora Morro Branco, 2018), um livro que reimagina o conto mais racista de Lovecraft, “O Horror em Red Hook”, colocando um protagonista negro no centro da obra. Parte homenagem, parte crítica, o livro segue a vida de Tom, um americano que, precisando de dinheiro, aceita entregar um pacote estranho para uma figura misteriosa. Mal sabe ele que está entrando em um jogo de forças sobrenaturais e horrores muito além da compreensão humana. Revisitando o universo Lovecraftiano, Lavalle devolve um dos grandes clássicos do horror à atualidade.
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A vegetariana, da Han Kang
por Manuela Stelzer, estagiária de texto
Não é novidade para ninguém que o mundo anda aos trancos e barrancos. E a violência humana, em todas as suas formas e expressões, faz parte do pacote. Em um momento de isolamento, necessidade de resiliência, mas pouca perspectiva de um futuro minimamente esperançoso, sempre procuro uma maneira de romper com a lógica de autodestruição do planeta. Essa é, de certa forma, a temática que Han Kang traz em seu livro “A Vegetariana” (Todavia, 2018), título que recebeu o prêmio Man Booker Prize e que me fisgou desde o primeiro parágrafo. No romance, a autora conta a trajetória de uma mulher que busca, de fato, se afastar da natureza animalesca e de todas as formas de violência do mundo, que se manifesta de diversos jeitos, seja pela ingestão de carne ou pela subordinação da mulher. Numa espiral de loucura, erotismo bizarro e até com um toque de terror, o livro te engole – eu, particularmente, li numa sentada –, e termina com uma sensação de alívio meio inesperada. Torço para que esse seja esse nosso futuro também.
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Working in Public: The Making and Maintenance of Open Source Software, da Nadia Eghbal
por Ibrahim Cesar Bevilacqua, diretor de tecnologia
Minha leitura atual é o instigante “Working in Public: The Making and Maintenance of Open Source Software” (Stripe Press, 2020), de Nadia Eghbal. Seja em nossos celulares ou qualquer serviço online que utilizamos, todos eles utilizam em algum grau, softwares de código aberto, o open source. Existem desde bibliotecas mantidas a décadas por um ou poucos entusiastas, até grandes fundações que operam como verdadeiras empresas zelando pelo software.
Eighdal investiga essas diversas facetas e confronta um pouco a mística ideia de “colaboração”, mostrando que a maioria dos contribuidores só faz pequenas adições e como os desenvolvedores enfrentam os desafios de criar e manter software, atendendo a demanda de não apenas pessoas, mas empresas. E a natureza parassocial desses relacionamentos e o verdadeiro significado de “trabalhar em público”.
Para os que gostam da intersecção entre tecnologia e sociedade, é um prato cheio. Ainda mais quando esses códigos estão cada vez mais se tornando a própria matéria do que é feito o tecido de nossas existências.