Dá muita sede prever o tempo — Gama Revista
COLUNA

Marcelo Knobel

Dá muita sede prever o tempo

Os avanços da inteligência artificial na meteorologia, a maneira como as novas tecnologias entram em nosso cotidiano e os efeitos negativos disso tudo

19 de Janeiro de 2024

Eu estou absolutamente fascinado com os avanços da inteligência artificial, e com o modo com que essas tecnologias vão entrando no cotidiano sem muito alarde, mas de maneira incrivelmente rápida. O reconhecimento facial, por exemplo, era mera ficção científica há poucos anos e, hoje disponível, é comum em celulares e em portarias. Na maioria das vezes nem notamos as mudanças, mas elas certamente têm mudado a nossa forma de interagir com o mundo.

Uma das áreas onde os avanços são sensíveis é na meteorologia. Muitos leitores devem lembrar que até muito recentemente, ler a previsão do tempo era quase como ler a sessão de horóscopos, de tão imprecisa e vaga que ela chegava a ser. Hoje em dia, qualquer celular oferece previsões de até 10 dias com excelente taxa de sucesso, indicando as temperaturas máximas, mínimas, a previsão de chuva e até o horário em que a chuva vai ocorrer, dependendo da região em que nos encontramos.

Esse incrível avanço ocorreu graças a parâmetros calculados por alguns dos supercomputadores mais potentes do mundo, utilizando modelos complexos baseados nas leis que governam a dinâmica da atmosfera e dos oceanos. Só para citar um exemplo, o Centro Europeu de Previsões Meteorológicas a Médio Prazo (ECMWF, da sigla em inglês), localizado em Bolonha (Itália) tem um supercomputador com um milhão de processadores (um computador pessoal tem de dois a quatro) e uma potência de cálculo de 30 petaflops (algo como 30 mil bilhões de cálculos por segundo). Assim, ele consegue realizar previsões de alta resolução (HRES, da sigla em inglês) para todo o planeta para o prazo de até 10 dias com uma precisão espacial de nove quilômetros.

As novas tecnologias vão entrando no cotidiano sem muito alarde, mas de maneira incrivelmente rápida

No Brasil, o principal local que realiza esses cálculos é o Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O computador responsável por essas simulações, apelidado de Tupã, foi comprado em 2010 e está completamente defasado, tanto em termos de tecnologia quanto em consumo de energia. Como é muito antigo, não é possível sequer realizar manutenções nele. No início de 2023 anunciaram que o governo investiria em torno de 200 milhões de reais para comprar um novo equipamento, mas não encontrei mais informações para saber se de fato foi comprado ou se houve algum impedimento para realizar essa tal aquisição.

Por outro lado, um artigo recente na Revista Science mostrou que existem outras alternativas para prever o tempo. É possível treinar uma máquina muito mais simples, do tamanho de um computador pessoal, por exemplo, com a inteligência artificial meteorológica da Google Deepmind (chamada GraphCast). Essa IA foi rodada em uma unidade de processamento tensorial (TPU) similar a um PC, mas especializado em realizar produtos de matrizes. Como costuma ocorrer com qualquer IA, ela precisa ser treinada. Neste caso, os pesquisadores usaram vários TPUs durante algumas semanas para treinar o GraphCast. Terminado o treino, as predições podem ser realizadas por uma única TPU. A GraphCast consegue calcular a condição atmosférica que ocorrerá nas próximas seis horas, precisando saber, para isso, apenas as condições no momento da ordem e pelo período anterior de seis horas.

Enquanto os sistemas atuais fazem uma previsão meteorológica numérica usando equações físicas para simular os processos ultra complexos da dinâmica atmosférica, a GraphCast considera a evolução das condições atmosféricas e climáticas, aproveitando décadas de dados meteorológicos para propor um modelo das relações causais que governam o tempo meteorológico na Terra. Os resultados são impressionantes. A GraphCast prediz centenas de variáveis meteorológicas com semelhante ou até melhor precisão que a HRES. A previsão da GraphCast superou a HRES em 90,3% das 1.380 métricas consideradas. Se a análise se limita à troposfera, descartando os dados da estratosfera (6-8 km céu acima), onde de fato ocorrem os eventos meteorológicos mais próximos, a IA supera a supercomputação supervisionada por humanos em 99,7% das variáveis analisadas.

Não quero ser estraga-prazeres, mas, como tudo na vida, há também o lado ruim das novas tecnologias. Aparentemente a IA tem muita sede. Digo aparentemente, pois não há dados muito transparentes sobre a quantidade de resfriamento que precisam as máquinas que rodam os novos modelos de IA, o que muito provavelmente vai causar um impacto ambiental considerável. Os poucos dados disponíveis mostraram que o consumo de água da Google aumentou 20% em 2022 e que o da Microsoft (dona do OpenAI, do ChatGPT) aumentou em 34%. Isso sem contar os recursos hídricos já consumidos na refrigeração dos servidores ou nos processos de fabricação do hardware. De fato, ainda há poucas informações dos potenciais impactos ambientais do uso das IAs e também não sabemos como a demanda por mais informações vai poder ser suprida mundialmente. É preciso, no mínimo, ficarmos atentos a mais esse risco ambiental.

Escrevo este texto no início de 2024, sem usar IA, e com a certeza de que em poucos meses ele já estará obsoleto, mas deixo o registro do meu fascínio e do temor diante do novo. O futuro dirá se nos esperam chuvas e trovoadas ou secura do deserto…

Para se aprofundar mais no tema:

How much water does AI consume? The public deserves to know
Google Environmental Report 2023
Investigating hardware and software aspects in the energy consumption of machine learning: A green AI-centric analysis

Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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