Manuela Cantuária diz que a mulher engraçada contradiz os ideais femininos
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Foto: divulgação. Ilustração: Isabela Durão

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Conversas

Manuela Cantuária: "A mulher engraçada vai contra todos os ideais do feminino"

Roteirista e autora defende que o humor pede um pouco de amoralidade e que a mulher que faz comédia hoje sofre uma dupla pressão: a conservadora e a feminista

Isabelle Moreira Lima 26 de Maio de 2024

Manuela Cantuária: “A mulher engraçada vai contra todos os ideais do feminino”

Isabelle Moreira Lima 26 de Maio de 2024
Foto: divulgação. Ilustração: Isabela Durão

Roteirista e autora defende que o humor pede um pouco de amoralidade e que a mulher que faz comédia hoje sofre uma dupla pressão: a conservadora e a feminista

Manuela Cantuária está aqui para a piada, mas não para brincadeira. Roteirista, consultora, colunista da Folha de S.Paulo, é uma expoente da escrita de comédia no Brasil. Ela defende que, apesar do papel da mulher no humor tenha mudado, com mais mulheres escrevendo e protagonizando suas histórias, ainda há fortes pressões sobre como ela deve agir e falar também no mundo ficcional. O curioso é que as pressões são conservadoras, que esperam que essa mulher siga como era retratada no passado; mas também feministas, que acreditam que a piada deve alvejar o homem e que elas devem ser sempre poderosas e perfeitas.

O maior desafio da mulher que escreve e atua na comédia, segundo Cantuária, é quebrar com o ideal do feminino, da mulher que não incomoda, que é justamente perfeita. Romper com isso, ser escrachada, fazer piada de tudo, até de si mesma, é ser subversiva. “Por isso foi mais difícil para as mulheres conquistarem um lugar nesse meio. A gente ainda tem uma predominância masculina, mas a mulher engraçada, que ridiculariza os homens e ridiculariza a si mesma, vai contra todos os ideais do feminino”, diz a roteirista a Gama.

No entanto, quando essa subversão acontece, vira hit mundial como foi o caso de”Fleabag”, de Phoebe Waller-Bridge, citada por Cantuária como grande referência. Ela defende a figura de uma anti-heroína e em torno dela criou o curso Vulneráveis Venceremos, em que enaltece fragilidades como ferramenta de criação de personagem.

Agora, claro, até aí pode haver armadilhas para as mulheres: “Sinto, como tendência, que para ter uma protagonista feminina é preciso ter um trauma. Então ela foi violada, estuprada, o filho dela foi sequestrado, e isso é muito perigoso porque as pessoas acham que o que faz uma mulher interessante é uma violência masculina”, afirma e cita que no humor é comum a figura da mulher vingativa. “Nós não somos os nossos traumas”, afirma.

Com vários projetos em andamento ao mesmo tempo, entre roteiros de longas, séries e até consultoria de roteiros de outros autores, Cantuária diz que tem se identificado cada vez mais com um gênero híbrido chamado de dramédia, que ela vê como um forma de dar mais profundidade às histórias, e que o mais inovador da comédia hoje está na internet, um oásis de autenticidade. “É um desafio fazer humor na internet, mas ainda é um refúgio para que esses humoristas consigam explorar as próprias potencialidades”, afirma na entrevista que você lê abaixo.

Ninguém aguenta mais aquela estrutura velha, do cara fazendo piada de sogra, de patroa

  • G |Durante muito tempo a mulher era a piada. Tinha a gostosa pelada, a traída, a velha surda. Isso mudou e por que mudou?

    Manuela Cantuária |

    Até pouco tempo atrás, o humor era predominantemente masculino, eu assistia muito Monty Python, via aquele coletivo de humor em que as mulheres eram homens fantasiados de mulher, ridicularizando os estereótipos femininos. Com o tempo, mais mulheres passaram a ocupar esses espaços e certas piadas já não caem tão bem. Mas a minha formação como humorista passou muito por esse desespero de acompanhar os coletivos de humor e não ver mulheres ou ver nesse contexto em que eram objeto de piadas muito superficiais, depreciativas. Eu até defendo o direito das piadas autodepreciativas, mas era um ambiente muito árido. Ainda não chegamos num lugar ideal, mas a gente vê isso mudando aos poucos.

  • G |Por que isso está mudando? Tem a ver com as mulheres consumindo mais humor?

    MC |

    Isso parte de um processo natural de mulheres ocupando espaços fundamentais, os criativos. A mulher sempre consumiu humor. Mas há um movimento grande na indústria do entretenimento de um crescimento do protagonismo feminino. Essa ocupação de espaços veio como consequência dos nossos bons e velhos movimentos feministas, me parece um processo inevitável. Ninguém aguenta mais aquela estrutura velha, do cara fazendo piada de sogra, de patroa. Era óbvio que aquilo não ia se sustentar por muito tempo, as mulheres precisavam ser vistas, não só por boas intenções, mas também por uma perspectiva mercadológica: nós somos mais de 50% da população mundial. Então existe uma demanda de mulheres nos holofotes, como protagonistas, e não só na frente das câmeras ou nos palcos, mas nos bastidores e no lugar criativo. Essa mulher que está no controle da narrativa é muito importante porque precisamos contar outras histórias.

  • G |Na sua formação, você teve mulheres que foram modelos, que a inspiraram?

    MC |

    Tive a sorte de ter crescido na geração da Fernanda Young aqui no Brasil. Sempre me inspirei muito no trabalho dela, desde muito nova. Ao mesmo tempo, eu tinha um fascínio por esses coletivos de homens como o Monty Python e o Porta dos Fundos, que tinham um caráter revolucionário. Mas ao longo dos meus estudos de roteiro, há mais de dez anos, era muito difícil ter referências. Nos Estados Unidos, tinha a Tina Fey, a Amy Poehler, figuras poderosas, mas ainda assim eram uma minoria absurda.

  • G |E como foi entrar nesse mercado então?

    MC |

    Quando comecei, percebi um novo fenômeno, que era “estamos atrás de uma roteirista mulher”. Eu sempre tive muita confiança no meu trabalho, sempre estudei muito, sei que cheguei até onde cheguei por causa da minha dedicação, mas existia essa brecha porque já estava ficando feio ter equipes de roteiro que não contemplavam uma pessoa sequer que entendesse o mínimo de subjetividade feminina. Mas essa mudança ainda era muito cosmética, a mulher era usada de token para que os homens se eximissem da responsabilidade de errar. Ao longo do tempo isso foi mudando, mas ainda tem muita coisa que precisa mudar.

Faço piada sobre mulheres também e isso não significa que eu esteja fazendo piada com o oprimido

  • G |Como fugir dos estereótipos femininos criados no machismo e ser engraçada? Ou melhor ainda: é preciso fugir deles?

    MC |

    A mulher que trabalha com humor hoje sofre uma dupla pressão: de um lado, a pressão conservadora machista que julga, descredibiliza, limita o alcance do trabalho dessa mulher; do outro, a feminista, que vem da militância das redes, da cultura do cancelamento, dessa cobrança de ser uma feminista ideal, empoderada, lacradora, que tem obrigação de denunciar as opressões, que não pode errar. Sobre essa última, vale apontar uma coisa que é meio óbvia: o feminismo é uma ferramenta que precisa ser usada em favor das mulheres, e não contra. O ideal feminista só existe na nossa imaginação, então é muito fácil transformar essa estratégia — que é válida — de fazer piada com o opressor em uma armadilha de só falar mal de homem o tempo todo, fazendo piada às custas do homem branco, hétero, cis, etc. Eu adoro essas piadas, eu faço o tempo inteiro, mas o feminismo, na prática, é sobre a mulher que se prioriza, que sabe rir de si mesma, que olha para si mesma e extrai humor disso. É corajoso e libertador. É você batalhar por esse direito de ser imperfeita. Faço piada sobre mulheres também e isso não significa que eu esteja fazendo piada com o oprimido. Isso não significa que eu reduzo as mulheres a esse lugar de vítima, porque esse lugar também é um cativeiro.

  • G |Como uma mulher pode ser engraçada?

    MC |

    Demanda uma certa amoralidade, um caráter amoral, precisa subverter todo e qualquer ideal. É assim que a gente se humaniza. Vejo humor como agente revolucionário, precisa ter crítica e empatia consigo mesma, com nós mulheres, saber rir dos nossos defeitos, das nossas falhas de caráter, das nossas paranóias, dos nossos gatilhos, dos nossos traumas. Esse é o desafio da mulher que trabalha com humor. E tem que se desapegar do chamado “humor feminino”, pois para acreditar nele é preciso existir um “humor masculino”, e humor é humor.

  • G |A sociedade é mais dura com a humorista mulher?

    MC |

    O ideal feminino, ainda perpetrado pela nossa sociedade e seu sistema de opressão, é o de uma mulher que não incomoda, uma mulher palatável ao olhar masculino, graciosa, reservada. Então, uma mulher engraçada é o oposto disso. E é justamente essa a característica mais subversiva de uma mulher que se coloca no mundo como humorista. Ela não quer ser a gatinha, não quer entrar nesse lugar de “sou a mulher para casar”. Ela é escrachada, faz piada de tudo, de si mesma; ela aponta esses tabus, tem uma linguagem corporal engraçada, não precisa necessariamente ser vaidosa. Por isso foi mais difícil para as mulheres conquistarem um lugar nesse meio. A gente ainda tem uma predominância masculina, mas a mulher engraçada, que ridiculariza os homens e ridiculariza a si mesma, vai contra todos os ideais do feminino.

  • G |O humor não é feminino, mas ele pode ser feminista?

    MC |

    O humor pode ser usado como uma ferramenta feminista. Você pode fazer piada de quase tudo, ele serve exatamente para conseguirmos falar de temas que são tabus, sérios, graves de uma forma engraçada. Existe uma autocobrança das mulheres em não serem mal interpretadas nesse sentido. Existem muitos humoristas hoje que estão se manifestando sobre como o politicamente correto atrapalha o humor e eu acho que essa é uma afirmação muito dúbia e perigosa, mas que, dentro dela, quem trabalha com isso consegue se identificar um pouco, porque a gente busca um lugar amoral. E essa afirmativa não pode ser usada como justificativa para continuar perpetuando estereótipos que são extremamente nocivos e importantes para fazer uma manutenção do sistema opressor que a gente vive. Eles vão construindo esse nosso imaginário preconceituoso. Então essa afirmação não pode ser usada para voltar casas, mas para termos mais liberdade. Já passei por situações em que entreguei roteiros e piadas e ouvi: “Mas aí parece que todas as mulheres são loucas”. Eu rebato: “Mas e se fosse um personagem masculino, você estaria me dizendo isso?” Muitas vezes, não estamos reforçando estereótipos, mas nos valendo do nosso direito de sermos humanas, imperfeitas. Temos o mito da perfeição feminina e o da perfeição feminista, que precisamos combater com humor humano, transgressor e amoral.

É muito discrepante a qualidade do humor na TV e no streaming se compararmos à ousadia de criadores de conteúdo da internet

  • G |Isso me fez pensar no seu curso, que chama Vulneráveis venceremos, em que diz que não precisamos de mais protagonistas femininas fortes, mas de protagonistas femininas complexas e vulneráveis, que provoquem a identificação e o fascínio do público. Você pode comentar?

    MC |

    Há uma tendência em que a maioria dos protagonistas de filmes e séries tem essas questões da vulnerabilidade bem trabalhadas. O herói clássico, aristotélico, que é justo sem ego e sem falha de caráter, está fora de moda — a gente já não se identifica mais com eles, a gente sempre torce pelo personagem mais vulnerável. Esse personagem pode ser arrogante, autoritário, egoísta, mas se for vulnerável, vamos entender porque ele age assim. É bonito olhar até as feridas e os traumas desses personagens como um lugar de força e fragilidade. Agora, uma coisa que sinto como tendência é que para ter uma protagonista feminina forte ela precisa ter um trauma. Então ela foi violada, estuprada, o filho dela foi sequestrado, e isso é muito perigoso porque as pessoas acham que o que faz uma mulher interessante é uma violência masculina, que ela sofreu no passado e que tornou ela forte. Se for assim, até a força dessa mulher é relacionada a um homem. Vejo isso até no humor, a mulher vingativa. O arco dela começa e termina no mesmo lugar: ela sofre uma violência de um homem e só vai ter uma realização quando se vingar e punir esse homem; então ela não sai do lugar. Nós não somos os nossos traumas.

  • G |Na sua opinião, onde está a força da comédia brasileira hoje?

    MC |

    Não tenho como não falar da internet nesse momento, o humor está muito pulverizado na internet, para todo tipo de gosto. Há grupos minorizados fazendo humor ali, mas ainda existe um gargalo muito grande para que essa diversidade chegue aos grandes meios de comunicação. É muito discrepante a qualidade do humor nas grandes redes de TV e nas plataformas de streaming se compararmos à ousadia de alguns criadores de conteúdo da internet, mesmo que o público da internet seja muito difícil de agradar porque há uma militância muito afiada, além dos conservadores que se escondem atrás de fakes para falar absurdos. É um desafio fazer humor na internet, mas ainda é um refúgio para que esses humoristas consigam explorar as próprias potencialidades, sem cair nesse moedor de autenticidade que pode ser uma cadeia de produção audiovisual.

  • G |O humor da TV está muito careta?

    MC |

    O humor brasileiro na TV e no cinema está muito limitado sim, existe um medo de arriscar muito grande. Há uma crise no mercado audiovisual como um todo por pouco investimento. Então não tem tantos produtos com diversidade de conteúdo, com qualidade. A gente acaba assistindo o que vem de fora.

  • G |Ao mesmo tempo, a comédia é o gênero mais rentável no Brasil hoje, leva grandes bilheterias ao cinema. Por que, mesmo sem ser inovadora, ela consegue fazer isso?

    MC |

    A comédia tem um elemento universal, que é muito básico, que é: todo mundo gosta de rir. Ninguém nunca vai dizer assim “não gosto de rir; ah, rir, eu acho desagradável” e, ao mesmo tempo, existe uma pressão muito grande em cima desse gênero porque ninguém sai de uma de um drama dizendo “ai, eu não chorei, então não valeu”. É um pouco surpreendente também que a gente não tenha tanto investimento em comédias brasileiras, embora a gente tenha aí vários fenômenos de bilheteria de comédia. Na internet, o potencial da comédia fica muito evidente, quando um vídeo de humor e um meme viralizam com muito mais facilidade do que um ensaio de moda ou uma fala emocionante sobre uma questão importante. O humor tem uma capacidade expansiva e circula com muita facilidade.