Paulo Artaxo: ‘É estratégico para o agronegócio proteger a Amazônia’ — Gama Revista
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Paulo Artaxo, do IPCC: 'É estratégico para o agronegócio proteger a Amazônia da destruição'

Professor de física da USP que participou de relatório do IPCC sobre o clima fala da importância da preservação e dos impactos que o aquecimento global já está causando

Leonardo Neiva 05 de Setembro de 2021

Paulo Artaxo, do IPCC: ‘É estratégico para o agronegócio proteger a Amazônia da destruição’

Leonardo Neiva 05 de Setembro de 2021
Ricardo Lima/Getty Images

Professor de física da USP que participou de relatório do IPCC sobre o clima fala da importância da preservação e dos impactos que o aquecimento global já está causando

O relatório sobre as condições climáticas globais publicado em agosto pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) caiu como uma bomba na comunidade internacional. Primeira vez que o órgão da ONU deu números mais concretos à responsabilidade humana na crise climática, o relatório apontou que os últimos cinco anos foram os mais quentes na Terra desde 1850, com um aumento médio de mais de 1ºC nas temperaturas globais.

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Com isso, o ritmo de elevação do nível do mar e do derretimento das geleiras também aumentou numa velocidade alarmante pelo mundo, evento considerado irreversível a curto prazo. Sem uma redução profunda e imediata na emissão de gases que causam o efeito estufa, veremos ainda neste século um aquecimento entre 1,5º e 2ºC das temperaturas, com consequências catastróficas para a vida na Terra.

Aqui no Brasil, onde a floresta amazônica vem sendo devastada no maior ritmo dos últimos dez anos, segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), os impactos do aquecimento global devem ser ainda mais intensos do que em boa parte do globo.

“O Brasil, por sua localização continental, com certeza vai sofrer um aquecimento maior do que a média global e uma redução na precipitação mais importante do que em outras regiões do planeta”, aponta o professor do Instituto de Física da USP Paulo Artaxo, membro do IPCC que participou da elaboração do relatório. Além da crise hídrica que já vem afetando o país, os efeitos do aquecimento pode ir desde inundações e ondas de frio ou calor até o aparecimento mais frequente de pandemias como a do coronavírus.

O professor de física da USP e membro do IPCC Paulo Artaxo – Arquivo Pessoal

Até por ser um dos mais impactados pelo problema global, Paulo esperava que o governo brasileiro fosse mais ativo na busca por soluções e na elaboração de um planejamento a longo prazo para impedir o desmatamento e o aumento das emissões de gás carbônico. Em vez disso, no entanto, um estudo liderado por uma pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que, devido à degradação e às queimadas em seu território, a floresta amazônica hoje já emite mais gás carbônico na atmosfera do que é capaz de absorver.

E, para quem não sabe, no caso da floresta, existe sim um ponto onde o desmatamento se torna irreversível — hoje, já estamos pelo menos na metade desse perigoso caminho. “Se chegarmos a um desmatamento de 40% ou a um aumento de temperatura de 5º C na floresta amazônica, ela poderá não ter mais condições de sobreviver a esse novo clima”, aponta o pesquisador do IPCC.

Considerado um dos mais renomados cientistas brasileiros a tratar de questões ambientais atualmente, Paulo trabalha com física aplicada ao meio ambiente e é especialista nos temas de mudanças climáticas, Amazônia e poluição do ar. Em entrevista, ele falou a Gama sobre o interesse do próprio agronegócio na preservação da floresta amazônica, a importância de um planejamento a longo prazo para a sustentabilidade e os impactos catastróficos que o aquecimento global já está causando no Brasil e no mundo.

O atual governo está indo na direção contrária à de seus compromissos internacionais. Perdemos credibilidade

  • G |O novo relatório do IPCC deixa claro o impacto das ações humanas sobre as mudanças climáticas, assim como a iminência de um colapso. Você espera que essas informações gerem uma correção de rumos?

    Paulo Artaxo |

    Não há a menor dúvida de que está tendo um impacto importante, tanto na indústria quanto nos governos. A grande questão é que esse impacto precisa se traduzir em políticas públicas. Isso ninguém tem bola de cristal para saber se vai ou não vai ocorrer. O que a gente espera é que aconteça, e estamos trabalhando para isso.

  • G |Como o aquecimento global deve afetar o Brasil especificamente?

    PA |

    Já está impactando, com o aumento dos eventos climáticos extremos, como secas no Brasil central. Está causando o aumento do nível do mar, da erosão em várias áreas costeiras brasileiras. E tem gerado eventos como grandes secas, inundações, ondas de calor e frio. Isso tudo já é muito visível no Brasil hoje.

  • G |Por aqui, nós devemos sentir efeitos até piores do que em muitos outros lugares do mundo?

    PA |

    O Brasil, por sua localização continental, com certeza vai sofrer um aquecimento maior do que a média global e uma redução na precipitação mais importante do que em outras regiões do planeta. Vai ser um dos países mais atingidos pelas mudanças climáticas globais, o que torna ainda mais importante nosso papel de reduzir nossas emissões de gases de efeito estufa.

  • G |Você espera que essa se torne uma prioridade dentre as políticas públicas de um próximo governo, como não tem sido nesse?

    PA |

    Não tenho a menor dúvida de que um próximo governo vai ter que levar essa questão com mais seriedade, inclusive pelas pressões internacionais que vão ocorrer a partir da COP26 — a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas —, que vai acontecer em novembro em Glasgow.

  • G |Como o desmatamento da Amazônia tem influenciado esse quadro?

    PA |

    O desmatamento da Amazônia e de todas as florestas tropicais do mundo é responsável por 13% do total das emissões. O Brasil tem como uma de suas obrigações no Acordo de Paris zerar o desmatamento da Amazônia até 2025. Só que o atual governo está indo na direção contrária à de seus próprios compromissos internacionais. Isso é muito ruim porque transforma o Brasil basicamente num país que não cumpre a sua palavra no contexto global, perdendo credibilidade como nação. É péssimo para a imagem do país como um todo.

  • G |Em alguns lugares, a floresta amazônica já emite mais gás carbônico do que absorve. Estamos perto de 20% de floresta destruída. Dá para dizer que a Amazônia está próxima de um esgotamento?

    PA |

    É difícil dizer isso porque o ecossistema amazônico é muito complexo. Trabalhos de modelagem climática indicam que, se chegarmos a um desmatamento de 40% ou a um aumento de temperatura de 5º C na floresta amazônica, ela poderá não ter mais condições de sobreviver a esse novo clima. O mais importante é que já estamos na metade desse caminho. Temos um desmatamento de 20%, e um detalhe importante é que esse número é uma média para a floresta como um todo, cerca de 5,5 milhões quilômetros quadrados. Nas regiões leste e sul da Amazônia, o desmatamento regional já é muito maior do que esses 20%. Por isso, somos levados a observar que, em algumas regiões, a floresta já é uma fonte de gás carbônico para a atmosfera global.

Vamos ter muito menos chuvas no Brasil central. Já podemos prever uma piora da produtividade agropecuária no Brasil

Ricardo Moraes/Reuters

O gado pasta em um campo destruído por incêndios provocados por agricultores na floresta amazônica

  • G |Espera-se que as mudanças climáticas forcem alterações na própria produção agrícola nas próximas décadas. Considerando que o avanço da agropecuária é uma das principais causas do desmatamento, deve haver uma preocupação maior sobre o problema dentro do próprio setor?

    PA |

    Sim, parte do agronegócio brasileiro já está muito preocupada com esse cenário apresentado pelo IPCC. A própria JBS, por exemplo, abriu um fundo de R$ 1 bilhão de proteção à floresta amazônica. Não porque sejam bonzinhos ou porque viraram ambientalistas da noite para o dia. É que eles estão percebendo que isso pode se tornar um tiro no pé. Por isso, é estratégico para o agronegócio brasileiro proteger a Amazônia da destruição que o governo vem permitindo.

  • G |O negacionismo científico ainda dificulta a tomada de decisões mais firmes sobre essa questão?

    PA |

    Não é que dificulta. Na verdade, eu nem chamo de negacionismo. O que o atual governo faz não é propriamente negar a ciência, mas sim uma tentativa de manipulá-la para seus objetivos econômicos, religiosos e políticos. Quando o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) diz que o desmatamento da Amazônia está aumentando, vai o governo e fala que o instituto está fazendo ciência de baixa qualidade e está faltando com a verdade. Quando, no final da estação seca, o Inpe mostra que o desmatamento está diminuindo por causa da chegada das chuvas, aí o governo coloca que a instituição está fazendo um trabalho brilhante de monitoramento de queimadas e desmatamento na Amazônia, mostrando que as ações do governo estão tendo impacto. Então é uma manipulação — e uma manipulação muito malfeita, na verdade — dos dados científicos.

  • G |Caso não seja posto um freio nas ações de desmatamento nas próximas décadas, quais devem ser as consequências?

    PA |

    Obviamente, vamos ter muito menos chuvas no Brasil central. Toda essa região, que é alimentada pelo vapor de água que sai da Amazônia, terá precipitações reduzidas, como já está ocorrendo. Isso aliado a uma mudança climática global, que também demonstra um forte aumento de temperaturas nessa mesma região, associado a uma redução da evapotranspiração [processo de perda de água do solo por evaporação e das plantas por transpiração] e da umidade do solo, o que é crítico para a agricultura. Então já podemos prever uma piora da produtividade agropecuária no Brasil, sem dúvida nenhuma.

  • G |Pensando em interesses econômicos e da indústria, é viável acreditar numa mudança? Existe uma possibilidade real de aliar desenvolvimento econômico e sustentabilidade numa escala muito maior?

    PA |

    Muitas empresas estão implementando práticas chamadas de ESG [governança ambiental, social e corporativa], em que a questão social, de sustentabilidade, ambiental e de governança são levadas em conta. Esse é um movimento que todas as empresas modernas estão implementando atualmente. Agora, evidentemente, o Brasil tem muitas empresas que ainda vivem na época da escravidão, com o mesmo pensamento de uns 200 anos atrás, não se preocupando com a sustentabilidade de seu negócio mesmo a curto prazo. Essas empresas, que infelizmente ainda predominam no cenário econômico nacional, não devem ter muito sucesso economicamente no Brasil das próximas décadas.

  • G |O que é preciso fazer para mudar essa realidade dentro do mercado brasileiro?

    PA |

    Precisamos de políticas públicas que premiem decisões que levam em conta as necessidades da população brasileira e que não fortaleçam interesses econômicos que passem por cima das questões ambientais, sociais e até mesmo da legislação. São necessárias políticas públicas que façam com que a lei no Brasil volte a ser respeitada, esse é o ponto principal.

  • G |E em relação aos hábitos da população?

    PA |

    Evidentemente, muitos cidadãos do planeta estão tentando praticar hábitos mais sustentáveis. Isso se traduz, por exemplo, em comer menos carne, usar menos automóveis e passar a andar mais de bicicleta no transporte urbano, fazer mais exercícios etc. Essa é uma tendência que não tem mais volta na nossa sociedade.

Precisamos de políticas públicas urgentes, efetivas e baseadas na ciência sendo implementadas o quanto antes

  • G |Que medidas precisam ser tomadas imediatamente num contexto global para começar a reverter ou ao menos brecar essa situação?

    PA |

    O IPCC coloca a receita muito claramente. Devemos reduzir as emissões de gases de efeito estufa, principalmente na queima de combustíveis fósseis e no desmatamento de florestas tropicais, o mais rápido possível e da maneira mais intensa possível para a economia do planeta como um todo. Os riscos de não implementarmos essas políticas são enormes não só para o futuro, mas também para o presente, para nossa situação atual. Então não há a menor dúvida de que precisamos de políticas públicas urgentes, efetivas e baseadas na ciência sendo implementadas o quanto antes.

Reuters

Um barco solitário atraca contra um banco de areia que sai das águas escassas do rio Solimões

  • G |O que podemos esperar dos efeitos mais imediatos desse quadro dentro dos próximos anos?

    PA |

    As mudanças climáticas que já estamos observando, como a desertificação do Nordeste brasileiro e a diminuição da produtividade agrícola no Brasil central são questões que só devem se intensificar se não mudarmos o cenário de desmatamento da Amazônia e de mudanças climáticas globais. É muito claro que as mudanças climáticas vão atingir mais fortemente a população mais pobre e vulnerável. Se pensarmos no planeta como um todo, um americano que mora numa casa de 300 m² no Texas vai ser muito menos impactado do que um brasileiro que mora numa comunidade.

  • G |Qual deve ser o impacto a longo prazo para a economia e a indústria?

    PA |

    Se o Brasil quiser ser uma potência agrícola com a exploração da exportação de soja e produção de carne, temos que repensar nosso modo de operar. Essas atividades, que hoje são lucrativas para o país, podem ter sua produtividade reduzida com as mudanças climáticas e, com isso, não termos uma estratégia econômica que seja suficiente para sustentar as 213 milhões de pessoas que vivem aqui. Então precisamos repensar nosso modelo de desenvolvimento nacional.

  • G |Fica difícil pensar em um projeto mais unificado e contínuo para o país, levando em conta a alternância de governos e de interesses políticos e econômicos no poder?

    PA |

    Não é difícil pensar nisso. O que fica mais claro hoje é que os governos no Brasil precisam ter estratégias para muito além dos quatro anos que vão ficar no poder. Precisamos ter um projeto como nação. Devemos fazer a pergunta: que país queremos para os próximos 10, 20, 50 ou 100 anos? Devemos ter um governo que consiga pensar na nação brasileira a médio e longo prazo, e não unicamente em ter o maior lucro possível no menor espaço de tempo, aumentando as desigualdades sociais o máximo possível, como estamos fazendo atualmente.

  • G |Dá para dizer com alguma certeza se já estamos próximos de um ponto sem retorno em relação ao aquecimento global?

    PA |

    Algumas das mudanças que estamos observando já são irreversíveis. Mas o IPCC deixa muito claro: quanto mais cedo reduzirmos emissões e da maneira mais forte possível, menores serão os impactos futuros. O papel dos cientistas é alertar a sociedade e a população sobre os riscos que estamos correndo, as principais vulnerabilidades, e quais as mais importantes linhas de ação para mitigar o problema e adaptar a sociedade às mudanças climáticas.

  • G |E como lidar com os efeitos do aquecimento global que já estão entre nós e devem se intensificar nos próximos anos?

    PA |

    Eles já estão tendo um impacto enorme na sociedade. Com a crise hídrica, temos várias cidades do estado de São Paulo praticamente sem água, com ameaça de racionamento. Isso requer um planejamento de longo prazo. Se décadas atrás o país tivesse investido em energia solar e eólica no Nordeste, a crise energética hoje teria sido muito atenuada. Essa falta de um projeto de país, de uma visão de futuro, está trazendo prejuízos enormes para a sociedade brasileira.