Alguns programas de TV me causam repulsa, mas é uma aversão tão enorme que esbarra em fascínio. “Acumuladores” é um programa que me ensinou que havia um problema que eu nem tinha noção da sua existência: pessoas acumulam coisas. Roupas, objetos, lixo. Na minha inocência, não pensei que isso era uma doença. Morei grande parte da vida com meus pais numa casa com sótão. Já tivemos uma segunda TV lá em cima, uma mesa de ping pong, enfim, o sótão era um lugar com coisas a se fazer. Os três filhos foram crescendo e de repente móveis velhos subiam, cadernos e livros já usados também iam para o sótão, virou um depósito. Mas pai&mãe com organização quase militar sempre arrumam o sótão: dão coisas, jogam fora, nunca virou uma zona, nunca. Em algum lugar da mente, eu pensava que as pessoas eram assim: quando chegava num nível absurdo de bagunça, arrumava-se. Ledo engano. Ledo.
Tranquei meus móveis e tralhas (junto com as tralhas do meu parceiro) num guarda-móveis por quase dois anos. Pandemia começou, minha conta zerou, pedi desconto para a proprietária e ela me disse “R$ 100 tá bom?”, ri e chorei com a mesma força e resolvi trancar tudo num guarda móveis e me mudei pra casa que minha avó tem em São Pedro da Aldeia. Não tive auxílio emergencial do governo, mas tive auxílio familiar e, sem ele, não sei do que seria de mim nesses dois anos. Lembro de embalar as coisas e pensar quando eu as veria de novo. Livros, miniaturas, cartinhas, um sofá recém-comprado. Ainda não havia vacina, ainda não havia luz do fim do túnel, nem parecia haver um túnel, e sim um mega engarrafamento na entrada dele. Eu não sabia que dois anos depois eu abriria todas as minhas caixas e gargalharia de mim mesma. “Por que guardei isso? Por que ainda tenho isso? Como pude viver dois anos sem isso e agora terei de volta?”
A vida já é pandêmica para muita gente há anos. Eles vivem para dentro e não para fora. E não dá para saber porquê, tampouco julgar
Lembrei do programa “Acumuladores”. A primeira vez que vi, fiquei hipnotizada. Uma mulher não conseguia jogar nada fora. E quando digo nada, me refiro também às suas fezes. Que ela fazia num saco plástico e deixava num canto da casa. Na maioria das vezes rola intervenção da família, mas acho que nesse caso, a família desistiu e rolou denúncia da vizinhança mesmo, porque imagine o cheiro… Eita ferro! Quando os profissionais chegaram, encontraram cadáveres de gatos também, olha, uma coisa assim de embrulhar o estômago. No decorrer do programa, com ajuda terapêutica, você entende que tal pessoa foi abandonada ou perdeu tudo numa enchente quando criança ou os pais a espancaram até quase adulta. Os bastidores são tão deploráveis quanto a higiene da residência. A vida não é brinquedo mesmo. No início eu ficava estarrecida de como era possível chegar naquele ponto. Depois fui compreendendo que a vida já é pandêmica para muita gente há anos. A gente ficou uns anos sem sair de casa, mas há dissidentes em toda parte do mundo, e estes não operam dentro do sistema capEtalista como o resto do planeta. É uma outra ordem, é um outro método. Há muitas pessoas vivendo para dentro e não para fora. E não dá para saber porquê, tampouco julgar.
No início do programa, sempre desvendava um traço de loucura nos participantes. Um olhar, um gesto, e eu já sabia: a loucura está presente. Eu era mais nova e mais cheia de preconceitos. Conforme cresci e optei por sobreviver, fui percebendo que a qualquer momento eu posso ter o olho da loucura ou o gestual esquisito e equivocado da pessoa que não joga fora nenhum papel. Das minhas tralhas num guarda-móveis para uma profissional me ajudar num programa sobre acumulação, é um pulo. A gente acha que é longe, que “imagina, jamais serei esse tipo de pessoa”, mas um dia você acorda e não sabe como acumulou tudo aquilo que carrega: tantas roupas, sapatos, enfeites. Por que tantos copos se sou só uma e nunca recebo tanta gente assim? Fazer mudança é enlouquecedor mas não mudar deve ser mais ainda. Taí o programa que não me deixa mentir: as pessoas que se recusam a jogar fora e transformar seus ambientes de tempos em tempos, enlouquecem. É chato, cansativo, exaustivo, mas a arrumação da casa, a triagem de lixo no meio das lembranças amadas, pode sim trazer um ar de sanidade. A gente joga fora pra trazer espaço. Espaço é alívio. Alívio é benesse.
A triagem de lixo no meio das lembranças amadas pode sim trazer um ar de sanidade. A gente joga fora pra trazer espaço. Espaço é alívio. Alívio é benesse
Na próxima vez que você guardar um treco ou um cacareco, recomendo ver esse programa primeiro. Há objetos que são importantes para o nosso “círculo da identidade”, como diz minha amiga Leïlah Accioly. A gente olha para um altarzinho com cinco quinquilharias (que podem ser carésimas, tá? Só tô chamando de quinquiharia pra exemplificar) e a gente pensa “Isso é casa, eu sou isso”. Sem dúvida, ajuda a criar um espaço, um elo. Mas é preciso ter cuidado. Um negocinho a mais e o desequilíbrio pode arruinar tudo. Me despeço de você, que meu leu até aqui, pois ainda preciso abrir umas dez caixas. Parei para comer e para escrever. Livros, figurinos, louças. Por mim ficava aqui um pouco mais, mas chega uma hora que se eu recusar o chamado da organização, a loucura vai tocar minha campainha, e eu temo abrir essa porta. Porque cá entre nós, de vez em quando dá vontade de abrir. Mas não, não farei. O lixo que me aguarde.
Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”
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