CV: Joel Luiz
O advogado Joel Luiz tem escritório na favela do Jacarezinho e muitas ideias para transformar o sistema prisional brasileiro
Joel Luiz não é um herói ou mártir, ele faz questão de deixar isso bem claro. Nascido na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, onde mantém seu escritório, o advogado de 31 anos não acredita em mocinhos e bandidos. Para ele, essa dicotomia sequer faz sentido — ninguém é 100% bom ou 100% mal.
Aos oito anos, a família de Joel mudou de cidade para procurar novas oportunidades — e para se manter em segurança. Buscando uma vida melhor para o filho, seu pai entrou no tráfico de drogas. A vida deles não era luxuosa, mas o advogado pôde completar seus estudos em uma escola e faculdade particular. Após a formatura, o pai largou o tráfico.
Para Joel, sua história e a do seu pai deve ser contada pois exemplifica o comércio varejista de drogas como ele efetivamente é. “Existem figuras como o Pablo Escobar e existe o moleque no morro que faz 600 reais por semana. Esse menino não é o inimigo do Estado, não é ele que faz o tráfico de drogas girar”, afirma o advogado.
Ele se destacou graças a sua atuação na área de direito penal em conjunto com sua militância no movimento negro, o que lhe rendeu uma plataforma — ele tem mais de 55 mil seguidores no Twitter. “Eu não sou um salvador da pátria, só estou aqui porque outros vieram antes de mim. Nossos passos vêm de longe”, afirma o advogado citando a frase de Jurema Werneck.
Eu estou soltando criminalizados a partir da leitura de que todo crime é um crime político
A defesa de criminalizados — não criminosos — vem da concepção de que todo crime é um crime político. Abolicionista penal, Joel já chegou a acreditar no direito como ferramenta de mudança, mas hoje entende seu trabalho como redução de danos.
“Quando eu solto um menino ajudo aquela família, mas ainda tenho muita gente para soltar. Infelizmente, só meu nome e minha assinatura não vão dar conta. Só que a minha mobilização, em conjunto com outras pessoas, ajuda a construir condições para que criminalizados consigam sair da prisão, ou para que outros não entrem”.
Ele entende que o espaço que ocupa, e tudo o que constrói, é parte de uma movimentação coletiva. Sua preocupação é que esse movimento alcance uma sociedade onde negros e negras possam ter todas as oportunidades e possibilidades que desejam.
“Estar onde eu estou hoje só vale alguma coisa se outros negras e negros me seguirem. Eu espero o em dia que todos os pretinhos e pretinhas tenham a oportunidade de vivenciar as coisas que eu estou vivenciando”. Confira a conversa de Joel com Gama.
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G |O que te trouxe até aqui?
Joel Luiz |É uma correlação de fatores. Tem a competência da atuação profissional e tem o simbolismo da causa, de falar em meu próprio nome. O trabalho em movimentos sociais faz parte disso, é uma consequência da forma como eu me vejo e de quem eu sou. Antes de advogado, sou homem, negro e favelado. Tudo o que eu faço parte desse viés. Se eu fosse fisioterapeuta, eu teria um consultório de fisioterapia dentro do Jacarézinho. Como eu sou um advogado, eu tenho um escritório de advocacia no Jacarézinho. Esse espaço existe na favela porque eu quero voltar a minha atuação para o meu povo favelado. Quero me colocar como uma via de acesso ao judiciário para uma população que em regra não tem esse acesso. Quantos escritórios tem na favela? É entender enquanto militante e enquanto advogado as minhas prioridades. A partir disso, direcionar minha atuação profissional enquanto ato político.
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G |Você escreveu um texto para o The Intercept onde disse que, quando começou a faculdade de direito, queria ser delegado. O que te fez mudar de ideia e ir para a área de advocacia criminal?
JL |Concurso público não é feito para pobre neste país. Certamente existem exceções à regra, mas quem pode efetivamente parar a vida por um ou dois anos para estudar? Os concursos públicos para altos cargos dentro do judiciário são muito disputados. Não adianta achar que alguém vai trabalhar oito horas por dia, pegar ônibus na ida e na volta, chegar em casa e aí começar a estudar. Não há condição de estudar assim de maneira regular e produtiva. Eu não ia parar minha vida quatro anos para estudar, não tinha dinheiro ou psicológico para isso. E eu descobri, quando comecei a exercer a advocacia, que advogar é muito mais gostoso. Ao menos a partir da minha leitura que entende esse ato como político. Prefiro isso a ser um burocrata do estado.
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G |Qual a sua missão no direito penal?
JL |Redução de danos. Quando eu proponho o debate sobre política de drogas, eu estou fazendo algo muito paliativo, porque é um debate estrutural. Se amanhã a gente legaliza a produção, o comércio e o porte de todas as drogas, 30% do sistema prisional sai das cadeias. Essa é uma mudança efetiva, algo que afeta as estruturas. Mas quando falamos sobre esse assunto, ainda falamos no campo das ideias. É uma máquina muito antiga e muito bem estruturada. Uma grande máquina de moer carne negra. Eu fiz a leitura de que soltar bandido é muito melhor do que prender. Eu não estou soltando criminosos, estou soltando criminalizados. É um outro debate, muito mais profundo e que boa parte da sociedade ainda não tem paciência ou condições de fazê-lo. Mas eu estou soltando criminalizados a partir da leitura de que todo crime é um crime político.
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G |Qual a importância do papel que você exerce no sistema judiciário?
JL |Enquanto homem negro, quando eu falo contra o sistema prisional, não falo de maneira abstrata. Falo de uma máquina que conheço e que poderia moer o meu corpo. Tenho o privilégio de ser advogado, mas a noite, numa rua escura de Jacarézinho, sou só mais um preto qualquer na mira da PM. É só quando chegam perto que as pessoas veem que sou um advogado. Essa costa quente, como diria o ditado popular, me permite falar não só sobre teoria. Estamos falando sobre um sistema que rotula a partir da raça. Quando eu me coloco como abolicionista, parto de um entendimento mais profundo para esse debate. Vou falar sobre a questão teórica, as perspectivas históricas, as técnicas e os dados. E depois disso, vou falar sobre ser preto. Vou te falar que já fui parado pela PM com 12 anos, que já botaram uma pistola dentro da minha calça e puxaram minha cueca para ver se eu tinha drogas comigo. Nenhum pesquisador branco vai te falar isso, porque eles não vivem isso. É isso que me garante propriedade para falar sobre esse assunto tanto de maneira técnica, na parte de estudo e pesquisa, quanto de maneira prática, por ser um homem negro. O meu papel é de provocar um debate. As pessoas às vezes até tem interesse no assunto, mas não tem paciência de sentar e discutir a diferença entre criminoso e criminalizado. Elas querem empurrar para o outro as mazelas dos nossos problemas.
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G |Qual o seu conselho para alguém que quer atuar na sua área?
JL |As pessoas que trabalham na área do direito precisam entender que o direito é uma ferramenta que está a serviço dos outros. Quando você advoga para uma pessoa, é a vida dela que está em jogo. É a liberdade, a possibilidade ou não daquela pessoa jantar com o filho em casa. É necessário que toda a pessoa que atua no mundo jurídico, sobretudo advogados, entendam a força política de defender o direito de alguém. Quando um direito é violado, todos os outros estão ameaçados. Eu não trago nenhuma ode a pobreza. Ser pago é fundamental, mas não pode ser o norte. Dá para viver bem cobrando justo. Quando você cobra muito, você restringe alguém de ter o direito defendido. Quando alguém me contrata e eu falo que meu serviço vale 10 mil e a pessoa só tem 7 mil, eu não estou deixando de ganhar 3 mil. Eu estou impedindo que aquela pessoa, que tem condição de me pagar só 7 mil, faça o direito dela valer a partir do meu trabalho. Ela pode até arrumar alguém que faça por 7 mil, mas e se ela não arrumar? Ela não vai ter o seu direito resguardado.
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G |Você teve que abrir mão de algo para chegar onde chegou?
JL |Eu não sou filho das cotas, não sou filho do Prouni e não sou filho de nenhuma ação afirmativa de faculdade. Eu sou filho de um traficante e estudei graças a um traficante. Eu tive a oportunidade de fazer um colégio particular, de fazer uma faculdade particular e entrar no mercado de trabalho fazendo estágio. Eu tive tudo do bom e do melhor? Não, eu tive o mínimo que toda pessoa deveria ter. Uma educação de qualidade e a possibilidade de trabalhar. Eu não sou um exemplo de meritocracia, não tive que abrir mão de nada, mas tudo o que eu tive, para a maioria dos brancos desse país, é o padrão de vida. Eu não tive viagem para o exterior enquanto menor de idade, eu não tive carro enquanto menor de idade. Eu tive muito para quem é preto e o padrão para a maior parte dos brancos.
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G |Você vive para trabalhar?
JL |Eu não quero que essa resposta pareça uma romantização do excesso de produtividade, ou de uma supervalorização do trabalhador produtivo. Eu não sou funcionário de ninguém, trabalho por conta própria. Se eu trabalhar doze horas por dia, estou trabalhando para mim mesmo. Isso eu acho ok. Eu não vivo para trabalhar, mas o meu trabalho é contínuo. Às vezes estou em uma reunião às 20h, que pode ser trabalho mas pode ser militância. Isso faz parte de quem eu sou. Não é o viver para trabalhar do trabalhador explorado, que não dá conta de fazer as coisas nas oito horas horário comercial e extrapola para a noite. Quando eu trabalho a noite, geralmente é uma live, uma reunião, um projeto. Isso é militância. A militância e o meu trabalho se confundem, o que faz com que o meu horário seja para além do horário comercial. Se o meu trabalho tem um lado político, às vezes eu não estou trabalhando, mas ajudando a construir algo diferente. Para mim isso não é trabalho, é como se fosse fazer uma poupança pros meus filhos. É ajudar a construir o futuro deles. Eu não vivo para trabalhar não, mas eu trabalho bastante.