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ReportagemO TikTok é seu novo guia de viagem?
Capaz de criar novas tendências e popularizar locais pouco conhecidos da noite para o dia, a rede substitui os antigos guias de papel com alguns pontos positivos — e outros nem tanto
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O TikTok é seu novo guia de viagem?
Capaz de criar novas tendências e popularizar locais pouco conhecidos da noite para o dia, a rede substitui os antigos guias de papel com alguns pontos positivos — e outros nem tanto
Fim de semana, sol, calor moderado. Uma visita despretensiosa ao Parque Lage, no Rio. Logo na porta do palacete que é marca registrada do ponto turístico, uma longa fila para entrar. Foi nesse cenário dominado por uma carreira serpenteante de turistas que não paravam de se abanar — o calor, aos poucos, ia deixando a zona “aguentável” em direção à excessiva — que este repórter chegou pouco após o almoço.
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Mas só depois de meia hora de fila ele começou a questionar a demora para entrar num parque que, além de público, nem é assim tão pequeno. Veio então o aviso salvador: Essa fila é só para quem quer tirar a foto!
A foto, assim mesmo, no singular. Porque, para capturar o ângulo em frente à piscina do parque, com o Cristo Redentor e o Corcovado bem enquadrados lá no fundo, há somente uma posição possível, para a qual já foram necessários até agendamento prévio e distribuição de senha. Recentemente, um visitante foi além e pulou na piscina, área proibida. Foi prontamente retirado pelos seguranças, mas conseguiu o que queria: viralizou.
No post, exemplos do lugar exato para a foto “perfeita” no Parque Lage
Não tem nada de particularmente novo nesse cenário, num universo em que a necessidade de acompanhar e estar nas redes o tempo inteiro integra quase todos os aspectos da nossa vida. Um estudo recente da consultoria YPulse, por exemplo, aponta que a geração Z já faz mais buscas no TikTok do que no Google..
No turismo não poderia ser diferente. Cada vez menos gente passa os dias anteriores a uma viagem de nariz enfiado num guia turístico impresso, estilo Lonely Planet. Em vez disso, as vésperas da jornada passaram a ser recheadas de vídeos e trends com influenciadores do nicho — que está entre os mais populares nas redes — aproveitando uma praia paradisíaca, apresentando segredos escondidos de algum destino turístico ou simplesmente enquadrando monumentos que nunca foram segredo para ninguém, como a Torre Eiffel ou o Coliseu.
Nesse ecossistema, o TikTok nada de braçada quando o assunto é criar tendências ou botar um destino específico em evidência. Até porque, como já mostramos aqui na Gama, a lógica da rede favorece a visualização de conteúdo por meio de temas e interesses pessoais, em vez de personalidades e influenciadores que você curte. Portanto, se anda buscando vídeos sobre turismo, e um certo local está muito em evidência, é provável que, junto com muitas outras pessoas, você acabe sendo atraído pela ideia de fazer as malas e embarcar para lá.
Na visão das influenciadoras do ramo Gaia Vani e Nanda Hudson, que comandam em diferentes plataformas o perfil @maladeaventuras, as redes vêm trazendo destinos antes pouco conhecidos para os holofotes — com consequências positivas e negativas. “É o caso das Prainhas de Arraial do Cabo, que eram sossegadas até o início da última década e vêm recebendo um número cada vez maior de turistas em busca de suas águas azul turquesa”, exemplifica Vani.
Os exemplos pelo Brasil são muitos, passando por lugares como a Vila de Jericoacoara, no Ceará, o Parque Estadual do Jalapão, no Tocantins, e mais recentemente a comunidade litorânea de Caraíva, em Porto Seguro (BA).
Por um lado, essas tendências podem ajudar a impulsionar o turismo e a economia de muitos locais até então tranquilos. Por outro, caso não haja infraestrutura para atender a demanda repentina, têm potencial de gerar “problemas de superlotação devido à popularidade exagerada nas redes sociais, causando impactos negativos no meio ambiente e na qualidade da experiência do turista”, afirma a influenciadora.
Esse fluxo de turistas, muitos deles em busca do vídeo ou da foto ideal, semelhante ao que os inspirou no TikTok ou Instagram, também pode causar mudanças na própria paisagem local. Foi o que Vani e Hudson perceberam ao voltar a Jericoacoara em 2021 — seis anos depois da visita anterior e após um intenso processo de popularização da vila. “Notamos um salto enorme no desenvolvimento turístico. Ao retornar, vimos diversos spots unicamente voltados para fotos e totalmente descolados da belíssima natureza da região.”
Turista que não acaba mais
Para Luiz Trigo, professor do curso de lazer e turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP), o fenômeno não tem nada de novo. Pelo contrário, só mudou de plataforma ao longo do tempo — e também o tamanho do alcance. Se antes as novelas nos levavam a sonhar com uma viagem ao Pantanal ou ao Marrocos, TikTok e Instagram hoje passaram a assumir esse lugar de desejo turístico.
“As narrativas sempre influenciaram nossas escolhas de destino”, reforça Trigo. “A diferença é que isso agora é feito pelas redes sociais.” E os atrativos podem ir desde as características do destino em si até uma versão TikToker do star power hollywoodiano, em que a grama de um determinado lugar nos parece muito mais verde só porque um ídolo das redes, alguém cujas postagens acompanhamos fervorosamente, acaba de pisar lá.
Quando um certo local viraliza ou começa a aparecer com frequência no TikTok, há um risco de ocorrer o que chamam no setor de “overtourism”, ou o turismo em excesso
Quando um certo local viraliza ou começa a aparecer com frequência no TikTok, há um risco de ocorrer o que chamam no setor de “overtourism”, ou o turismo em excesso. O professor explica que o problema só acontece quando não há planejamento nem capacidade de atender tantos visitantes. Aí as filas se multiplicam, os preços sobem e qualquer ponto turístico passa a ficar abarrotado de gente. Além disso, há a questão do turismo predatório. Nas praias do Mediterrâneo, por exemplo, turistas são responsáveis pela maior parte do lixo jogado no mar, segundo pesquisa publicada na revista Scientific Reports.
A prática pode se mostrar um problema inclusive para as comunidades locais. Recentemente, correu o mundo a notícia de uma cidade japonesa que pretende instalar uma enorme barreira para tampar a visão do Monte Fuji. O motivo? Turistas vinham se aglomerando sem distinção no local para tirar fotos, deixando para trás um rastro de sujeira e desrespeito.
Em Caraíva, uma campanha de marketing do Boticário precisou ser retirada do ar no início do ano após enfurecer autoridades locais, por se utilizar do “nome e belezas naturais do vilarejo sem nenhum propósito” e “depreciar a imagem local”, segundo nota publicada por órgãos da região. Devido à demanda extra do turismo, serviços básicos como coleta de lixo, água e energia já vinham operando na vila em nível de saturação. A presença de viajantes é tão grande que, em janeiro, viralizaram imagens de uma enorme fila para entrar num popular restaurante local, em que as pessoas começaram a marcar seus lugares usando chinelos.
As virtudes de passar perrengue
Para o influenciador e colunista do New York Times Seth Kugel, que comanda o canal do YouTube Amigo Gringo, um dos maiores problemas é que os vídeos do TikTok contemplam apenas as belezas e momentos positivos de uma viagem — o que dá a ilusão de que não há perrengues nem passagens difíceis pelo trajeto. “As pessoas enxergam uma viagem um pouco como veem os restaurantes hoje em dia, em que vão especificamente para tirar foto de um único prato espetacular”, considera.
Numa espécie de contramovimento a essa tendência, perfis como o @perrenguechique compilam vídeos de alguns momentos turísticos que fugiram do planejado. Já o @insta_repeat reúne séries de fotos tiradas exatamente das mesmas paisagens e em ângulos idênticos, mostrando como o afã por replicar conteúdos pode acabar com a espontaneidade e individualidade dos nossos registros de viagem.
As pessoas enxergam uma viagem um pouco como veem os restaurantes hoje em dia, em que vão especificamente para tirar foto de um único prato espetacular
Kugel — cuja coluna traz justamente dicas de como lidar com perrengues turísticos — se apresenta como um defensor de conhecer lugares de maneira mais profunda, vivenciando a experiência de viajar em todas as suas nuances, boas ou ruins. “Na minha antiga coluna no Times, eu sempre tentei incluir tudo o que deu errado junto com tudo o que deu certo. E é simplesmente isso que eu gostaria de ver mais”, afirma.
O jornalista também diz que, sempre que possível, foge de destinos muito procurados ou que estejam na moda. “Às vezes me perguntam quais os destinos mais cobiçados da temporada. E eu respondo que não sei, mas, se você ficar sabendo, me avisa, que é para eu evitar.”
Espontâneo (pero no mucho)
Sabe quando você abre o TikTok ou o Instagram e parece que todo mundo está num mesmo lugar? Pode não ser só impressão ou neura da sua cabeça. Segundo o coordenador de casting na agência Nosso Squad e na produtora Floresta, Allan Cardoso, “esses fenômenos podem ocorrer de forma espontânea, mas geralmente há um gatilho inicial”.
Além do trabalho para emissoras de TV e streaming — onde cuidou do casting de programas como “Quem Quer Ser um Milionário”, da Globo, e realities de “pegação”, a exemplo do “De Férias com o Ex” —, ele também atua como relações públicas, levando influenciadores para determinados eventos e localidades. Ao lado da também RP Lu Rady, está por trás de acontecimentos como o Réveillon do Gostoso, em São Miguel do Gostoso (RN).
A presença de influenciadores podem transformar o interesse por um lugar
“Hoje em dia é tudo mais pensado e muitas vezes há um investimento estratégico por trás”, aponta Cardoso. Além da própria festa de virada de ano que ajuda a organizar, ele também cita exemplos como o do São João da Thay, da influenciadora Thaynara OG, ou a Casa da Barra, de Carlinhos Maia, que fizeram aumentar o turismo no Maranhão e em Barra de São Miguel (AL), respectivamente.
“Esses casos mostram como um evento ou a presença de influenciadores podem transformar o interesse por um lugar”, afirma o profissional. “Muitas vezes, há investimento de cidades e estados para atrair essa visibilidade e promover o turismo local.”
O próprio governo de Alagoas chegou a convocar no ano passado influencers europeus para mostrar as maravilhas do estado a um público estrangeiro. Além disso, segundo uma pesquisa de 2022 da Associação Brasileira dos Blogueiros de Viagem (ABBV), 92% das marcas de turismo nacionais hoje pretendem apostar em influenciadores para capitanear suas campanhas de marketing.
GuiaTok
Para além dos problemas, o TikTok não serve apenas para ajudar os usuários a definir o destino de uma viagem. Ele também tem sido uma fonte importante de informações para quem vai visitar uma cidade ou país desconhecido. O influenciador e viajante profissional Lucas Estevam, do @estevampelomundo, orienta seus seguidores não apenas sobre as melhores oportunidades de viajar utilizando milhas, mas também usa seus vídeos para dar dicas e compartilhar suas vivências viajando por diversos países — só em maio, ele esteve em quatro diferentes.
Em algumas de suas últimas postagens, traz curiosidades como o porquê de, na Europa, as tampas serem presas às garrafas d’água, e sugestões, indicando alguns de seus lugares favoritos para conhecer em cidades como Paris. Além disso, fala ocasionalmente sobre quais países são inclusivos e como casais LGBTQIA+ podem viajar de forma mais segura.
“Um retorno que sempre recebo das pessoas é que muitas não tinham vontade de ir a determinado lugar, mas, depois que assistiram aos meus conteúdos, passaram a ter curiosidade sobre aquele destino”, conta Estevam. Para ele, o formato audiovisual permite mostrar de forma mais prática o ambiente de cidades e países distantes, assim como formas de viajar e o que fazer por lá.
O influenciador também revela que tenta ser sincero e responsável ao abordar um destino turístico, para informar os seguidores de forma clara sobre a realidade local. “O choque de realidade, o diferente, lugares com uma beleza única chamam a atenção das pessoas. E quando essa curiosidade é despertada, o interesse aumenta”, explica Estevam, cujos vídeos com mais visualizações são de lugares em tese pouco turísticos, como a Coreia do Norte, Chernobyl e a ilha de Alcatraz.
A vontade de se mostrar, de dizer ‘olha, eu estive lá’, sempre existiu
Vani e Hudson, do @maladeaventuras, também buscam apresentar aos seguidores perspectivas diferentes dos lugares que visitam, seja procurando “joias escondidas” pelo Brasil ou até em destinos bem conhecidos, como Bariloche. “Fizemos uma roadtrip para lá no último verão e trouxemos uma outra experiência: praias de lago, caiaque e trilhas em meio à natureza”, lembra Hudson.
Entre as características dos perfis da dupla, estão o contato constante com o meio ambiente — mas “sem passar perrengue” — e a busca por mostrar sempre a cultura local. Na cidade de Alto Caparaó (MG), por exemplo, fizeram uma visita aos produtores de café da região. E, num dos posts mais recentes, em Caraíva, Hudson apresenta em detalhes sua vivência numa comunidade de indígenas Pataxó.
“O que mudou é a possibilidade rápida e eficiente da gente tirar foto ou gravar um vídeo e publicar imediatamente a custo zero”, resume o professor Luiz Trigo, para quem só não vale mesmo causar prejuízos ambientais ou culturais à comunidade da região. “Mas a vontade de se mostrar, de dizer ‘olha, eu estive lá’, sempre existiu.”
No caso deste repórter, em sua visita ao Parque Lage, a vontade foi mais curta do que a paciência. Acabou optando por entrar e tirar uma foto ali do canto mesmo, num ângulo para o qual a fila de espera era consideravelmente menor. Um tamanho infelizmente proporcional à qualidade do clique.