O que deve mudar nas cidades com a crise do clima — Gama Revista
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

O que deve mudar nas cidades com a crise do clima

Com a previsão das temperaturas em altas nos próximos verões, conheça os mecanismos para amenizar os efeitos das mudanças climáticas nos centros urbanos

Leonardo Neiva 05 de Janeiro de 2025

O que deve mudar nas cidades com a crise do clima

Leonardo Neiva 05 de Janeiro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Com a previsão das temperaturas em altas nos próximos verões, conheça os mecanismos para amenizar os efeitos das mudanças climáticas nos centros urbanos

E aí, o que você está fazendo para lidar com as altas temperaturas neste verão? Nos últimos anos, em meio a sucessivos recordes de calor, à falta ou excesso de chuvas e a outros efeitos da crise do clima, o termo adaptação climática vem ganhando cada vez mais relevância e visibilidade. Recentemente, ele foi um dos temas centrais na COP29, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2024, e deverá voltar à pauta ainda este ano, na edição do evento que será realizada aqui no Brasil. E, se a ONU estima que até 68% da população global estará em áreas urbanas até 2050, se adaptar significa transformar as próprias cidades para lidar com os efeitos do clima.

Apesar da urgência do tema, uma das principais reclamações de ativistas e especialistas é a demora do governo brasileiro para implementar sua Estratégia Nacional de Adaptação do Plano Clima — uma revisão, ainda em discussão, do planejamento criado em 2016. Mas, como apontam pesquisadores do tema consultados por Gama, mesmo com uma coordenação nacional imprescindível, esse tipo de mudança depende ainda mais de atores e gestores regionais, já que a adaptação precisa ser a mais adequada possível às necessidades e realidades de cada município.

“As cidades são ao mesmo tempo os locais onde há maior exposição às mudanças climáticas, pois é onde a maioria da população vive, e onde existe uma alta vulnerabilidade aos eventos climáticos extremos, como ondas de calor, chuvas torrenciais e secas prolongadas”, destaca o professor do Departamento de Ecologia da USP Jean Paul Metzger. Com esses eventos a cada ano mais frequentes, intensos e duradouros, se torna urgente aumentar a resiliência, trazer mais segurança para a população e poupar vidas nessas áreas, diz o docente.

As cidades são os locais onde há maior exposição às mudanças climáticas, pois é onde a maioria da população vive, e onde existe uma alta vulnerabilidade aos eventos climáticos extremos

O geógrafo e professor da UERJ Antonio Carlos Júnior também aponta que ações para tentar reverter o quadro atual de mudanças climáticas já não são mais suficientes — o planeta deverá sofrer de qualquer maneira com as consequências da crise nos próximos anos e décadas. “Chegamos em um grau de alteração tão significativa da nossa atmosfera que as mudanças aconteceriam mesmo que a gente parasse hoje todos os níveis de emissão atuais”, conta o geógrafo, que é também pesquisador de adaptação a alterações do clima. “Por isso o conceito de adaptação começou a ganhar uma tônica tão significativa.

Mas o que é preciso para sofrer menos com o calor excessivo, chuvas torrenciais, inundações e deslizamentos, apenas alguns dos efeitos dessa crise? A partir de conversas com estudiosos do tema e com base também em exemplos nacionais e internacionais, Gama explora a seguir alguns dos principais dispositivos que podem amenizar esses impactos para quem vive em espaços urbanos.

Refúgios climatizados

Se muitos de nós ainda enxergamos o ar condicionado como um luxo, o geógrafo e professor da UERJ Antonio Carlos Júnior alerta que ele já deixou de ser há algum tempo. “Hoje é um item de saúde pública”, aponta o geógrafo e pesquisador de adaptação a mudanças climáticas. O especialista resgata um estudo recente feito na Austrália apontando que pessoas que utilizam ar condicionado no dia a dia têm uma percepção muito diferente do calor em comparação com as que não usam. O problema, ele diz, é que os efeitos negativos das altas temperaturas são os mesmos para todos. “Ou seja, a pessoa tem dificuldade de se perceber em risco quando exposta a uma situação de calor, porque o corpo dela não sabe disso.”

Na verdade, o ar condicionado está no centro de estratégias de alívio do calor extremo em algumas grandes cidades, em meio ao aumento das temperaturas. É o caso dos ambientes climatizados, com temperatura, umidade e qualidade do ar controladas, e que têm ganhado destaque nos últimos anos. Durante ondas de calor acima das médias regulares, a cidade de Paris, por exemplo, criou os chamados “refúgios frescos”, onde, além da qualidade do ar, também eram distribuídas garrafas de água a quem precisasse.

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“Esses refúgios seriam locais mais frescos, em prédios ou áreas de uso público que tenham climatização, em áreas abertas sombreadas por árvores ou com disponibilidade de água para se refrescar, e que serviriam de abrigos em momentos muito quentes”, reforça Jean Paul Metzger. Segundo ele, essas são estruturas essenciais para as populações mais vulneráveis ao calor, como idosos e crianças.

“Refúgio fresco” em Paris
“Refúgio fresco” em Paris
Reprodução/C40 Knowledge Center

Outra população extremamente vulnerável às mudanças do clima no contexto urbano é a de pessoas em situação de rua, como aponta Júnior. “Temos dado atenção significativa a elas porque estão à margem do sistema”, afirma. Por isso, para o pesquisador, como questão de saúde pública é imprescindível criar mecanismos como esses — que diferem de abrigos, muitas vezes precarizados e sem uma infraestrutura mínima. Algo que precisa ser feito com urgência, já que o país tem batido recordes de altas temperaturas ano após ano.

Ações de mitigação

Algumas das ações realizadas em grandes cidades pensando nas mudanças climáticas visam não apenas adaptar a região aos efeitos do aquecimento global, mas também mitigar seus impactos. “A mitigação é a parte mais bonita, porque você está realmente pensando no futuro. Quanto mais a gente mitigar, menos vai ter que se adaptar”, aponta a gerente de projetos do Centro Brasil no Clima, Raiana Soares.

Estamos falando de medidas que de fato podem abrandar as mudanças climáticas em vez de apenas lidar com seus efeitos. Entram nesse balaio, por exemplo, ações como a redução do uso de combustíveis fósseis e a recuperação de áreas verdes, que têm impacto comprovado na diminuição do calor extremo dentro do ambiente urbano. Esses projetos variam desde a instalação de telhados verdes em meio ao concreto até a criação de parques e praças arborizadas, que ajudam a aliviar o calor, assim como a manutenção de manguezais e recifes para amenizar os impactos marinhos nas zonas costeiras.

Muitos desses projetos estão incluídos nas soluções baseadas na natureza, que visam restaurar ou proteger ecossistemas naturais. “Em geral, são soluções com boa relação custo-benefício, alternativas ou complementares às soluções cinzas, de engenharia, como piscinões, diques e muros de contenção de deslizamento”, reforça o docente.

Outra ação para mitigar o impacto das mudanças no clima é investir em transição energética. Soares cita como exemplo um projeto em que o Centro Brasil no Clima vem trabalhando no Rio Grande do Sul — estado que tem uma dependência histórica de energia com base na mineração —, numa parceria com a empresa WayCarbon, especializada no tema. “Não existem saídas fáceis. Por isso, é preciso muito diálogo e participação, para que a gente encontre soluções menos danosas e que busquem transições justas”, diz Soares.

Sistemas de drenagem

A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul em 2024 ou mesmo os deslizamentos devido às chuvas em São Sebastião, no litoral paulista, em 2023, e em estados do Nordeste no ano anterior mostram que o levante das águas tem sido constante. “É muito evidente que os desastres relacionados ao clima estão aumentando, e isso faz com que as adaptações se tornem ainda mais prioritárias”, explica o geógrafo Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano do WRI Brasil, instituto de pesquisa focado em soluções socioambientais.

Além de um planejamento urbano que, em meio a chuvas e inundações, dê mais segurança aos moradores das cidades — em sua maioria com um problema crônico de crescimento desordenado e construção de casas em encostas desprotegidas —, outro desafio é a criação de sistemas eficientes para drenar essas águas em excesso. E não faltam exemplos muito além de grandes obras de engenharia, como a construção de piscinões e diques.

É muito evidente que os desastres relacionados ao clima estão aumentando, e isso faz com que as adaptações se tornem ainda mais prioritárias

Uma das opções a se inspirar é o caso da China, que criou as chamadas cidades-esponja após a grande enchente que atingiu Pequim em 2012. Hoje, a capital e outras cidades chinesas, como Xangai e Jinhua, já têm áreas específicas para absorver e reter as chuvas, além de sistemas que reduzem a velocidade dos rios, abrandando a força das águas mesmo com precipitações bem acima da média.

Evers, que atua no Rio Grande do Sul, tem estudado a aplicação de soluções baseadas na natureza para lidar melhor com as chuvas e enchentes, como a instalação de jardins de chuva. É o caso de um parque linear dentro de um contexto urbano, que geralmente fica associado a um rio ou córrego. Além de trazer uma área verde relevante para a cidade, ele também pode desempenhar a função de drenar, indica o especialista.

Hoje, o WRI apoia a criação de dois projetos de parques urbanos, em Maranguape (CE) e Campo Grande (MS). Evers cita como exemplo a implementação do Parque Orla, na Lagoa de Piratininga, em Niterói (RJ), que possui um mecanismo para filtrar as águas que chegam à lagoa e ajuda a melhorar também a drenagem na região. “Com a implementação de soluções baseadas na natureza, estamos levando benefícios como a volta de uma fauna de espécies nativas. Um caso engraçado é que voltou a ter até jacaré”, conta Evers.

Parque Orla, na Lagoa de Piratininga, em Niterói (RJ)
Parque Orla, na Lagoa de Piratininga, em Niterói (RJ)
Alex Ramos/Prefeitura de Niterói

Adaptações baseadas em comunidades

Se levarmos em conta as diferenças geográficas, climáticas e sociais que existem dentro de uma mesma cidade, fica claro que não há uma solução única para o problema. Pelo contrário, o que defende Raiana Soares, do Centro Brasil no Clima, é que a adaptação climática precisa ser sempre pensada de acordo com as características específicas de cada local e população.

“Sejam elas especificidades físicas, hidrológicas, espaciais, culturais, históricas ou até políticas”, afirma. Aliás, replicar algumas ações da mesma forma que foram realizadas em outros lugares pode ser até problemático, ela completa. “Pode onerar municípios que buscam essa saída sem necessariamente solucionar seus problemas, podendo eventualmente agravá-los.”

Nesse caso, entra em cena o que o pesquisador Antonio Carlos Júnior chama de adaptações baseadas em comunidades. “Aquela pessoa que vive no [complexo da] Maré ou em Paraisópolis, em São Paulo, entende a sua realidade e tem mecanismos para subverter essa realidade, através de medidas de adaptação”, considera. Caso contrário, ele diz, o país acaba produzindo políticas públicas pensadas exclusivamente por especialistas, mas que acabam falhando ou se mostrando insuficientes na hora da aplicação.

E o que seriam essas adaptações, especialmente no caso de regiões periféricas, onde muitas vezes falta até a infraestrutura básica? As possibilidades são muitas. Desde casas sobre palafitas para evitar a recorrência de inundações até alterações no transporte público. Nesse segundo caso, frotas de ônibus antigas e sem ar condicionado geram ainda mais problemas para quem mora nas periferias e passa horas todos os dias dentro de um ônibus abafado.

Outra possibilidade que tanto Júnior quanto Soares apontam é a discussão de horários mais flexíveis entre profissionais que trabalham ao ar livre e, consequentemente, debaixo de sol e de um calor que pode chegar acima dos 40º em algumas regiões. Uma mudança que requer mais diálogo e planejamento do que muita tecnologia ou grandes projetos.

“A diminuição da carga horária ou eventualmente alocar as pessoas para locais mais próximos do trabalho, mas daí tem toda uma questão de especulação imobiliária que constrange essa discussão”, declara a representante do Centro Brasil no Clima. “Seria importante repensar essas diretrizes, porque algumas saídas importantes acabam sendo negligenciadas.”

Segurança hídrica

Se, de um lado, o excesso de chuvas e alagamentos se tornou um problema frequente em muitas regiões, de outro, a crise também tem causado a escassez de água potável em muitos lugares. “Dez anos atrás, São Paulo teve uma crise bem severa de falta de água. Tudo isso está relacionado à agenda de adaptação”, explica Evers, do WRI Brasil.

Para além da distribuição gratuita de água em pontos estratégicos no combate aos efeitos do calor, especialistas apontam que é essencial pensar em alternativas para garantir um mínimo de segurança hídrica à população, já ameaçada também pela destruição de biomas importantes do país, como a Amazônia e a Mata Atlântica. Em 2024 mesmo, diversas populações sofreram com a falta de água na região amazônica, inclusive dentro da cidade Manaus.

O Centro Brasil no Clima elenca como ações importantes nesse sentido a construção de novos reservatórios, que aumentariam a capacidade de armazenamento de água — mas que também podem ter impacto relevante para o meio ambiente local —, e cobranças pelo uso excessivo e indevido de recursos hídricos, ajudando a incentivar uma utilização mais eficiente. Depois da crise com a falta de chuvas em São Paulo em 2014, o estado tomou como iniciativa campanhas para redução do desperdício e obras como a transposição de água da bacia do rio Paraíba do Sul, para complementar o abastecimento.

A preservação e recuperação de áreas verdes, parte das soluções baseadas na natureza, também pode trazer uma série de efeitos positivos, aponta Metzger. Além de reduzir a poluição e amenizar os efeitos do clima, ajudar a proteger ecossistemas é uma maneira relevante de preservar o ciclo natural das águas. Uma cidade como Maringá (PR), líder no ranking de saneamento no Instituto Trata Brasil, hoje tem 99,99% da população atendida com água potável graças à implantação de projetos como o Rio Limpo, focado em monitorar a qualidade da água nos córregos e impedir que resíduos sólidos cheguem aos rios que atendem a população urbana.