Bianca Santana
Tempo
Quem pode ficar em casa não teve tempo para experimentar o inédito. Foi necessário digitalizar e acelerar a repetição para dar conta de infinitas tarefas, ansiedades e medos
Ele não é limitado, nem escasso, nem é necessário fazer escolhas para lidar com ele. Tempo, para povos bakongos e no candomblé angola, é nkisi. E nkisi a gente cultua. Ainda mais Tempo, que permite o desenrolar da vida. Brigar com nkisi é algo que realmente não se deve fazer.
Além de Tempo, há também o tempo, que é cíclico, em dimensões variadas. Nas abstratas, sem começo-meio-fim, está sob o poder da energia cósmica. Nas concretas, marcados por eventos, sejam eles naturais ou não, pode ser representado por outras tantas palavras, que significam: contagem ou divisão de etapas; nível de força; demarcação precisa. Tudo isso — na pouca compreensão que tenho — chamamos tempo, em língua portuguesa. Uma expressão do quão limitada é a percepção linear, ocidental, hegemônica do tempo.
No cosmograma bakongo, chamado Diekenga, síntese de diferentes conhecimentos, há também o tempo. Dividido horizontalmente pela Kalunga, que separa o material do espiritual e os vivos dos ancestrais, representa a totalidade do universo, e também a vida em cada um de nós, cada dia e cada ciclo social.
É complexo compreender Diekenga quando o processo de colonização impôs uma linha de sentido único entre passado, presente e futuro. Resta a busca por apreender lampejos de compreensão da complexidade nos ensinamentos de Taata Mutá Imê, no Terreiro de Mutá Lambô ye Kaiongo junto à Casa dos Olhos de Tempo, na Bahia, nos livros de Fu Kiau, o mais importante deles “A Cosmologia Africana dos Bantu-Congo”, recentemente traduzida na tese de doutoramento de Tiganá Santana. E também no toque da alfaia, nos silêncios, nos ensinamentos indígenas de segurar o céu e adiar o fim do mundo, na amefricanidade, nos quilombos.
Seguimos lutando contra o tempo, garantindo a permanência do desrespeito à vida; por mais um ciclo de injustiças e produção de morte
Ensina Allan da Rosa, em “Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem” (Hunter Books, 2012):
“Nesse tempo tradicional africano não existe um fim absoluto a ser perseguido nem sequer um final do mundo previsto, mas a geração e o giro de formas a se relacionar com a precariedade e com a permanência no mundo, que é nitidamente ambivalente no seu cotidiano. Modelado nesse termo, o lugar afro-brasileiro existe num entre-lugares e também se faz teia, num entre tempos. Pois é trança entre repetição e inédito.”
Talvez este entre-lugares e o entre-tempos nos permita girar, mesmo em meio a tanta precariedade. Já são quase 90 mil notificações de mortes por COVID-19 no Brasil e estamos falando sobre reabrir escolas, com restaurantes funcionando e praias lotadas. O presidente da República, comprometido com a milícia e com os interesses de seus amigos e familiares, nos distrai com emas e propagandas mal feitas de medicamento. Ainda não sabemos quem mandou matar Marielle. As madereiras e o garimpo passam como boiadas. As polícias matam impunemente, e cada vez mais, no país onde não existe pena de morte. Os antirracistas de plantão não conseguem admitir que há um genocídio negro em curso. O tal novo normal tem sido o aprofundamento do racismo, da violência contra mulheres, da desigualdade social.
No início do isolamento, parecia que parte de nós havia parado em respeito ao Tempo. Mas então, quem pode ficar em casa não teve tempo para experimentar o inédito. Foi necessário digitalizar e acelerar a repetição para dar conta das infinitas reuniões, lives e aulas online, tarefas de domésticas e de cuidados, ansiedades e medos. E seguimos lutando contra o tempo, garantindo a permanência do desrespeito ao desenrolar da vida. Seguindo por mais um ciclo de injustiças e produção de morte.
Mas se não há limitação nem escassez, é preciso saber que outros caminhos coexistem neste. No cosmograma bakongo, Diekenga, há conhecimentos que nos permitem conectar à totalidade e inaugurar novos ciclos, apesar das mortes por COVID-19, por tiro da polícia ou da milícia, pela travessia do Atlântico. Busco lampejos de compreensão.
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
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