Casamento Aberto O relato de uma mulher e suas reflexões sobre o casamento (feliz) que aos 15 anos ganhou a possibilidade de novos encontros
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Isolamento conjugal (ou que bela época para se abrir o casamento)
Quando estava começando a escrever estes depoimentos, li os resultados de uma pesquisa realizada nos EUA que apontava que as pessoas, em geral, achavam mais aceitável a ideia de relacionamentos poliamorosos do que a de casamentos abertos. Palavras como “sujas”, “pervertidas” e “infelizes” eram associadas a pessoas como eu e meu marido, o que, sinceramente, é mais engraçado do que triste ou irritante.
Como você, que está lendo isto aqui, me imagina? Peitos grandes saltando de um decote profundo? Cabelão platinado na cintura? Saia de couro? Salto agulha? Artista de vanguarda? A rainha do sexo selvagem? Ou do tântrico? Sou a mulher mais comum do Brasil: aquele 1,65m básico, uma barriguinha reincidente, tênis e jeans (embora realmente goste de decotes também). Tenho uma profissão bem tradicional, gosto de cozinhar, ler, ir ao cinema, beber vinho. Acho as posições sexuais clássicas bastante divertidas, e não tenho paciência para papos transcendentais de conexão disso e daquilo. Se o desejo é algo complexo, o sexo é um troço perturbadoramente objetivo, eu diria.
Ai de mim se quiser ser honesta com nossas famílias ou colegas de trabalho sobre escolhas afetivas e sexuais
Às vezes me divirto pensando no que meus pais diriam se soubessem do nosso arranjo conjugal, outras vezes me apavoro de eles verem o André com alguém e sofrerem um derrame, e outras ainda eu fico triste por isso tudo ter esse caráter tão furtivo. Ninguém acha nada demais em me perguntar por que não tenho filhos, mas ai de mim se quiser ser honesta com nossas famílias ou colegas de trabalho sobre escolhas afetivas e sexuais… Suja, pervertida, infeliz!
Mas estou exagerando, talvez. Afinal, quando falei dos meus pais aí acima toquei num ponto sensível. Dificilmente eles vão me ver ou ao André com outra pessoa: sequer moramos na mesma cidade. Mas amigos, sim. Amigos podem ver, ficar sabendo. Bem, amigos podem, inclusive, ser coadjuvantes na história. Então como decidir quem deve ficar sabendo antes de passar pelo constrangimento do “eita, olha lá, traindo” (cafona, cafona)? Acho que não há receita, vamos falando aqui e ali, a quem achamos que faz sentido, e ninguém até agora fez nenhum comentário repreendedor, ainda que às vezes surjam os “ai, cuidado, tá?”. Tá.
E a tal pesquisa? Por que a mais alta tolerância aos polirrelacionamentos? Primeiro, deixa eu explicar que, no estudo, esse grupo incluía trios e quartetos “fechados” ou ainda pessoas com mais de um relacionamento firme – a variável constante sendo sempre a ideia de estabilidade emocional, de envolvimento afetivo. Nada de segredo, nada de encontros surpreendentes, mas segurança, compromissos. O pessoal gosta de não correr riscos, né?
Como ter um relacionamento aberto em meio a uma pandemia?
Essa pesquisa me voltou à cabeça nestes tempos do novo coronavírus e de isolamento social. Na verdade, a primeira coisa que me veio à mente quarentenada foi: “Vixe, caiu essa pauta”. Afinal, como ter um relacionamento aberto em meio a uma pandemia? Como estar aberta à possibilidade do encontro de desejos se nem aberta a esbarrar com alguém na rua eu estou? Depois me lembrei da pesquisa e me dei conta: a diferença entre um casamento não monogâmico e um arranjo poliamoroso é óbvia. Um trio tá junto nessa, um quarteto tá junto nessa, uma pessoa que tenha dois compromissos estáveis… Bom, essa ou mudou o status da coisa toda, ou alguém se lascou pra valer.
Realmente, a covid-19 põe muitas coisas em perspectiva. Há uma imposição de um compromisso muito material, com a saúde física da gente. Se eu beijar outra pessoa, não é só uma experiência que eu posso estar trazendo de volta para a minha casa. Escrevo isso e me assola uma melancolia tremenda, que tem menos a ver com meu desejo de viver encontros eróticos inéditos do que com minha convicção de que qualquer limitação às aproximações entre pessoas deixa necessariamente o mundo mais sombrio.
Estou ansiosa desde o primeiro dia, por tudo o que o mundo tem a oferecer
Logo que tudo começou, uma revista americana postou no Instagram: “Preparem-se para fazer muito sexo por telefone”. Mas, mas… Como faço isso? Me tranco no quarto e finjo que estou sendo muito “carinhosa” com minha gatinha ou meu cachorro? Vou pro quintal e simulo um flerte com as plantas? E, bem: como, de repente, inventar um gosto por um tipo de coisa que eu nem curto? Afinal, isso aqui nunca foi sobre convidar efetiva e ativamente outras pessoas à minha vida (ou à minha casa, mesmo que virtualmente). Na verdade, nada mudou no nosso arranjo: apenas não estamos saindo, então não vemos outras pessoas, não estão se oferecendo novas possibilidades ou oportunidades, e não há nada de que eu, realmente, esteja abrindo mão.
Ou estou abrindo mão de tudo, exceto do mais importante. Outro dia um amigo-com-benefícios me mandou uma mensagem dizendo que, passando de carro pela minha rua tarde da noite, me viu com o André passeando com nosso cachorrinho e achou a cena “bonita”. E é mesmo. Ele também falou outras coisas que não convém contar aqui e que até poderiam deixar alguém especialmente ansiosa pelo fim da quarentena (digamos apenas que tem a ver com o fato de eu ter abolido o uso de soutien durante esta fase). Mas não eu: estou ansiosa desde o primeiro dia, por tudo o que o mundo tem a oferecer, do abraço nos meus pais aos dates românticos com meu marido, dos shows àquela viagem programada para ver a amiga querida que mora fora há dois anos, de segurar minha afilhada no colo à cerveja com as amigas. E de ver o desejo nos olhos de um homem diferente também. Também.
*A imagem que ilustra essa matéria é uma cortesia da fotógrafa Helena Wolfeson – “A banhista”, em película 120mm, é parte de uma série desenvolvida em residência artística na Alemanha, no verão de 2013, em que aborda a relação dos corpos com o espaço público de lazer. A fotografia está no projeto 150fotospraSP. Mais informações no site www.helenawolfenson.com