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ConversasMeta: hibernar por um ano
Ottessa Moshfegh criou uma personagem que tem métodos próprios para dormir durante 365 dias. Prestes a lançar seu terceiro livro, a autora falou a Gama
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Ottessa Moshfegh rodou os Estados Unidos de carro enquanto escrevia um livro sobre uma novaiorquina que escolheu atitude completamente oposta: se retirar do mundo para dormir muito, “hibernar o máximo que podia” em busca de uma grande transformação.
Em “Meu Ano de Descanso e Relaxamento” (Todavia, 2019), a narradora sem nome, de 26 anos, acaba de ser demitida de uma galeria de arte em Manhattan depois de cochilar dentro de um estoque durante a sua hora do almoço. Ela, que havia perdido o pai e a mãe em um curto período de tempo, apela para o sono como forma de luto, como uma maneira de ficar imune a lembranças e sentimentos dolorosos. Além da perda, sofre de uma quase imoral impaciência e falta de conexão com pessoas de maneira geral.
Dona de uma herança que a permite usufruir do luxo de dormir sem hora para acordar, ela prepara sua casa e rotina para esse longo projeto: contas no débito automático, impostos antecipados, banho uma vez por semana, sobrancelhas ao natural. Nesse romance, ao mesmo tempo sombrio e bem humorado, ela encontra uma psiquiatra suficientemente bizarra e capaz de tornar esse seu ano possível. Dr Tuttle receita, sem grandes delongas, uma alfabeto inteiro de medicamentos: Benadryl, Donaren, Maxifenfen, Nembutal, Seconal, Stilnox, Tylex, Valdignore e assim por diante. “Eu estava disposta a correr todo risco de vida em nome do sonho de dormir o dia todo e me tornar uma pessoa completamente nova”, diz.
Ottessa, 39, também costumava dormir bem na época de seu livro de estreia. Com fases ansiosas que iam e voltavam, mas nada crônico. Em 2018, após o lançamento de “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”, parece que o jogo começou a virar, como ela contou em uma livraria em Washington DC: “Eu tirei uma soneca hoje. Pela primeira vez desde que eu tinha 7 anos de idade. Acordei e mal pude acreditar que isso aconteceu!” Foi depois de finalizar esse livro que a escritora começou a tomar remédios para insônia.
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G |Qual a coisa mais interessante que você aprendeu escrevendo “Meu Ano de Descanso e Relaxamento” que poderia dividir com insones que leem esta entrevista?
Ottessa Moshfegh |Eu fui insone por anos, mas era uma coisa que ia e voltava. Mas parece que o livro desencadeou em mim uma insônia recorrente. Algum tempo atrás eu cansei disso e comecei a tomar medicamentos para dormir — comecei a tomá-los depois de escrever esse livro. Às vezes, acho que [essa insônia] é uma mania que eu tenho, um vício em estar sempre cansada. Outras vezes penso que meu cérebro simplesmente sai do lugar. E eu também sou uma pessoa muito ansiosa. A personagem do livro não tem insônia de jeito nenhum. Ela é ótima para dormir. Mas ela quer elevar essa experiência do sono ao extremo.
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G |O que te fez pensar em uma mulher que escolhe dormir por um ano inteiro?
OM |Comecei o romance escrevendo o dia a dia da minha personagem. Eu não sabia que eu estava enfiando meu pé num território de hibernação até eu conhecê-la. Ela é antissocial, irreverente, irritável. Até mesmo em uma cidade como Nova York ela é completamente desencantada com a vida. Os pais dela morreram recentemente, deixando com ela dinheiro suficiente para viver e também um sentimento escancarado de perda e confusão, além de uma tristeza que ela não se permite sentir. Eu perguntei a mim mesma, o que essa personagem quer? E a resposta estava bem na minha frente: ela só quer ficar em casa assistindo aos filmes da Whoopi Goldberg e dormir.
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G |Tem uma parte do livro em que ela diz: “O sono parecia produtivo. Algo estava sendo resolvido”. Por que ela escolhe dormir?
OM |Isso começou com um jeito passivo em direção à cura. Ela não confia em ninguém, odeia falar com pessoas e ama dormir. Ela tem uma teoria de que dormir tem o poder de desintoxicá-la. Se ela dormir o suficiente, todas as células em seu corpo vão se reproduzir quantas vezes for necessário para esquecer o trauma armazenado. Então ela quer acordar revigorada e pura.
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G |Ela dorme pela maior parte do dia e da noite sem sentir nenhum tipo de culpa. Por que você acha que, muitas vezes, as pessoas se sentem culpadas por dormir demais?
OM |Eu não acho que todo mundo se sinta culpado por dormir demais. Mas sobre aqueles que se sentem, talvez eles carreguem um peso de responsabilidade que o façam sentir que estão abusando demais com essa dormida extra. Mas eles também podem estar dormindo mais para fugir dessa responsabilidade; ou quem sabe sejam paranoicos. Ninguém quer ser visto como preguiçoso.
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G |Baseada na sua pesquisa para o livro, qual tipo de técnica, terapia ou até mesmo substância você observou como sendo a preferida pelos insones?
OM |Muitas pessoas usam suplementos de melatonina. De maneira geral, Zolpidem parece ser um padrão no tratamento de insônia. Meditação, banhos, suplementos de magnésio, ler antes de ir pra cama, nada de celular na cama, comer peru ou cereal para estimular o triptofano [essencial para a produção de serotonina, o hormônio do prazer] no seu cérebro — todas essas são coisas que eu tentei inclusive. Muitos insones que eu conheço vivem num estado de constante exaustão porque nada funciona.
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G |Na sua opinião, qual a principal causa de insônia hoje?
OM |Provavelmente a ansiedade. O planeta está sendo destruído, então eu acho que no fundo todo mundo que o habita tem um nível elevado de ansiedade. E os extrassensíveis podem ter seu sistema nervoso especialmente afetado.
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G |Sua personagem sempre dorme assistindo TV, como muita gente. Por que os celulares nos deixam mais acordados e insones?
OM |O telefone é interativo, ele responde para você e te faz entrar em um ciclo de produção e consumo de dopamina. Assistir TV é algo passivo. Você desvia o olhar e o aparelho continua lá, não há interação.
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G |Nós temos hoje travesseiros da Nasa, cobertores especiais, gadgets, apps e medicamento para te ajudar a dormir melhor. Por que se investe tanto na indústria do sono?
OM |O capitalismo vai tentar lucrar com o sono porque é algo necessário para a sobrevivência. Todo mundo faz isso. E é uma questão muito emocional, as pessoas vão investir em qualquer coisa que possa significar um sono melhor.
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G |Você tem dormido bem?
OM |Hoje em dia eu não durmo sem medicação. Não posso nem mesmo dormir na mesma cama do que o meu marido porque eu acordo com o menor dos movimentos. E com frequência eu acordo muito cedo, não costumava ser sempre assim…
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G |Como era seu sono quando estava escrevendo “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”?
OM |Acho que dormi relativamente bem nessa época. Eu estava sozinha e isolada do mundo, atravessando a América do Norte de carro. Fui da Califórnia para Boston, para o norte de Nova York, para New Hampshire, para Montreal e então de volta para a Califórnia. O melhor sono que eu tive foi em Montreal. Era inverno, a cidade estava quieta e cheia de neve e eu não conhecia ninguém. Estava terrivelmente frio, eu mal deixava o meu apartamento alugado. Então eu só escrevia e dormia.
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G |Depois que o livro foi lançado o assunto “sono” se tornou parte do seu círculo de conversa? Que tipo de histórias as pessoas começaram a te trazer em relação à qualidade do sono delas?
OM |Os leitores até vinham algumas vezes e me contavam como eles estavam dormindo. Mas eu não acho que o romance seja exatamente sobre dormir. É sobre o desejo de cura. Na verdade é muito sobre luto também. Os leitores vinham e me contavam que eles perderam alguém próximo recentemente. Eles me falavam que se sentiam solitários, que estavam depressivos. Então eu acho que as pessoas se relacionam mais com a dor da personagem do que com a solução encontrada por ela, [dormir].
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G |Como a personagem encararia essa pandemia?
OM |Acho que ela poderia passar esse tempo sem nenhum tipo de consciência sobre o vírus. Ela até poderia se perguntar por que o motorista de táxi estaria usando uma máscara ou luvas de borracha, mas ela estaria muito autocentrada para perguntar por que.
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G |Com o que você tem sonhado ultimamente?
OM |Com tudo. Minha infância, meus amigos (estou com saudades!), minha família, viagens. Eu sonhei alguns dias atrás que eu marido e eu estávamos andando pelo Egito Antigo. Era como se fosse um solstício, à noite, e as estrelas estavam alinhadas em uma formação incrível, se movimentando. Foi muito bonito. Eu sonho muito com cachorros, filhotes de animais. Metade dos sonhos que lembro se passam em sociedades pós-apocalípticas.
Otessa Moshfegh é autora de três livros. Foi finalista do Booker Prize com o primeiro, “Eillen” (2015), que também lhe rendeu o PEN/Hemingway Award e o National Book Critics Circle Award. No final deste mês, lança “Death in her Hands”, um suspense com humor sarcástico em que uma viúva idosa, Magda, tenta encontrar a solução de um possível crime. O livro deve ser lançado no Brasil em 2021, pela Todavia.