Quanto vale o seu boicote?
Com vetos a grandes marcas cada vez mais comuns nas redes sociais, especialistas discutem a efetividade da estratégia e até que ponto ela tem impacto efetivo nas empresas
“Eu acho que pode se casar com homem e pode se casar com mulher”, diz uma criança, meio sem jeito em frente às câmeras, apesar da presença do pai ao lado. A fala faz parte da campanha lançada pela rede de fast-food Burger King em junho, em que crianças e pré-adolescentes falam sobre homossexualidade, em comemoração ao Dia Internacional do Orgulho Gay. Pouco depois de ser lançado, um movimento contrário ao vídeo divulgado pela empresa começou a crescer na internet, especialmente entre grupos conservadores, que iniciaram um boicote contra o restaurante
O comercial ficou entre os assuntos mais comentados nas redes sociais. No YouTube, as reações negativas superaram as positivas. Contrária às críticas, iniciou-se também uma onda de apoio à ação de marketing. Em uma resposta de caráter homofóbico ao conteúdo do vídeo, o apresentador da Rede TV! Sikêra Jr. chegou a definir os homossexuais como “raça desgraçada” — acabando por perder dezenas de patrocinadores na sequência.
O enredo do episódio de um mês trás pode até ter suas particularidades, mas a história já é velha conhecida. Na verdade, até recorrente. No ano passado, aconteceu com a Natura depois que a marca, que anuncia a inclusão e a diversidade como valores, anunciou Thammy Miranda em sua campanha do Dia dos Pais. Em 2015, foi a vez do Boticário, que sofreu com a reação de parte do público após veicular uma propaganda com casais homossexuais no Dia dos Namorados.
Conforme as marcas tomam mais posição, as redes sociais se organizam para cobrar respostas e punir quem sai da linha
Conforme grandes marcas vêm tomando posições mais fortes em questões sociais como diversidade e o combate ao preconceito, e as redes sociais se organizam para cobrar respostas ou punir quem “sai da linha” — ao menos na opinião dos internautas —, movimentos amplos de boicote têm se formado com mais frequência nos últimos anos. Mas eles de fato têm efeitos práticos em gigantes do mercado, como o próprio Burger King?
Qual o impacto?
Apesar de os casos citados até aqui serem de marcas que apresentaram ações consideradas progressistas, a gerente-geral da agência de comunicação Edelman Brasil, Ana Julião, lembra que o mesmo pode acontecer numa situação oposta. Ela aponta o caso da proposta de boicote na internet à rede de hamburguerias Madero, cujo proprietário, o chef Junior Durski, disse no início da pandemia que “não podemos parar por 5 ou 7 mil pessoas que vão morrer”. Hoje, a realidade já multiplicou em cerca de cem vezes a estimativa de vítimas do empresário.
Para Ana, na grande maioria dos casos, os efeitos do boicote trazem pouco impacto concreto, especialmente quando ele envolve grandes empresas. “É difícil mensurar o quanto afeta em vendas, isso só a marca pode dizer. Mas, em conversa com diretores de marketing de várias empresas, dá para ver que o efeito costuma ser de curto prazo, com uma recuperação muito rápida.” O que, segundo ela, não significa que a reputação da marca vai se recuperar assim tão rapidamente.
Não há uma regra única de como lidar com um boicote. No caso da propaganda do Burger King, a profissional considera que, por ser uma causa assumida de forma legítima pela marca, a do combate à homofobia, o ideal é manter a atitude corajosa e coerente com o posicionamento apresentado. Mas o mesmo não vale para todos. “Se a marca não está construindo uma proposição positiva e realmente achar que errou, cabe uma reparação. Pedir desculpas é algo absolutamente legítimo.”
O que faz mais sentido para ambos os caso, ela afirma, é a necessidade de estabelecer um diálogo com os consumidores, independentemente de suas posições. “Passa uma sensação de intolerância se você se nega a dialogar e interrompe toda e qualquer comunicação. Algo contraditório em relação ao mundo em que a gente vive.”
O cancelamento vem
Estabelecer uma relação mais próxima com os consumidores hoje é considerado um dos principais desafios no mercado. Segundo um estudo realizado pela Edelman entre maio e junho, confiar em uma empresa e saber que ela tem boa reputação já são características mais importantes para a maioria dos clientes do que simplesmente amar a marca.
O chavão de que ‘quem lacra não lucra’ diz respeito apenas ao curto prazo
Além disso, 93% das pessoas afirmaram esperar que as empresas tomem medidas que vão além dos produtos e serviços que oferecem. Ações como financiar boas causas, gerar uma melhora na sociedade e apoiar comunidades locais. “Tomar posicionamento ajuda a criar uma relação de confiança e cria uma tendência positiva a longo prazo, construindo uma reputação. Esse chavão de que ‘quem lacra não lucra’ diz respeito apenas ao curto prazo”, afirma Ana.
De acordo com a estrategista de marca Beatriz Guarezi, hoje assumir qualquer posicionamento é quase um sinônimo de cancelamento. “Posicionamento é abrir mão, você não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Esteja ao lado do que representa melhor o seu negócio e o seu público”, explica a especialista, criadora da newsletter Bits to Brands, sobre tendências de tecnologia e comportamento para marcas.
Esteja preparado
Para o publicitário Márcio Oliveira, as querelas políticas dos últimos anos no país também têm influenciado as posições das marcas. “Algumas delas usando até mesmo seus sócios como expoentes destas posições, como os casos da Luiza Trajano e do Luciano Hang”, aponta Márcio, que é business partner da agência youDb e sócio da consultoria Quid Si Pensamento Criativo.
Um cuidado importante é não errar na dose ao se posicionar ou assumir uma causa, diz o publicitário. Caso isso aconteça, há grandes chances de a ação parecer falsa, além de atrair críticas de quem pensa de forma oposta ou mesmo dos chamados haters da marca. “Quando isso acontece, dependendo do tamanho do barulho, nunca trará ganhos nem financeiros e nem de reputação.”
Por outro lado, não vale a pena investir nessa estratégia se a marca não estiver pronta para reações negativas. É preciso que essa possibilidade entre no cálculo desde o início. Márcio também diz não acreditar na eficácia de boicotes, principalmente porque a sociedade ainda não faz escolhas de acordo com o posicionamento das empresa e nem favorece o coletivo sobre a necessidade individual.
“Em termos práticos, é só vermos que empresa fechou ou teve um grande prejuízo por causa de um boicote.” Muitas vezes, segundo ele, a preocupação inclusive é maior em relação ao tempo de exposição negativa na mídia do que ao boicote em si.
Uma andorinha não faz verão
Numa dinâmica muito semelhante à que acontece nos casos de cancelamento, ao iniciar um boicote nas redes sociais, muita gente confunde expressão individual com ação política, declara a jornalista e pesquisadora Anna Vitória Rocha. “Pelas conversas que surgem na internet, as pessoas conseguem ter voz até mesmo frente a uma grande empresa, o que antes era impossível. Mas precisamos pensar que esse movimento não pode ser individualizado”, afirma a mestranda da USP, que hoje pesquisa o papel das mídias sociais na construção da opinião pública sobre questões de gênero.
A ferramenta do boicote deve ser usada ou para atingir o bolso de uma empresa ou para trazer visibilidade a uma causa
O movimento precisa ser coletivo e bem estruturado porque, de forma geral, os impactos das ações de grandes marcas não são pontuais e não atingem apenas um indivíduo. “Se eu decidir que vou boicotar a Zara, é uma postura política válida, mas ela não vai fazer diferença na contabilidade da empresa.” Por outro lado, se um grupo de influenciadores decidir que não vai mais fazer publicidade para fast fashion, aí se torna uma ação efetiva. A ferramenta do boicote, diz Anna, deve ser usada ou para atingir o bolso de uma empresa ou para trazer visibilidade a uma causa, colocando pressão por uma mudança de postura.
De acordo com a pesquisadora, na hora de trazer respostas para o público, o melhor caminho é sempre apresentar ações concretas. Portanto, se uma marca faz uma propaganda a favor da diversidade, mas é pouco diversa em seu quadro de funcionários, o perigo é que ela acabe apanhando de defensores de ambos os lados da questão. Já na hora de reconhecer um erro frente ao público, não basta apenas um pedido protocolar de desculpas. O importante é mostrar o que a empresa está fazendo para mudar seus procedimentos e impedir que um problema como aquele ocorra novamente.
“As pessoas preferem que alguém erre, assuma com honestidade e mostre no dia a dia que está tentando mudar. É melhor do que tentar maquiar o problema e fingir que foi uma coisa pontual.”
Para Beatriz, da Bits to Brands, a causa principal é que determina o caminho de um boicote. Se uma empresa que prega a diversidade é denunciada por práticas internas racistas, aquilo pode afetar um público que de fato consome a marca, gerando um impacto mais concreto e deixando uma marca em sua reputação. “Quanto mais importante aquela causa for para a empresa, mais intensidade o boicote vai ter.”
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