Marilene Felinto
É intolerável querer tratar nos bastidores do poder as acusações contra Silvio Almeida
Defender que o caso seja resolvido à boca pequena fortalece a conduta de normalizar abusos de homens que atacam meninas e mulheres na calada da noite em casas de família, em fundos de quintal, por baixo da mesa e dos panos
O suposto assédio atribuído ao ex-ministro Silvio Almeida, demitido por isso do Ministério dos Direitos Humanos, insere-se no campo da violência de gênero, o ponto é este, o peso, a cor e o grau. A acusação é esta, muito grave, ainda mais porque envolve uma autoridade do alto escalão de governo.
Defender que o caso deveria ter sido resolvido nos bastidores, à boca pequena, para não expor ao enxovalhamento público a “carreira ilibada” do ex-ministro, um homem negro, não se justifica. Pelo contrário, fortalece a habitual conduta de normalizar abusos de homens que atacam meninas e mulheres na calada da noite em casas de família, em fundos de quintal, por baixo da mesa e dos panos.
Intolerável mesmo é este apelo ao silenciamento do episódio, que vai inclusive contra a premissa da transparência no trato da coisa pública. Dizer que uma chamada espetacularização do caso se deva a uma “trama” montada para prejudicar Almeida, exatamente por ele ser negro e, portanto, alvo de todo tipo de ódio racista, é argumento que também não se sustenta por si só.
Numa conversa informal com amigos advogados, citei outra situação de exposição pública de uma autoridade, um homem branco, acusado do mesmo crime de “importunação”. Trata-se do episódio em que o deputado estadual Fernando Cury (então do Cidadania) passou a mão no seio da deputada do PSOL Isa Penna, durante sessão filmada em vídeo na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 2020.
A contra-argumentação de um dos meus amigos foi: “Ah, mas ali foi filmado”. Ora, isso significa que ou a mulher vítima do abuso apresenta a prova em forma de vídeo ou o simples depoimento dela não vale de nada! Eis a costumeira desqualificação da vítima mulher, e a dupla culpabilização da mesma.
Alega-se que a vítima no caso em questão é também Silvio Almeida, que teria caído numa armadilha arranjada por grupos opositores seus dentro do governo, grupos estes que teriam “usado” Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial e uma das supostas vítimas de assédio, para amplificar o linchamento público do acusado. Ora, novamente, isso não passa de uma tentativa de vitimização da verdadeira vítima, como se Anielle Franco fosse uma coitada incapaz de iniciativa própria.
Defende-se ainda como indício da formação de um “complô” contra o ex-ministro a forma tortuosa como a denúncia foi feita e veio a público —não pelos canais oficiais, como boletim de ocorrência ou coisa do tipo, e na época do ocorrido (no ano passado, em uma reunião interministerial, quando Almeida teria tocado por baixo da mesa nas coxas e partes íntimas da ministra). Reforça essa alegação o fato de que a organização Me Too Brasil é que “foi atrás” das denúncias e fez a divulgação para a imprensa (sempre marrom, é bem verdade, interessada em faturar com escândalos de todo tipo).
Naquela conversa informal com meus amigos advogados, alguém pôs em dúvida inclusive a idoneidade do Me Too Brasil, não o movimento em si, mas a coordenação da organização não governamental no país. Não posso apoiar essa alegação, não conheço o braço brasileiro dessa Ong respeitada, de resto, mundo afora como importante expressão de um feminismo jovem e combativo.
Questiona-se também o fato de o ministro ter sido acusado “sem nem saber” quem são as mulheres que o acusam, cujos nomes, com exceção do de Anielle, não foram revelados. Ora. Qual a proposta aqui, senão a de que as supostas vítimas sejam igualmente expostas? Ora. Execração por execração, que as mulheres sejam apedrejadas juntamente com o homem acusado! Para além disso, não me parece possível que um homem em cargo de ministro não tivesse conhecimento nem dispusesse de todas as ferramentas que lhe permitiriam acesso aos nomes de mulheres que o acusam, mulheres sob seu comando ou não (são quatro casos de suposto assédio sexual e dez denúncias de assédio moral).
Silvio Almeida foi demitido antes de ter direito a sua defesa não por ser negro, mas porque ocupava um cargo de confiança, e porque a denúncia envolve o nome de uma colega de trabalho sua, Anielle Franco, uma mulher igualmente negra, o que, de certo modo, confirma o insustentável argumento de que ele está exposto por ser negro.
O caso ganhou tamanha dimensão pública não pela condição de negritude de Almeida, mas por tratar-se de autoridades públicas de grande visibilidade, e até mesmo porque o nome de Anielle remete imediatamente ao de Marielle Franco, sua irmã, assassinada covardemente em 2018, exemplo mais cristalino de até onde vai a opressão, a dominação de gênero, a violência contra mulheres: até o extermínio puro e simples.
Há, por fim — como último argumento em defesa do abafamento da denúncia contra o ex-ministro —, quem considere que, em sua declaração pública logo após a demissão de Almeida, Anielle Franco não teria confirmado nominalmente ter sido vítima de assédio por parte do acusado. Ora, basta um trecho da carta de Franco para responder à inconsistência desse questionamento: “Não é aceitável relativizar ou diminuir episódios de violência. Reconhecer a gravidade dessa prática e agir imediatamente é o procedimento correto, por isso ressalto a ação contundente do presidente Lula e agradeço a todas as manifestações de apoio e solidariedade que recebi”, disse a ministra.
Falo em defesa das mulheres e favorável à divulgação pública da patologia social que acomete machos em todos os âmbitos, e em todos os cantos do mundo
Falo aqui apenas como mulher (não como mulher negra), em defesa das mulheres e favorável sempre à divulgação pública da patologia social que acomete machos em todos os âmbitos, e em todos os cantos do mundo, qual seja: a compulsão por tratar o corpo das mulheres como propriedade deles, corpo este que eles se arvoram ao direito de manusear como e quando desejem, e sobre o qual querem legislar a seu bel-prazer.
Minha defesa é das mulheres porque uma mulher dificilmente mente quando é vítima de violência sexual, no máximo omite-se (excetuando-se os raríssimos casos de mulheres vigaristas), por medo, por ameaça, por constrangimento forçado, pelo choque da afronta ou para poupar ou preservar, no sacrifício, a estrutura institucional ou empresarial ou familiar em que o fato se deu (para poupar, inclusive, o próprio assediador).
Esta é minha última coluna nesta Gama Revista, por decisão pessoal de entrar em período sabático do colunismo de opinião. Encerrar minha participação aqui tratando deste tema tem um quê de sentimento de perda e vitória ao mesmo tempo. “Perda” não pela queda de Silvio Almeida, como querem alguns e o próprio ex-ministro ao firmar em sua declaração de defesa nas redes sociais, antes mesmo de sua demissão, que, com as supostas mentiras contra ele, “perde o Brasil, perde a pauta de direitos humanos, perde a igualdade racial e perde o povo brasileiro”.
Pois eu mesma não perdi nada com isso. Aliás, a pré-defesa de Almeida foi meio atrapalhada, efeito provável do abalo emocional que certamente o acomete. Uma análise semiótica mesmo superficial daquela fala em rede social demonstrará a falta de “veemência” no tom de seu repúdio, “veemência” que ele menciona logo no início.
Ter ido se defender das acusações no site do próprio Ministério, quando ainda não tinha sido demitido, talvez diga um tanto de como o ex-ministro utilizava-se daquela instância de governo: colocando-se ele mesmo como a instituição em si, ele pessoa física, sem distinção entre sua pessoa e o órgão público.
O sentimento de perda é por testemunhar mais uma vez o lugar de opressão ainda reservado às mulheres nesta sociedade machista e misógina.
O sentimento de vitória, ainda que feminismo e machismo continuem sendo realidades irreconciliáveis está presente também na constatação de que a violência sexual e a dominação de gênero contra as mulheres deixou de jazer no silêncio (dos “inocentes”) e na impunidade, seja qual for a raça, a classe social, a escolaridade, a profissão ou o cargo político do assediador. Vitória custosa, de batalha em batalha, de grão em grão, mas que vai adicionando alguma justiça à luta pelos direitos das mulheres e demonstrando que a “materialidade” da prova dos crimes contra nós está na simples condição de sermos mulheres. O importante é isso, e é isso o que se deve sempre considerar em primeiro plano.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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