Amai-vos uns aos outros e… — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Amai-vos uns aos outros e…

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre a polarização religiosa, a resistência em Jequié, a cura pra ressaca eleitoral e a mais desastrosa campanha presidencial de todos os tempos

17 de Outubro de 2022

Amai-vos uns aos outros/ e o resto que se foda

Nicolas Behr, 1978

O segundo turno virou uma guerra santa do pau oco.

Bem contra o mal, Baphomet, os padres perseguidos na Nicarágua, a arruaça bolsonarista em Aparecida, uma misturada de satanismo com maçonaria e por aí vai.

Só um espírito público obsessor explica essa fixação esotérica, num momento em que economia, saúde, educação, segurança e meio ambiente, pra ficar no óbvio, gritam por atenção.

Mas, como pesquisas mostram que a religião do candidato é importante na hora de decidir o voto, o assunto apareceu até no debate do domingo. Bolsonaro louvou a liberdade religiosa, que obviamente jamais esteve ameaçada, em vez de reafirmar o estado laico – esse sim sob ataque desde que “Deus acima de tudo” virou slogan político.

A divisão do país tem menos a ver com polarização, porque não existe equivalência possível entre os dois lados, e mais com um cisma religioso.

Como num embate entre reforma e contrarreforma, Lula tem 60% das intenções de votos dos católicos e Bolsonaro, 34%. Entre os evangélicos, a situação se inverte: Bolsonaro lidera com 63%, Lula fica com 31%.

(No entanto, as vítimas preferenciais da intolerância são sempre as religiões de matriz africana, que sofrem mais de 90% das agressões, de acordo com o Observatório de Liberdade Religiosa.)

Enquanto o bispo emérito Dom Mauro Morelli descreve o atual presidente como um “agente de Satanás”, o pastor José Wellington Costa Junior, da Assembleia de Deus, jura que o ex-presidente é o “laço do diabo”.

Daqui a pouco os inquisidores vão exigir que Lula ajoelhe no milho e não apenas indique logo seu Ministro da Economia, como também um novo embaixador do Brasil na Santa Sé.

(A propósito: se Armínio Fraga, André Lara Resende, Edmar Bacha, Pérsio Arida, Pedro Malan e Henrique Meirelles tão tranquilos em apoiar Lula, você, que se atrapalha com a tabuada de 7, pode fazer o mesmo sem susto.)

Eu creio em Nicolas Behr, autor do melhor resumo bíblico que já li, publicado originalmente na edição mimeografada de “Chá com Porrada”. Receba a “Palavra final”: “Amai-vos uns aos outros/ e o resto que se foda”. Amém.

Se bicha fosse bala/ Se maconha fosse fuzil/ Jequié estava pronta/ Pra defender o Brasil

Waly Salomão, 2004

São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais precisam aprender com Jequié.

A modesta cidade baiana, terra natal de Waly Salomão, é rima e solução pros males do país. Lá, o primeiro turno deu 62% dos votos a Lula, contra 31% ao preferido do goleiro Bruno.

O Brasil que queremos tá na quadrinha “Tiro de guerra”, do livro “Pescados Vivos”, lançado um ano após sua morte. A propósito, presidente, não vai se atrapalhar de novo com as palavras: o poeta é filho de sírio, não de círio.

Os quatro versinhos debocham avant la lettre da maldisfarçada obsessão fálica por arminha, armona e CAC – tem saída do armário mais escancarada que aquela do bolsonarista lambendo o cano da escopeta?

Ao deixar na mesma linha a maconha e o fuzil, ainda zomba do moralismo ineficaz da suposta guerra às drogas, esse eufemismo pro assassinato em massa de pretos e pardos. Não, ACM Neto, não precisa se preocupar.

O “epigrama cívico”, como o próprio autor define o poema, escancara a pataquada desse patriotismo a meio-mastro da extrema-direita.

O resultado das urnas fez subir mais uma onda de preconceito contra os nordestinos – na região, o candidato de Garanhuns ganhou de lavada, 67% a 27%. Bando de analfabetos, gritou o “incumbente” – pra usar esse irresistível anglicismo da vez.

Não é porque sou filho, neto, sobrinho, primo e tio de nordestinos, mas o analfabetismo político do sulmaravilha me preocupa mais. Foi isso, afinal, que infestou a Câmara com Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro, Mário Frias, Ricardo Salles, General Pazuello, Hélio Lopes, Nikolas Ferreira e Osmar Terra.

(Minha solidariedade a Guilherme Boulos, a partir de fevereiro trabalhando na mesma firma que esses tipos. Espero que o departamento de RH do Congresso seja capaz de desanuviar o ambiente tóxico.)

Jequié é um pouquinho de Brasil, também um pouco de uma raça que não se entrega, não. Uma troia de taipa dos desvalidos, daqueles na fila do osso, daqueles no fim de todas as filas. Sábado agora foi Dia do Nordestino. Se tudo der certo, celebramos a data novamente em 30 de outubro.

E a ressaca da realidade, dura eternamente?

Adolfo Montejo Navas, 1999

Não. Vamos curar logo essa ressaca: bebe água, passa um café forte, vira de uma vez um Epocler e um voto.

Abre os olhos devagar, pra ver as boas notícias.

Lula teve a maior votação já registrada num primeiro turno. Nunca antes na história deste país alguém recebeu de cara 57 milhões de votos. Ficou a 1,6 ponto de liquidar a fatura – mas bola na trave não altera o placar.

(Tudo isso contra um presidente que suga a máquina do estado em benefício próprio, decretando estado de emergência pra dar uma pedalada fiscal e instituindo o orçamento secreto.)

Ciro terminou atrás de Tebet. Risos.

(E os dois terminaram atrás dos 6% que as pesquisas lhes davam. O voto útil antifascista virou um voto útil antipetista, numa migração pra Bolsonaro que os institutos de pesquisa foram incapazes de antecipar.)

Figuras progressistas como Flávio Dino, Guilherme Boulos e Eduardo Suplicy se elegeram com votações expressivas pro senado, câmara dos deputados e assembléia legislativa. Duas mulheres trans, Erika Hilton e Duda Salabert, e duas mulheres indígenas, Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, tão no Congresso.

(Ao contrário de figuras reacionárias rejeitadas nas urnas, como Eduardo Cunha, que destampou a caixa de Pandora com o impeachment, Sérgio Camargo e Daniel Silveira.)

Fim das boas novas. Às más, então.

A cabeça lateja com a votação surpreendente de Bolsonaro. Errar é humano, repetir o erro é bolsonarista. Pior: o bolsonarismo garantiu a maior bancada da câmara pro PL e ainda transformou o senado num reality show dirigido pelo Wes Craven – com Damares Alves, Magno Malta e Sérgio Moro.

Em São Paulo, Tarcísio chegou bem à frente de Haddad; em Minas, Kalil nunca teve nem chance; no Rio, Freixo caiu antes do previsto – sem falar em Pazuello, de mais letal ministro da saúde do planeta a mais votado deputado do estado.

Melhor abreviar essa ressaca da realidade, de que fala o espanhol radicado no Brasil Adolfo Montejo Navas, em “Inscrições”. O segundo turno taí e é preciso vencer de novo – ou então encarar mais 4 anos de dor de cabeça. No mínimo.

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa, 1960

A campanha de Ciro Gomes é um longo programa de tevê ruim, que não dá Ibope nem Ipec.

O candidato entra na cabine à prova de som, de onde não escuta nem a pergunta, nem o auditório, nem a voz da razão. Quando a luz vermelha acende, responde sem titubear:

– Ciro, você quer trocar 13 milhões de votos em 2018 por 7 milhões de votos em 2022? Sim ou não?

– Siiimmmm.

Ciristas se desesperam. E o Projeto Nacional de Desenvolvimento? Bem, se o cara não consegue sequer compor uma aliança pra ter um vice, imagina tirar aquilo do papel.

Melhor trocar de canal.

Na bancada da cozinha cenográfica, a culinarista prepara uma receita saudável pro almoço do próximo domingo. Explica, pacientemente, como evitar desperdício:

– Você pode substituir um voto que coloca o Bolsonaro no segundo turno por um voto que resgata o país do pior presidente da história. Com 33 milhões de pessoas com fome, não dá pra jogar fora nem o que sobrou do Ciro.

Da sua poltrona, o marqueteiro João Santana – aquele que, fosse remunerado pelo desempenho do seu cliente, sairia endividado do pleito –, zapeia até achar um desenho animado:

– Não perca: “Ciranha”. Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, com grandes equívocos vêm grandes piadas involuntárias. Parece criação dos adversários, mas foi mesmo a equipe do Ciro que inventou.

Opa, interrompemos nossa programação pra transmitir o “Manifesto à Nação”, com Ciro vociferando em loop no seu próprio cercadinho:

– Lula pedir voto é autoritarismo, eu pedir voto é democracia.

Não vale a pena ver de novo. Chegou a hora da autocrítica da terceira via.

Não vai dar pro Ciro, muito menos pra Simone, Soraya, Luiz Felipe e Padre Kelman – e o fato de estarem reunidos numa mesma frase diz muito sobre suas candidaturas.

Existe, porém, um representante da terceira via com grande chance de se eleger: Geraldo Alckmin. O número dele nesta eleição é 13.

Não deixo pro segundo turno o que dá pra resolver no primeiro: “Não posso adiar o coração”, como escreveu o português António Ramos Rosa, em “Viagem Através duma Nebulosa”.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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