Maria Homem
Antártica: uma viagem-travessia
A transformação da psique se impunha, impossível não sentir novas coisas e pensar novos pensamentos
A imagem de um iceberg é das mais icônicas para visualizar o funcionamento da mente humana. Foi a metáfora de Freud: somos como um iceberg, uma pequena parte visível, consciente, sustentada por uma porção maior e mais poderosa que, embora invisível a priori, embasa todo o edifício. Esse é o inconsciente. Tem suas próprias leis e impulsos, e opera a partir de mecanismos para além da racionalidade clássica, condensando e dilatando tempos, espaços e ideias.
Qual não foi minha emoção ao estar num mar cheio de icebergs, lindos e gigantes? Eles se equilibrando na água que não para de mexer. E não tem um igual ao outro. Como em toda a natureza, cada ser –iceberg, árvore, humano — surge em sua singular subjetividade. Em média, 70% do iceberg fica embaixo d’água. Às vezes a proporção é 2 para 8, ou 1 para 9 partes de invisível. Imagine o pouco que cada Ego pode saber da totalidade de Si.
Estava na Antartica, com imensos icebergs azuis. Aprendi que, dependendo da concentração de oxigênio no gelo e da mudança molecular que isso implicava, a estrutura podia absorver o vermelho do espectro e refletir o azul, mesmo sendo formada de água transparente. Como disse minha dupla no caiaque: spectacular. Adorei essa palavra. Experimente falar em voz alta e mexendo a língua na boca. Spectacular.
E lá tinha todos os tons de branco. Além da neve poder ter muitas cores além do branco porque se mistura com diferentes algas, mais para o ocre, os azuis, os verdes, os vermelhos. Entendi por que dizem que os esquimós tem muitas palavras para o branco. Entendi também que o gelo tem um ciclo de vida. A neve vai caindo: água e ar, gelo e oxigênio. E depois outra neve, mais fresca e mais leve, cai em cima dela. Quanto mais branca a neve – para não esquecer nossos mitos – mais ar ela tem. Conforme passa o tempo, saem as bolhas de oxigênio e o gelo vai ficando com menos ar e menos branco,
cada vez mais cristalino.
No centro de uma baía toda feita de glaciares gigantes, atravessamos uma parte da água coberta de gelo. Ao passar com o bote escutávamos uns estalos, clec-clec-clec. Adivinha? Era o som do ar saindo. Às vezes uma pedra de gelo guarda oxigênio por 10 mil anos. Nesse santuário branco, estávamos ouvindo o som de moléculas de ar se libertando de suas moradas de milênios.
Ali na Antártica brotava a certeza da vida como potência
Os animais também eram impactantes, com teias “culturais” em jogo nos seus processos de auto-organização – talvez até menos mortíferas e mais equilibradas do que as nossas. Os pinguins andavam fofos e desajeitados ao longo das vastas estradas que construíam na neve. Ficavam em grande número no alto das montanhas até que desciam para dar um mergulho, em fila indiana, organizadamente. Pulavam um depois do outro no mar, de cabeça. Aí estavam em seu elemento, a água: eram exímios nadadores, com saltos sincronizados para respirar, essas avez aquáticas.
E as baleias? Também nadando de braçada, mamíferos aquáticos com diversos truques para segurar mais hemoglobina e condensar mais o pulmão, como todos os animais que não são peixe mas adaptados ao universo aquático.
Uma tarde, uma baleia imensa (umas 35 toneladas, imagina) ficou rodeando nosso zodiac, o bote de exploração. Até que passou por baixo dele – e poderia sem dúvida nos derrubar em um segundo só com a ponta da cauda. Mas não foi o que aconteceu. Ela deixou seu footprint de baleia num perfeito círculo ao redor do bote. E depois deu um giro ao redor do seu próprio corpo, uma espécie de cambalhota lateral, colocando seu corpo imenso para fora da água, sob nossos gritos de excitação. Ela estava brincando conosco. Nesse dia senti todos os animais da baía conversando entre si, nós e eles.
Como os animais conseguem se adaptar nesse ambiente? Com os mais variados mecanismos e comportamentos, muitos ainda desconhecidos. Alguns deles, tanto aves quanto mamíferos, são migratórios: viajam milhares de quilômetros para ter calor, reproduzir ou parir.
Como sabem o caminho? Ainda não deciframos muito bem. Os animais sabem lidar com os ventos e as correntes do mar. Provavelmente reconhecer a geografia e as paisagens. E se sabe que a baleia — e outros animais como aves, golfinhos, vacas, abelhas e talvez humanos — tem sensores eletromagnéticos no cérebro que provavelmente se conectam com os polos magnéticos do planeta. Surreal.
Neurônios se comunicando com o ferro líquido do centro do planeta. O caso é que não se perdem jamais e fazem a sua longuíssima viagem na linha mais reta possível. Nós humanos temos outro estilo. Aprendemos tudo isso com os guias da expedição, que eram biólogos, geólogos, ornitólogos, glaceologistas… Amavam aquele ambiente polar e exuberante, e tinham prazer em compartilhar a seu saber conosco. Essa a verdadeira dádiva, que nunca poderei agradecer o suficiente. Eles tinham o desejo de saber, a persistência da pesquisa e a coragem da travessia. Porque precisa determinação.
Como chegar nesse pedaço de paraíso no planeta? Tínhamos que atravessar a Passagem de Drake, o mar mais perigoso do mundo, no encontro das correntezas do Atlântico com o Pacífico. O Drake era forte o suficiente para balançar tudo no navio, desde os copos e garrafas até nossos corpos, que durante dois dias ficavam andando bêbados nos corredores. Metade das pessoas passava mal, enjoava, não conseguia ficar de pé. Algumas botavam tudo para fora.
No meio da travessia, vimos da janela do nosso navio aquecido um veleiro enfrentando as ondas de quase sete metros, com um cara do lado de fora manejando as velas. Acho que só naquele instante compreendi o poder da sereia que seduzia Shackleton, Scott, Amundsen, Ulisses e muitos outros loucos maravilhosos. Dos que vão pros polos, pro oeste, pra Lua.
Estávamos então no coração de uma viagem profundamente física ao mesmo tempo que metafísica. O habitat era radical, e se ofertava aos nossos olhos como paisagem exótica e inédita. A transformação da psique se impunha igualmente, pois impossível não sentir novas coisas e pensar novos pensamentos.
O que é a vida? Esse foi o tema dessa viagem para a Antártica.
Por mais que estejamos perseguindo respostas, há três grandes questões sobre a origem que ainda hoje são enigmas a decifrar: a origem do Universo, da Vida e da Consciência. Como surgiu a Vida ao longo da formação do Universo? E como surgiu a Consciência ao longo da evolução? De onde viemos e para onde vamos?
Se a pergunta sobre a essência das coisas e a origem do mundo permanecem da ordem do impossível, ali na Antártica brotava a certeza da vida como potência. E aumentava a porção visível do nosso iceberg, aumentava a consciência do que somos, como ser individual e como espécie habitante do planeta.
Essa foi uma viagem-travessia, em muitos sentidos. Como falei durante esse trabalho, dos mais interessantes que já fiz: a real viagem é sair diferente de como se entrou.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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