Silvio Lorusso: "Tentativas de separar perfis de trabalho e pessoais são artificiais" — Gama Revista
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Veridiana Scarpelli

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Conversas

Silvio Lorusso: "Tentativas de separar perfis de trabalho e pessoais são artificiais"

Autor do termo ‘entreprecariat’, uma mescla do empreendedorismo e da precariedade profissional que marcam as relações de trabalho atuais, o escritor e designer italiano Silvio Lorusso fala a Gama sobre como é construída hoje nossa identidade nas mídias sociais

Leonardo Neiva 29 de Novembro de 2020

Silvio Lorusso: “Tentativas de separar perfis de trabalho e pessoais são artificiais”

Leonardo Neiva 29 de Novembro de 2020
Veridiana Scarpelli

Autor do termo ‘entreprecariat’, uma mescla do empreendedorismo e da precariedade profissional que marcam as relações de trabalho atuais, o escritor e designer italiano Silvio Lorusso fala a Gama sobre como é construída hoje nossa identidade nas mídias sociais

É possível que você não saiba o nome dele, mas, se está na internet e nas redes sociais, certamente já topou algumas vezes com a figura do engenheiro elétrico húngaro András Arató. Mais conhecido pelo codinome Hide the Pain Harold (Harold Esconde a Dor), sua imagem mais famosa é aquela em que segura uma xícara de café enquanto digita algo em seu laptop. O rosto virado para a câmera, ele sorri, gesto que contrasta com a angústia transparente em seus olhos, contradição que o transformou em meme.

Para o escritor, artista e designer italiano Silvio Lorusso, Harold é uma divindade do que chama de “entreprecariat” (neologismo que pode ser traduzido como “emprecariedade” e brinca com o choque entre a pulsão pelo empreendedorismo e a precariedade das relações de trabalho). Em seu livro “Entreprecariat: Everyone Is an Entrepreneur. Nobody Is Safe” (Emprecariedade: Todo Mundo É Empreendedor. Ninguém Está a Salvo, ainda sem lançamento no Brasil), Harold vira exemplo do contexto atual, em que o empreendedorismo e a positividade nas redes são considerados o caminho para o sucesso e não é permitido ao empreendedor nem deixar transparecer a insatisfação.

Logo no início da obra, o autor conta como, ainda estudante, deu uma entrevista para um jornal italiano em que falava sobre sua vida acadêmica e profissional. Mais tarde, ao procurar seu rosto nas páginas da publicação, descobriu que o jornalista o tinha descrito como um trabalhador precário. “Eu, que me considerava no controle do meu destino, tinha sido reduzido a vítima, um mero fato estatístico, um clichê geracional.”

Pior do que isso foi perceber que o retrato não estava tão distante da realidade, já que vivia com uma bolsa escolar pouco significativa e estava prestes a ter de reativar o modo empreendedor de sucesso nas redes sociais, em busca de emprego. O acontecimento fez com que o designer se perguntasse qual imagem preferia adotar: a da precariedade ou do empreendedorismo? “Uma imagem que admite a incerteza e teme a exaustão ou uma que simplesmente celebra a livre iniciativa e a determinação individual?” Para ele, essas figuras aparentemente opostas representam os dois lados de uma mesma moeda, que chama de entreprecariat.

Em entrevista a Gama, Lorusso fala sobre a construção de identidade nas mídias sociais, o conceito do usuário como empreendedor de si mesmo e comenta se é possível separar o social e o profissional nas redes (ou mesmo se essas duas coisas são tão diferentes assim entre si).

  • G |Hoje parece ser impossível fugir da tecnologia e das mídias sociais. Como lidar com a necessidade de ter um perfil e uma narrativa definidos nas redes?

    Silvio Lorusso |

    Concordo com você, não vejo possibilidade de escapar. A decisão de sair do Facebook ou Instagram é com frequência algo que vai além da vaidade. Para muita gente, a necessidade de se comunicar é uma forma de ganhar a vida, uma posição estratégica para manter um cargo profissional. Então, de certa forma, o Facebook, o Instagram ou o Twitter são necessidades. Nesse contexto, como manter uma identidade que não seja puramente promocional? Esse é o problema. A tendência nas mídias sociais é passar de um modo de transmissão, em que você escreve do seu perfil para todo o Facebook, para um mais fechado. Por exemplo, grupos estão ficando mais ativos no Facebook. Nossos meios de comunicação estão se tornando mais estreitos, como o Whatsapp. Há valor nesse modelo. A quantificação é inescapável para a mentalidade transacional, porque você continua vendo os likes debaixo do seu post, mas, em um grupo fechado, ganhar visibilidade é ligeiramente menos relevante. Por isso acredito que essa passagem de um modo aberto de difusão para um modelo mais parecido com um fórum é uma maneira de fugir da promoção constante, uma resposta para se sentir pertencente a uma comunidade, como coloca Zygmunt Bauman.

  • G |Em seu livro você diz que todo mundo é um empreendedor e ninguém está a salvo. Por quê?

    SL |

    É engraçado você me perguntar isso porque é algo que se conecta com a história das mídias sociais. É uma fórmula muito concisa que faz referência a uma obra de Reid Hoffman, um dos fundadores do LinkedIn, chamada “The Start-Up of You” (na versão brasileira, “Comece por Você”). Ele trabalha com a ideia de que todo mundo é um empreendedor e que é preciso pensar em você mesmo como uma startup. Numa parte do livro, Hoffman diz que, num mundo onde todo mundo é uma startup, não há Deus ex Machina para salvá-lo se você falhar. Minha opção por colocar esse slogan na capa do livro não foi para avançar essa narrativa, mas para explicar o lado sombrio do empreendedorismo. Por isso ninguém está a salvo, por causa da responsabilidade social.

  • G |Se todos somos empreendedores nas redes sociais, o produto que estamos tentando vender somos nós mesmos?

    SL |

    A narrativa é um aspecto da coisa, mas não compreende tudo que está à venda nas mídias sociais. Se pensarmos como startups, o modo como elas se apresentam ao mundo é frequentemente com uma história de origem. Fazemos isso com nossas próprias profissões, nossa persona, tentamos moldar uma história que seja comunicável aos outros. Não é apenas para vender uma imagem falsa. Esse processo está ativo em nossa vida, no sentido de que criamos uma história significativa para responder à pergunta de quem somos nós. Não é puramente negativo, é só fisiológico para o desenvolvimento humano. O problema é que, nas redes, esse mecanismo é tornado público e combinado com outros sistemas que não pertencem à realidade. Quando você constrói sua narrativa pessoal, não existe essa necessidade imediata de comparação, ainda que acabemos comparando. Em algumas redes sociais, particularmente o Instagram, esse aspecto é brutal.

  • G |O que é entreprecariat?

    SL |

    O conceito surgiu num período em que eu trabalhava com crowdfunding em grandes startups, e a palavra empreendedorismo não saía da minha cabeça. Tem a ver com olhar para os fracassos, os 99% que não viram um Steve Jobs ou Elon Musk. Como definir esse tipo de atividade? Pode ser considerada uma espécie de precariedade, porque há componentes de risco, de incerteza. Achei que era uma boa expressão para olhar para os dois lados, o empreendedorismo do lado da precariedade e a precariedade do ponto de vista do empreendedorismo. Um bom exemplo seria Steve Jobs, que largou a faculdade para trabalhar numa garagem, esse tipo de história mítica arquetípica.

  • G |Você sentiu que fazia parte do entreprecariat?

    SL |

    Ninguém ou quase ninguém está imune a essa dinâmica. Há pressões empreendedoras para boa parte da força de trabalho. Você pode pensar até na busca por um emprego como uma jornada empreendedora. Há algumas diferenças qualitativas que são inegáveis e não podem ser deixadas de lado. Não se pode comparar a precariedade de refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo com a de trabalhadores criativos urbanos em Milão. São duas coisas fundamentalmente diferentes. No livro, decidi focar no segundo grupo pela simples razão de que isso me permitiria falar mais sobre esse relacionamento. Quando falamos sobre precariedade, é melhor focar em um aspecto, ainda que a precariedade seja um componente da vida. A vida por si só é precária. Nós adoecemos, morremos…

  • G |No livro, você fala bastante sobre o LinkedIn. Que pressões essa rede social coloca sobre seus usuários?

    SL |

    O LinkedIn costuma ser subestimado. Quando falamos sobre mídias sociais, sempre tratamos do Facebook, Instagram ou Twitter. Raramente ouvimos sobre o LinkedIn, ainda que ele tenha surgido antes do Facebook. Olhar o LinkedIn é uma maneira de entender o Facebook, e vice-versa. O motivo porque é importante estudá-lo é que ele possui uma certa franqueza que outras mídias sociais não têm. É bem explícito quanto à competição que costumamos internalizar nas redes. Lá existe — ou existia — um ranking. Como designer, posso ver que estou em décimo lugar em determinado aspecto e preciso melhorar. Em outras redes, comparamos a quantidade de atenção que recebemos de nossos companheiros. Só que essas plataformas não querem gritar aos quatro ventos que esse é o mecanismo que nos mantém presos a elas. Então é como se o LinkedIn abrisse as cortinas em relação a tudo o que as pessoas estão pensando. E eles não precisam esconder isso porque o ambiente de trabalho é abertamente competitivo. O que não aceitamos é que o ambiente social se mostre abertamente competitivo também, e que, na verdade, ambos sejam basicamente a mesma coisa.

  • G |É possível separar nosso perfil profissional e pessoal nas redes sociais?

    SL |

    Todas as tentativas de separar perfis de trabalho e pessoais hoje são artificiais. Existem serviços em que, se a empresa quer te contratar, é possível acessar todas as informações disponíveis em seus perfis. Então não acredito numa rede social profissional e em outra pessoal, mas numa diferenciação que as pessoas fazem de acordo com seus próprios interesses. Por exemplo, usar o Instagram para o lazer, enquanto o Facebook serve mais para se autopromover. Eu sou italiano, mas vivo na Holanda, então uso o Facebook para manter contato com os italianos, é meu canal com a Itália. Todas as pessoas criam suas estratégias para manter interesses e públicos diferentes.

  • G |Como ter um perfil profissional ou social bem-sucedido?

    SL |

    Sobre o LinkedIn, há vários livros ensinando como criar uma persona de sucesso. Geralmente, são vários conselhos do tipo “como ter uma boa foto”. Acredito que uma boa fórmula é saber combinar um senso de vida pessoal — por exemplo, contando anedotas sobre o cotidiano — com outros interesses mais específicos. Significa uma troca. Talvez até capitalizar o sorriso do seu filho, algo que vemos com os influenciadores. Não significa que a pessoa seja culpada por fazer algo assim. Se você tem algo de que se orgulha, é natural que queira compartilhar com as outras pessoas. Não deveríamos culpabilizar o aspecto do compartilhamento, mas sua captura por uma lógica econômica que prestigia a visibilidade.

  • G |Há uma pressão hoje por dizer coisas relevantes e abraçar causas, ao mesmo tempo em que existe um movimento que condena agressivamente qualquer coisa considerada fora de um padrão. Isso é uma contradição fundamental das redes?

    SL |

    Quanto maior for seu público, maior é a chance de ofender alguém ou cometer um erro de comunicação. O autor italiano Raffaele Alberto Ventura, em um de seus livros, criou o conceito de hiperpublicidade, a ideia de que escrevemos com um público específico em mente. Quando escrevo no Facebook, por exemplo, é pensando em meus colegas italianos. Porém, devido à estrutura da comunicação na internet, essa mensagem vai acabar descontextualizada. Vai perder camadas, ou algumas pessoas não conseguirão entendê-las. O mecanismo de viralização da internet, que cria multidões acusadoras, também é baseado numa descontextualização que as pessoas não conseguem controlar. Tenho medo desse mecanismo, acho que ele é ruim e que as pessoas deveriam ser protegidas. Há muitos casos de gente exposta publicamente por uma piada feita quando tinha 16 anos. Porque, além de tudo, meu arquivo está todo aberto a interpretações variadas. Honestamente, acredito que qualquer um com histórico público pode ser transformado numa espécie de monstro. Não quer dizer que não devamos apontar quando alguém fala algo errado, mas precisamos aprender a recriar contextos e proteger os fracos. Nem todo mundo é um Trump ou Bolsonaro, há muitas pessoas pequenas que foram atacadas por multidões online. Isso me preocupa porque eu posso ser uma delas e você também.

  • G |No livro, você dedica um capítulo inteiro à pressão por otimismo e positividade. Isso afeta nossa identidade nas redes?

    SL |

    Com certeza, mas não significa que todo mundo mostra seu melhor lado nas mídias sociais. Ou melhor, isso varia de pessoa para pessoa. Mesmo a autodepreciação irônica daqueles que reclamam o tempo inteiro sobre suas vidas é uma forma de produzir algo positivo e consumível. Mas, se eu disser algo negativo, isso pode atingir um público amplo. Por isso, algumas pessoas se forçam a falar coisas amigáveis ou positivas. Às vezes, a pessoa pode dizer algo extremamente polarizador tentando atrair muitas reações, mas é preciso ser capaz de digeri-las e confrontá-las. No Instagram, você tem o clichê da “good life express”, em que o sentimento dominante é o da serenidade, da autorrealização. O Facebook está virando um espaço reservado ao ódio e ressentimento. Não sei no Brasil, mas na Itália é um lugar abandonado pelas gerações mais jovens, onde você encontra pessoas irritadas de meia-idade. De geração para geração, as pessoas pulam de uma rede para outra. Agora muitos acham desagradável a autopromoção e o merchandising do Instagram, e começam a migrar para o TikTok. Mas não devemos esquecer que existem alternativas. Sou um grande fã do Mastodon e da Federated Social Network, que se parece com o Twitter. Lá, podemos criar nossa própria versão, mudar as regras, banir nazistas ou ser os nazistas, fazer o que quisermos. Não há uma regra única para todo mundo. Entra nessa tendência de grupos semifechados, o que não é necessariamente ruim. O mito da abertura total estava fadado ao fracasso desde o início. Agora estamos percebendo que a internet sempre foi polarizada, um lugar sombrio, algo que não tínhamos percebido antes. Os nazistas sempre estiveram ali, só que agora encontraram uma forma perfeita de se reunir e perturbar os outros.

  • G |Existe uma tendência de empresas mais personalizadas nas mídias sociais. Podemos dizer que hoje as marcas são mais como pessoas nas redes, enquanto as pessoas estão ficando mais parecidas com empresas?

    SL |

    Alguns anos atrás, no Facebook, o perfil de uma marca e de uma pessoa eram visualmente bastante diferentes. Hoje são mais ou menos a mesma coisa. Então existe sim uma convergência entre as pessoas e as marcas, são categorias que acabam colapsando umas nas outras. Por isso faz todo o sentido para uma empresa falar como uma pessoa. Você deve ter visto esse tipo de conversa nas redes, por exemplo, entre marcas como o Burger King e a 7UP.

  • G |O clichê do “seja você mesmo” pode ser aplicado às redes sociais? É possível ter uma identidade e ser autêntico nelas?

    SL |

    Não existe autenticidade. Na verdade, é o contrário disso. Nós mentimos até para nós mesmos. Nossa compreensão de quem somos é uma construção constante, um exercício de ficção. Não há autenticidade nem de um dia para o outro. As boas mídias sociais são aquelas que perdoam erros e nos permitem esquecer aquilo que não queremos continuar sendo. Redes que não são monolíticas quanto às nossas identidades, mas que nos deixam redefini-las, como acabamos fazendo de uma forma ou de outra. Nas mídias sociais, a meta não é identificar seu verdadeiro eu, mas se revolucionar cotidianamente.