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ReportagemO humor do TikTok virou o mainstream?
Vídeos de comédia na rede vêm alçando influencers à fama, ganhando espaço na mídia tradicional e diversificando o humor no país
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O humor do TikTok virou o mainstream?
Vídeos de comédia na rede vêm alçando influencers à fama, ganhando espaço na mídia tradicional e diversificando o humor no país
“Eu costumo comentar os looks das pessoas nos eventos. Fico o dia inteiro pensando, pegando referências e detonando os looks.” Assim Gabriel Moraes ,ou Gabb, se apresentou em sua estreia no Domingão com Huck. Desde janeiro, Gabb, que se identifica como pessoa não-binária, tem aparecido semanalmente no programa dominical, após conquistar o apresentador com seus vídeos ácidos sobre moda no TikTok e Instagram.
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O exemplo está longe de ser isolado. Celebridades marcadas pelo humor nas redes, gênero cuja vocação hoje parece estar principalmente no TikTok, têm ganhado cada vez mais espaço em veículos tradicionais.
A atriz Valentina Bandeira já tinha dado as caras em novelas da Globo como “Totalmente Demais” (2015-2016) quando começou a viralizar na rede com seus vídeos, marcados por um humor bem cotidiano e reflexivo. Desde então, virou apresentadora da nova versão do “Beija Sapo” (2023-), da MTV, e acumula trabalhos em novelas e canais como GNT e Multishow. A atriz e palhaça Rafaela Azevedo também já fazia sucesso nas redes antes de ganhar o palco com o monólogo de sucesso “King Kong Fran”, em que desafia de forma irreverente os estereótipos femininos.
E, se programas como o semanal da Eliana no SBT já trazem há anos quadros reunindo humoristas que fazem sucesso na internet, hoje é mais comum topar com rostos conhecidos do TikTok por toda a programação da TV — caso do TikToker Diego Cruz, com quase 9 milhões de seguidores, que chegou a fazer aparições na novela das 18h “Elas por Elas” (2023-2024).
De onde vejo, TikTok é o mainstream
Aliás, para a jornalista e especialista em cultura digital Ana Freitas, o tal mainstream como o conhecemos — aquela mídia formada por veículos de comunicação tradicionais — já não é mais o mesmo. “De onde vejo, TikTok é o mainstream. O Brasil tem 82 milhões de usuários acima de 18 anos na plataforma e só perde para EUA e Indonésia”, aponta a diretora da Quid, organização que presta consultoria estratégica para ambientes digitais.
Ela confirma que a rede é hoje um celeiro essencial de tendências para grandes emissoras, algumas das quais inclusive mantêm áreas de inovação para monitorar nomes que despontam em outras plataformas.
E o ambiente em tese democrático de redes como o próprio TikTok também parece estar ajudando a mudar a cara do humor brasileiro, com uma leva forte de mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ passando a ocupar lugares antes reservados principalmente para homens brancos e cis.
Na internet, a gente visualiza a luta das mulheres para conseguirem seus espaços, não apenas no humor, mas em todos os nichos
“Na internet, a gente visualiza a luta das mulheres para conseguirem seus espaços, não apenas no humor, mas em todos os nichos”, destaca a médica e produtora de conteúdo Eliziane Berberian (@elizianeberberian), que conta com quase 2 milhões de seguidores e 60 milhões de curtidas no TikTok. “E acho que estamos conseguindo circunscrever nossa história, deixar bem delimitado nosso poder de luta e ocupar nosso espaço.”
Um mundo alegre
Não é segredo que a comédia vem sendo um dos maiores motores no cinema brasileiro há um bom tempo. Para se ter uma ideia, metade da lista de filmes de maior bilheteria da nossa história é tomada por longas de humor. Mesmo após o difícil período da pandemia, quem puxou a fila da arrecadação nacional até o momento foram longas como “Minha Irmã e Eu” (2024), estrelado pelas humoristas Tatá Werneck e Ingrid Guimarães, e a comédia escrachada “Os Farofeiros 2” (2024).
Portanto, parece natural que uma plataforma que tem o audiovisual em seu cerne como o TikTok seja também marcada pelo humor. Mas esse, segundo especialistas, não é o único motivo para o gênero ser tão popular na rede.
Metade da lista de filmes de maior bilheteria da nossa história é tomada por longas de humor
Na visão da pesquisadora em comunicação digital Issaaf Karhawi, a própria forma como o TikTok se organiza é semelhante à lógica da viralização de memes, dando prioridade ao conteúdo dos áudios em detrimento das imagens. “Alguém coloca aquilo em circulação, outro sujeito se apropria e redistribui, exatamente o que acontece com áudios virais e cortes de música”, exemplifica.
O humor é quem acaba se beneficiando desse modelo que, de acordo com a pesquisadora, sintetiza um sentimento que já está em circulação na sociedade, gerando um fator de aglutinação social. “No Brasil sobretudo, a linguagem dos memes nos é muito familiar. Temos até influenciadores meméticos, como o Luva de Pedreiro e vários outros”, acrescenta.
Ana Paula Passarelli, cofundadora das agências Brunch e TOAST, voltadas para influenciadores e marketing de influência, enfatiza o humor como uma ferramenta fundamental para gerar conexão. “A gente tem um humor rápido numa mensagem curta e de rápida absorção.” Para ela, o conteúdo do TikTok deve muito às esquetes típicas da comédia, modelo que outras redes passaram a adotar para engajar seus usuários.
“Redes sociais não são mais plataformas de se relacionar com amigos, família e colegas de trabalho”, aponta Ana Freitas, da Quid. Em vez disso, teriam se tornado veículos de entretenimento. “E o humor é uma maneira muito eficiente de entreter”, sintetiza. A rede tem fama até de reduzir o alcance de conteúdos que “não mostrem um mundo alegre”, segundo a especialista em cultura digital, suprimindo vídeos com atmosfera negativa e recompensando aqueles que entretêm através de sentimentos mais positivos.
Quem ri por último
Outra amostra de que o TikTok vem se tornando ainda mais relevante para público e criadores de conteúdo é que as empresas investem cada vez mais na rede. Num estudo da plataforma brasileira de marketing de influência Influency.me, divulgado no final de 2023, 66% das marcas afirmaram preferir realizar suas campanhas com influencers no TikTok — aumento considerável na comparação com os 35% contados em 2022.
E o humor sempre foi uma ferramenta crucial para o mercado publicitário, desde o rádio e a TV, como forma de passar mensagens de maneira palatável e fácil de entender, lembra Passarelli. Hoje, segundo ela, as grandes marcas já buscam criadores de conteúdo especializados em seus temas e territórios de interesse, o que permite selecionar melhor o público-alvo.
Freitas vê um mercado publicitário maduro no Brasil em relação às redes, consciente da necessidade de se adaptar a esses formatos para gerar um conteúdo mais autêntico, criativo e relevante. Cita como exemplo a tendência recente de lojistas e marcas menores fazerem montagens divertidas com vídeos de pequenas quedas e acidentes para promover seus negócios. “Foi usada sistematicamente e de maneira consciente. Eles já entenderam que nessa rede não adianta fazer propaganda formal.”
No caso do trabalho junto aos influenciadores, a grande vantagem é “pegar emprestados” a conexão genuína, relevância e valores que estes construíram junto ao seu público, diz a especialista em cultura digital.
Num vídeo que postou recentemente, o criador de conteúdo Leonardo Bagarolo (@leobagarolo) reage às suas mudanças de visual ao longo do tempo numa série de fotos. Nas últimas, que seriam suas melhores versões, ele dubla um áudio em que diz estar “no topo do mundo”. Detalhe: ali aparece segurando o cartão de um banco, deixando claro se tratar de uma #publi.
“É importante criar relações duradouras, menos conteúdos pontuais e mais de longo prazo, para você construir uma identidade com aquela marca”, aponta Bagarolo, que largou uma carreira no mercado corporativo para atuar nas redes. “E tem que ser uma publicidade orgânica. Mostrar o produto nos primeiros cinco segundos é a pior estratégia possível. Quando vai fazer um vídeo, você precisa primeiro atrair a atenção do seu público para depois mostrar do que se trata”, afirma. Hoje seu perfil pessoal e o de seus cãezinhos Mada e Bica (@madaebica), também humorístico, reúnem mais de 10 milhões de seguidores só no TikTok.
Um aspecto importante é que o TikTok sempre foi mais difícil de monetizar do que suas companheiras. Em especial porque a rede virou de ponta-cabeça a ideia de criar uma comunidade ao redor do influenciador, segundo Karhawi. “A página ‘For You’, que apresenta uma lógica de recomendação algorítimica, costuma ser o principal espaço de navegação dos usuários ali. Então navegar no TikTok não depende de seguir pessoas. Você recebe um conteúdo de alguém que não sabe qual o nome”, diz a pesquisadora de comunicação digital.
Até por isso, especialistas recomendam diversificar a produção e publicação de conteúdo, para ninguém ficar refém do algoritmo e contar com uma só galinha dos ovos de ouro. Então é comum ver influenciadores com perfis fortes e produções diversas em diferentes ambientes. “Aquele criador que quer expandir, profissionalizar e continuar crescendo precisa entender que ficar só numa mesma plataforma não é a melhor solução para o negócio, e sim desenvolver novos produtos e serviços para além da internet”, destaca Passarelli.
Humor e preconceito
“Eu sou uma mulher preta, e é óbvio que sempre serei podada nos meus posicionamentos”, declama a produtora de conteúdo Eliziane Berberian em direção à câmera, enquanto é interrompida para ter que se justificar. No mesmo vídeo, troca a roupa por uma blusa, em resposta ao julgamento pelo que está vestindo. No fim, acaba sendo tachada ainda assim de masculinizada e pouco feminina.
Médica e mãe, Berberian hoje produz conteúdo em diversas vertentes: no YouTube, faz vídeos que convidam o público a estudar com ela sob sons de natureza ou música lo-fi; no Instagram, cria conteúdo de moda, beleza e poesia; e no TikTok produz cenas divertidas, com deboches que vão de situações do dia a dia até temas como racismo e a sobrecarga de trabalho. “As marcas me contratam para ter essa pegada mais engraçada, mas entendem que uma pessoa que faz humor também faz poesia e outras coisas. Então me contratam para diferentes vieses, e isso é muito bom”, considera.
Mulheres humoristas continuam sofrendo ataques de grupos organizados e lobos solitários, não só na internet, mas também na vida real, nos clubes de comédia
A especialista em cultura digital Ana Freitas enxerga sim mais espaço hoje para as mulheres no humor, por conta da quebra de barreiras que rege a internet. “Liga uma câmera, grava um vídeo e as pessoas vão ver seu stand up”, resume. Mas também aponta que as redes não são um espaço à parte, e sim uma arena da sociedade. Se esta segue caracterizada pelo machismo, o mesmo vale para o ambiente online — onde reações emocionais como o hate são até potencializadas pelos algoritmos.
“Mulheres humoristas continuam sofrendo ataques de grupos organizados e lobos solitários, não só na internet, mas também na vida real, nos clubes de comédia”, afirma Freitas. “Na verdade, mulheres que se destacam em qualquer segmento [sofrem com isso], especialmente naqueles notoriamente ocupados por homens, como a comédia.”
Berberian nunca chegou a sofrer ataques por ser uma mulher preta fazendo humor. Para ela, as redes trazem a possibilidade de transformação numa velocidade diferente do passado. “Visualizar a luta de outras pessoas faz com que a gente se sinta forte também e corra atrás.” Sobre a comédia como reflexão a respeito de problemas sociais, a influenciadora admira a liberdade de poder ao mesmo tempo “rir de uma folha caindo” ou “do caos do país com tom de crítica”.
“O humor vai vestindo roupas diferentes e se adequando em vários ambientes. Ele é uma pessoa sociável, e eu amo usar essa forma de me comunicar. Eu consigo ultrapassar barreiras.”
Subo nesse palco
Assim como no caso de Valentina Bandeira, por vezes o caminho da fama começa de forma inversa. O criador de conteúdo Vittor Fernando (@vittorfernando), hoje com mais de 11 milhões de seguidores na plataforma, já era reconhecido como ator e bailarino, tendo atuado em grandes musicais como “Billy Elliot” e “Peter Pan”, quando começou a produzir vídeos para o TikTok. O principal motivo foi a pandemia, que fechou teatros e o deixou momentaneamente sem emprego.
“Comecei a fazer brincando, até que os vídeos viralizaram e passei a entender a internet como profissão”, conta a Gama. Aproveitando que precisou voltar a viver com a família na época, se inspirou nessa convivência para criar seus primeiros vídeos. Usando diferentes perucas, hoje ele é conhecido por interpretar com humor cenas bem comuns, retratando desde a mania de organização da mãe até o desânimo com a vida profissional ou o primeiro date.
Hoje, os holofotes estão voltados principalmente para seu trabalho na rede, que vem abrindo portas artísticas e profissionais. A partir do sucesso, atuou no filme “Um Ano Inesquecível: Outono” (2022), dirigido por Lázaro Ramos, e na série de comédia da Netflix “A Sogra que te Pariu” (2022). Assim como boa parte de seus colegas, Fernando também integra uma das agências hoje especializadas em representar e impulsionar o conteúdo de influencers em diferentes mídias, mercado que se torna cada vez mais popular — ao lado de Berberian e Bagarolo, entrevistados para a reportagem, ele faz parte da mediatech Play9.
O produtor de conteúdo tem conseguido inclusive fazer trabalhos na área de moda, paixão desde a infância, mas que acabou não seguindo profissionalmente. “Já estava galgando esse mercado, mas a visibilidade te coloca em outro lugar. Às vezes os produtores acompanham meu trabalho na internet e gostam dos vídeos”, reforça o influenciador. “Quando você é visto, você é lembrado. E a visibilidade da internet te coloca numa vitrine.”
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