As novas mazelas do trabalhador
Conheça os principais problemas do trabalhador com os novos modelos de trabalho e o que pode ser feito para lidar com essa realidade
“Eu sentia como se estivesse morrendo.” É assim que a jornalista, escritora e palestrante Izabella Camargo define a sua experiência com a síndrome de burnout. Ela, que atuava como repórter da previsão do tempo dos telejornais “Hora 1”, “Em Ponto” e “Bom Dia, Brasil” enfrentou uma pesada crise de esgotamento profissional em 2018 e teve de ser afastada do seu trabalho por recomendação médica. “Vivi um apagão. Uma vez, tive de ser socorrida no hospital pois apresentava risco de ter uma convulsão tamanho o estresse.” Depois do seu tratamento médico, a jornalista esperava ser reintegrada ao quadro de funcionários da emissora onde trabalhava. O retorno, no entanto, não aconteceu. Camargo foi demitida e, apesar de ter sua reintegração determinada pela justiça, sequer foi recebida nas portas da emissora quando retornou. “O diagnóstico e o tratamento foram muito difíceis, mas o pior foi a falta de acolhimento”, relata a jornalista.
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Após um acordo na justiça com sua antiga empregadora, Camargo passou a falar sobre os males do burnout e do esgotamento mental, buscando trazer maior consciência sobre o tópico. “Quando você enxerga um osso ou sangue, você acredita naquela dor. Mas quando você não enxerga, é mais difícil.” Ela escreveu o livro “Dá um Tempo!” (2020, Principium), que fala sobre encontrar limites em um mundo sem limites, e passou a oferecer consultoria relacionada à saúde mental no trabalho. No Podcast da Semana, da Gama, ela também falou sobre o tema. “A síndrome de burnout é consequência de um modelo insustentável”, relata. “O problema não é o trabalho, mas o excesso dele. Qualquer excesso traz prejuízos.”
O problema não é o trabalho, mas o excesso dele. Qualquer excesso traz prejuízos
Esgotamento mental, depressão e ansiedade ainda são assuntos considerados tabu em muitos ambientes de trabalho, mas uma nova classificação da OMS indica que esse tópico é cada vez mais relevante. Na nova atualização da Classificação Internacional de Doenças, a OMS caracterizou o burnout como uma síndrome crônica e uma condição ocupacional relacionada ao trabalho. Camargo enxerga a atualização como uma boa novidade e acredita que estamos no caminho certo para falar sobre o burnout da forma com que a doença deve ser tratada. “A saúde mental do trabalhador só será preservada quando tivermos definições e modelos que não vão obrigar alguém a trabalhar nas férias ou responder mensagens fora do expediente.”
Se a síndrome de burnout já era presente em escritórios e firmas pelo mundo, o número de doentes aumentou de forma gritante durante a pandemia. Seja por uma carga de horário abusiva, por um ambiente impróprio ou pelo estresse acumulado, a quarentena mostrou ao mundo que o esgotamento mental e físico é um assunto a ser levado à sério. Em um momento onde novos formatos de trabalho – remoto, híbrido e o novo presencial – estão sendo testados, Gama conversou com especialistas na saúde do trabalho para entender quais são as principais dores e desafios do trabalhador e o que pode ser feito para melhorar a situação em que se encontram.
Esgotados e esgotadas
“O burnout não é o fim, mas um freio. É uma oportunidade que o corpo está te dando para você reencontrar o equilíbrio que perdeu”, relata Camargo. Ela conta que demorou dois anos para entender uma verdade fundamental – ela não era uma profissional ruim, só estava vivendo um momento ruim. “É um problema que afeta seres humanos que trabalham demais, independentemente de posição na empresa, de raça, de gênero, etc.”
Em seu trabalho como consultora, Camargo já entrevistou mais de 5 mil pessoas. De acordo com ela, 98% dos entrevistados tinham algo em comum: eles amavam o que faziam. “Quando uma pessoa adoece, é porque ela fez muito. Uma pessoa que fez muito o que ama merece ser punida?”, ela questiona.
O burnout não é o fim, mas um freio
Ela entende que a melhor forma que um empregado tem de se precaver contra o burnout é não negligenciar os sinais que o corpo dá. “É importante não normalizar o anormal.” Queda de cabelo, problema na pele e no estômago, dor de cabeça e na perna, problema na coluna e no pescoço. A lista é gigante, mas varia bastante entre pessoas. Os sinais que precisam ser reconhecidos são os sinais que estão provocando uma dor constante. “É fundamental que o trabalhador inclua a si mesmo e a sua saúde na sua própria agenda.”
Um bom lugar
“Quando uma pessoa adoece, ela não está adoecendo sozinha. Se alguém adoece em um ambiente profissional, é porque aquele ambiente já está adoecido”, relata Camargo. É possível comparar alguém com esgotamento mental em um ambiente de trabalho a um canário em uma mina de carvão – um sinal do que está acontecendo. Se o clima é pesado e exaustivo, é natural que as pessoas adoeçam. Novas políticas de relacionamento e treinamentos corporativos podem ajudar na melhora do ambiente, mas o funcionamento do escritório só irá mudar caso a chefia mude a maneira com que ela encara a labuta. “Quando o funcionário tem um ambiente de trabalho confortável, ele vai render mais. Vai estar menos estressado e mais presente no trabalho”, afirma Debora Dengo, fisioterapeuta com especialização em ergonomia, auditoria e saúde do trabalho.
Mas e quando o ambiente de trabalho é a própria casa, como aconteceu muito desde a pandemia? Nesse caso, existem algumas coisas práticas que as empresas podem fazer para melhorar a vida de seus funcionários. A dificuldade de impor um limite de horário no serviço remoto já é conhecida. Trabalhar em casa muitas vezes significa não ter horário para começar ou terminar. “A empresa deve estabelecer os limites”, diz Dengo. Para ela, é importante que as companhias reforcem com coordenadores e gestores os limites do horário de trabalho. Se possível, silenciar o grupo da empresa fora do horário comercial também é uma boa solução. “Receber uma mensagem de um superior ou colega que diz ‘lembra de abrir o email amanhã assim que você começar o expediente’ pode soar como uma besteira, mas isso tira o descanso do trabalhador. Ele vai dormir ansioso.”
Se o clima é pesado e exaustivo, é natural que as pessoas adoeçam
O conforto mental, no entanto, não é o único que deve ser considerado. Se em um escritório as mesas e as cadeiras foram pensadas para o conforto dos funcionários, o mesmo não pode ser dito para os móveis presentes na casa do empregado. Para Dengo, é essencial que a empresa se disponibilize a oferecer equipamentos que assegurem o conforto para o trabalhador. “A ausência de bons equipamentos gera dores, desconfortos, aumenta o cansaço e atrapalha na concentração. É possível trabalhar alguns dias assim, mas não meses ou anos.”
Além de bons equipamentos, a iluminação também é algo bem importante. Dengo diz que, para o ambiente de trabalho, lâmpadas brancas e frias ajudam na concentração. Evitar trabalhar em ambientes onde a janela esteja diretamente à frente ou atrás da mesa também é uma boa pedida. Por fim, o próprio empregado pode definir algumas pequenas pausas a serem feitas durante o expediente. “O funcionário pode colocar um despertador de uma em uma hora e, sempre que despertar, levantar, tomar uma água e dar uma caminhada. Ficar o dia todo na mesma posição é ruim demais.”
O saudoso cafézinho
“A saúde mental está diretamente relacionada às relações de trabalho. Quando essas relações ficam diferentes, há um prejuízo enorme”, relata Selma Lancman, professora titular da Faculdade de Medicina da USP na área de fisioterapia e terapia ocupacional e especialista em saúde mental e trabalho. No serviço remoto, é comum ter colegas de empresa que atuam com você há mais de dois anos e que você sequer viu os pés e as pernas. A nova dinâmica de trabalho estabelece um limite entre interações sociais e dificulta a proximidade entre trabalhadores. “A interação com colegas produz novas ideias. Mas, para muitas empresas, esse processo não importa. Se é mais barato manter o funcionário na casa dele, assim será feito.”
A conversa entre funcionários pode servir como inspiração ou até mesmo como uma forma de descontração e de tornar o ambiente mais leve. Lancman, no entanto, enxerga um fator crucial que é perdido quando essa dinâmica desaparece – o do feedback. “Na pandemia, a avaliação do trabalho ficou confusa. A medição por horas deixou de fazer sentido, agora é só o resultado. Mas como o chefe pode avaliar o resultado sem acompanhar o processo?”
A interação com colegas produz novas ideias. Mas, para muitas empresas, esse processo não importa
Outro fator que é perdido na dinâmica digital é a reivindicação trabalhista. “O online destrói o senso coletivo dentro de uma empresa”, diz Lancman. Ela entende que o coletivo pode mudar as coisas, mas que um funcionário sozinho não pode fazer nada. “O espaço de reivindicação não é uma somatória de reivindicações individuais, mas sim um espaço de reflexão conjunta.” Somente com apoio dos colegas é possível mudar algo, mas quando você os conhece direito e não tem a oportunidade de conversar com eles sobre outras coisas que não o trabalho, a relação de confiança se enfraquece.
Disputa nos tribunais
“Judicializar um direito é um processo doloroso e demorado”, afirma Izabella Camargo. “Muitas vezes, esse processo até agrava o que você está sentido. Mas pode ser a única maneira de ter acesso aos direitos que estão te negando.” Caso a situação chegue a um ponto extremo, ir à justiça pode ser uma solução. A adição da síndrome do burnout no CID indica uma mudança de paradigma, mas isso não significa que processos relacionados à doença serão fáceis.
“Legalmente, o trabalhador ainda está bastante descoberto. Temos uma legislação precária nesse sentido”, diz Joseane Zanardi, advogada especializada em direito previdenciário e coordenadora estadual do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário). Para Zanardi, a grande questão é entender se a síndrome será compreendida como fruto exclusivo do trabalho ou se será interpretada como algo concomitante. “O reconhecimento da OMS pode ajudar nesse sentido. Não tenho dúvidas que ele influenciará a decisão do médico que está periciando e do juiz que está julgando o processo.”
Zanardi aponta alguns cuidados que os trabalhadores podem adotar que tendem a facilitar a vida deles. Para ela, é essencial que o trabalhador entenda qual é a área em que trabalha e que se aproxime do sindicato responsável por sua atuação profissional. “Com a atual política econômica e trabalhista, o sindicato foi perdendo força. Acredito que esse é o momento para ele voltar a ganhar importância.” Outra dica é guardar qualquer tipo de recibo de despesas profissionais que não façam parte da vida normal do funcionário. “Isso eventualmente pode gerar um reembolso e, caso a empresa não queira ressarci-lo, é possível entrar com uma reclamação trabalhista.”
Por fim, a advogada entende que é importante comunicar ao RH qualquer tipo de questão trabalhista. Muitas vezes, o RH sequer sabe que há um problema tamanho o medo que as pessoas têm de falar sobre os abusos e assédios sofridos. “Sempre é uma situação difícil. O empregado depende daquele cargo e tem medo de ser demitido”, pondera Zanardi. “Mas, em uma eventual ação no Ministério Público do Trabalho, provas e comprovantes da denúncia ajudam bastante.”