“Será preciso enterrar vidas para destruir estruturas históricas”
Com a chegada de um novo vírus, eu pergunto: em algum momento não fomos distantes?
Não vivemos juntos. São muitos os muros que nos separam. De um lado, uma população historicamente marginalizada, precarizada. Do outro, os herdeiros do poder. Poder verbo. Eles podem.
Faz pouco menos de um mês que a ordem do mundo se inverteu. Se antes nós clamávamos por uma população unida, que soubesse conviver, misturando suas culturas, abraçando, vivendo em comunhão, hoje imploramos para que, por favor, fiquem em casa, não se encostem. As palavras de ordem são “distanciamento social” e uma parte de mim é obrigada a questionar: em algum momento não fomos distantes?
A internet nos aproximou. É possível assistir a pessoas que estão do outro lado do mundo em um clique. Mas eu questiono se as redes sociais nos uniram. Na vida real, o silêncio impera enquanto grupos grudam seus olhos nas telas. Não há convivência sem olho no olho.
Quando pensamos em classes sociais, jamais houve proximidade ou tentativa de integração. Eles e nós. A primeira morte por coronavírus no estado do Rio de Janeiro foi de uma mulher de 63 anos, empregada doméstica, diabética, hipertensa. A patroa voltou da Itália e não respeitou as recomendações de isolamento absoluto, manteve sua funcionária trabalhando e sendo exposta a um vírus potencialmente letal.
Quem tem o direito ao poder? Quem pode não trabalhar? Quem pode, neste momento, escolher não viver junto?
Quando falamos em escravidão moderna, nem sempre nos referimos ao trabalho pouco ou não remunerado. São os símbolos. Moramos num país em que é preciso viralizar mensagens de “dispense sua faxineira” para tentar a qualquer custo convencer os detentores de poder a não colocar um ser humano em risco de vida. O distanciamento nunca acabou. Nós forjamos uma convivência “como se fosse família”, mas nunca é.
Andei lendo que foi preciso surgir um novo vírus para que chegássemos à igualdade social, já que todos tememos pelas nossas vidas. Mas alguns podem lavar as mãos, enquanto moradores de favelas denunciam a falta de água. Veja, nunca houve fornecimento abundante de água limpa, a reivindicação é antiga. Dividimos a cidade — arrisco dizer que convivemos em efemérides como Carnaval e Copa do Mundo –, mas jamais fizemos, verdadeiramente, da luta deles a nossa. Quem pode finge bem.
Precisamos viver juntos. Olhar os outros com humanidade, ter empatia com as lutas alheias, defender direitos com unhas e dentes, desapegar dos privilégios
Quarentena não é férias; portanto, precisamos politizar. A recomendação é clara: não saia na rua. Mas os transportes públicos continuam superlotados, a migração diária entre área nobre e área pobre continua acontecendo como um pêndulo. Vai e volta. Sem sabonete, sem álcool-gel. Carregando o medo, a angústia, a preocupação. Mas, se não trabalhar, não se ganha. Não se pode se dar ao luxo da autoproteção. Sobreviver é artigo caro, que poucos podem comprar.
No desespero, alguns são tomados pela espírito da solidariedade. As redes sociais estão abarrotadas de artistas e comunicadores entrando ao vivo para distrair seus públicos, famílias voltaram toda atenção aos idosos, amigos que mal se falavam passam horas pendurados ao telefone, alguns começaram a doar itens de higiene. Na hora do perrengue, lembramos daquilo que importa. É hora de repensar as barreiras que nos afastaram por tanto tempo.
Para enxergar o outro, é preciso abrir os olhos. Quando o mundo desvirar, seremos outros. Governos liberais foram obrigados a abraçar intervenções estatais. Parte da elite arrumará a própria casa. Ansiaremos por aquele abraço apertado que tem andado fora de moda. Novamente, será preciso enterrar vidas para destruir estruturas históricas. A vida tratará de ensinar aquilo que nos recusamos a aprender: precisamos viver juntos. Olhar os outros com humanidade, ter empatia com as lutas alheias, defender direitos com unhas e dentes, desapegar dos privilégios. O mundo se reapresenta como um organismo vivo. Nós dependemos de nós. O distanciamento social precisa acabar junto com a quarentena.
Isabela Reis é jornalista formada pela UFRJ e ativista. Aos 24 anos, fala e escreve sobre feminismo, questões raciais e política no Instagram (@belareis). Divide o podcast Angu de Grilo com a mãe, a jornalista Flávia Oliveira
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CAPA Como viver junto?
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1Conversas "Vivemos em cidades cosmopolitas, mas ainda em bolhas"
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2Sociedade Caminhos possíveis em tempos de distanciamento social
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3Sociedade "Todos tememos pelas nossas vidas"
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4Relações Dicas para manter boas relações
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5Bloco de notas Os achados por trás disso tudo
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6Podcast da semana Como viver juntos?