Por que ainda nos casamos? — Gama Revista
Como vai o seu amor?
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Conversas

“Um casamento que vai bem hoje funciona melhor do que nossos ancestrais jamais sonharam”

Vivemos um momento em que casar é testar novos acordos. É o que diz à Gama a historiadora norte-americana Stephanie Coontz, que há 50 anos estuda como amamos, casamos e nos separamos

Laura Capelhuchnik 04 de Abril de 2020
©Fabrizio Lenci

“Um casamento que vai bem hoje funciona melhor do que nossos ancestrais jamais sonharam”

Vivemos um momento em que casar é testar novos acordos. É o que diz à Gama a historiadora norte-americana Stephanie Coontz, que há 50 anos estuda como amamos, casamos e nos separamos

Laura Capelhuchnik 04 de Abril de 2020

Nunca esperamos tanto de um casamento, ao mesmo tempo em que nunca fomos tão livres para casar, descasar e, quem sabe, casar de novo. É o que a historiadora norte-americana Stephanie Coontz chama de o “paradoxo da compatibilidade amorosa”: vivemos um período inédito de grandes expectativas no casamento relacionadas a igualdade, honestidade e respeito mútuo. Ao passo que é inédita também nossa alta capacidade de desapego. Permanecer não é mais o principal imperativo do casamento no século 21.

Coontz é professora e pesquisadora emérita da Evergreen State College e diretora de pesquisa e educação pública do Conselho de Famílias Contemporâneas, nos Estados Unidos. Se dedica aos estudos sobre família, gênero e as mudanças nas paisagens desenhadas pelas relações entre amor, sexo e relacionamentos. A historiadora tem cinco livros publicados, incluindo “Marriage, a History”, sobre a chegada do amor na equação matrimonial, antes baseado em alianças políticas e necessidades práticas.

Ela também colabora com o New York Times e, recentemente, escreveu um artigo para o jornal com o título “Para um casamento melhor, aja como uma pessoa solteira“. No texto, comenta que agora que passamos cada vez mais tempo de nossas vidas fora de um casamento — isso porque nos casamos mais tarde e as relações costumam durar menos tempo — é importante cultivar as habilidades de uma boa solteirice, como manter boas amizades.

Interagir com pessoas e atividades alheias à relação a dois, segundo Coontz, é uma das ações que mais aumenta a satisfação no casamento. É claro, que, em tempos de distanciamento social isso fica mais difícil. A quarentena trouxe aos casais um desafio duplo: lidar com a insegurança relaciona às questões do cotidiano e ainda cuidar da relação, tentando oxigenar uma convivência ainda mais intensa. Sobre estes tempos ela constata que dias difíceis virão até para os casais mais afinados.

Em entrevista a Gama, Stephanie Coontz analisa esses fenômenos e a situação do amor em quarentena.

  • G |Casar por amor é uma ideia relativamente recente. Essa união entre amor e casamento deu certo?

    Stephanie Coontz |

    Casamentos baseados no amor são mais frágeis do que casamentos que acontecem pela coerção dos pais ou por necessidades práticas. Mas, quando funcionam bem, são muito mais satisfatórios. Por milhares de anos, as mulheres tiveram de obedecer: primeiro a seus pais e depois a seus maridos. Esperava-se que elas fizessem todos os sacrifícios e ajustes necessários no casamento. Mesmo depois que os casais começaram a se casar por amor, muitas pessoas acreditavam que os homens deveriam estar no comando e as mulheres, submissas. Mas gradualmente um novo ideal de amor surgiu. Mais e mais pessoas querem um casamento baseado na igualdade, na negociação e nos interesses compartilhados. Esses casamentos exigem mais trabalho do que os do passado, mas quando as pessoas estão dispostas a fazer esse trabalho, os benefícios são enormes, para os parceiros e para os filhos.

  • G |O que muda com essa consciência?

    SC |

    Cada vez mais, descobrimos que compartilhar as tarefas domésticas, o cuidado com as crianças e o sustento da casa leva a casamentos mais satisfatórios para os dois. Nos Estados Unidos, diferentemente de 30 anos atrás, os casais que compartilham cuidados infantis e tarefas domésticas relataram maior satisfação sexual — e no relacionamento de um modo geral — que casais que mantêm os velhos padrões de comportamento. Em qualquer parte da Europa Ocidental, casais em que ambos trabalham e ajudam a manter a casa têm taxas de divórcio mais baixas do que as famílias que se baseiam no modelo do homem provedor.

  • G |Em diferentes partes do mundo, as pessoas têm se casado cada vez mais velhas. Como você analisa isso?

    SC |

    Uma parte é reflexo do aumento da escolaridade e participação econômica das mulheres. A outra está relacionada ao fato de que tem sido mais difícil criar uma família com uma só fonte de renda ou com uma educação muito limitada. Então mais homens e mulheres estão adiando o casamento até que tenham a educação e a experiência profissional que garantam uma boa base para sustentar a família.

  • G |Mas e o fator “curtir a vida, ter mais experiências”, não colabora para essa espera?

    SC |

    Quando analisamos as tendências internacionais, o fator mais importante no postergamento da idade do casamento para as mulheres é o aumento no envolvimento com a educação. Mas é claro que, à medida que as mulheres estudam mais e têm mais oportunidades de trabalho, elas têm mais alternativas ao casamento, ou pelo menos mais opções sobre quando casar. Portanto, sim, elas frequentemente prolongam o período de solteirice porque o aproveitam.

  • G |No Brasil, um em cada três casamentos termina em divórcio e o número de matrimônios diminui, mas continuamos nos casando muito. Por quê?

    SC |

    Quando as pessoas encontram um parceiro que promete atender as suas expectativas tendem a pensar que o casamento é o melhor destino para o relacionamento. Ao mesmo tempo, aumenta a aceitação para a opção de não se casar ou de se divorciar. Quando um casamento funciona bem hoje, funciona melhor do que nossos ancestrais jamais ousariam sonhar. Mas quando não funciona bem, parece menos suportável para as pessoas. Em certo sentido, o casamento é mais um investimento de alto risco do que costumava ser. Optar por um casamento talvez não faça você se sentir melhor do que quando era solteiro.

  • G |Uma pesquisa encomendada pela Gama mostra que 80% das pessoas entre 35 e 44 anos no Brasil estão em um relacionamento fixo e fechado. Parece que existe uma idade em que o casamento se mantém estável. Por quê?

    SC |

    Suspeito que isso seja reflexo do fato de que muitas pessoas nessa faixa etária se estabeleceram em um relacionamento comprometido, mas voluntário, depois de superar experiências ou erros juvenis. E estão felizes com a maneira como está funcionando. Ao mesmo tempo, as pessoas não estão mais dispostas a permanecer em um casamento que vai se estagnando, mesmo em uma idade já avançada. Nos EUA, a taxa de divórcio para pessoas nessa faixa etária [35 a 44 anos] caiu, mas a taxa de divórcio para pessoas com 50 anos ou mais dobrou desde 1990 e, para pessoas com mais de 65 anos, triplicou.

  • G |De uma perspectiva histórica, o que há de novo nos relacionamentos?

    SC |

    Eu acho que a mudança mais interessante é a ênfase crescente no consentimento. Cada vez mais pessoas estão dizendo que a questão não é o arranjo sexual ou de vida que você propõe, mas se essa escolha foi aceita por todos os envolvidos. É por isso que acredito que acordos poliamorosos podem existir lado a lado com acordos monogâmicos. Isso contrasta com os velhos tempos, em que se esperava que as esposas fossem monogâmicas, mas os homens se sentiam livres para ter casos sem a permissão ou o conhecimento de suas esposas.

  • G |Ainda há uma expectativa de que nos casemos?

    SC |

    Muitos indivíduos e grupos mantêm a visão tradicional de que todos deveriam se casar. No entanto, mesmo alguns grupos religiosos muito tradicionais tornaram-se mais tolerantes à solteirice e até ao divórcio. No geral, vemos uma aceitação crescente à opção por não se casar e até mesmo à ideia de que os filhos podem ser melhor criados por pais solteiros ou divorciados do que no meio de um casamento ruim ou em conflito — embora essa mudança tenha ocorrido em taxas diferentes em diferentes regiões do mundo. Há muito menos desaprovação de pessoas que permanecem solteiras do que no passado. Uma descoberta interessante é que, quando a emancipação das mulheres começa em uma sociedade, as mais instruídas e com melhores salários são as que tendem a evitar o casamento ou, se casadas, buscam o divórcio. Mas, à medida que as sociedades se tornam mais igualitárias e as mulheres ganham mais poder de negociação no casamento, as com mais formação e maior salário tornam-se mais propensas a se casar, e menos propensas a se divorciar.

  • G |Em um artigo você escreveu “para ter um bom casamento, aja como um solteiro”. Quais aspectos de fora do casamento podem contribuir com as dinâmicas internas?

    SC |

    Esse é um paradoxo interessante. Hoje, passamos boa parte de nossa vida adulta fora do casamento. Por isso é vital cultivar uma vida social com amigos, colegas de trabalho, algo assim. E esses laços se tornam ainda mais importantes para o nosso bem-estar à medida que envelhecemos, mais do que se temos ou não um par romântico. No entanto, como esperamos muito do casamento, muitas pessoas tendem a reduzir seus laços quando se casam, diminuindo o tempo com os amigos e as obrigações sociais para se dedicar à família e às pessoas no entorno dela. É importante desenvolver redes sociais compartilhadas, o casal socializar com outras pessoas em vez de se encasular em casa. Nossos relacionamentos amorosos também ficam mais ricos quando cada parceiro tem outros amigos e confidentes a quem possam recorrer.

  • G |Você já disse que “as emoções mais fortes não são o que sustentam os casamentos mais estáveis e satisfatórios”. Quais são as fundações de um bom casamento?

    SC |

    Nos últimos 250 anos, enfatizamos cada vez mais a importância do amor como a base do casamento. Mas é claro que existem muitas definições e estágios diferentes de amor. A atração romântica é extremamente forte, mas geralmente é baseada em aspectos superficiais e tende a ser artificialmente intensificada pela insegurança de não saber se a atração é recíproca. Estudos mostram que nossas mentes frequentemente confundem a tensão ou a ansiedade associada a situações desafiadoras ou levemente perigosas com atração erótica. Mas esse tipo de atração erótica tende a desaparecer com a constituição da família, por isso não é uma boa base para o amor duradouro. Hoje, o que mantém um relacionamento são interesses e atividades compartilhados, além de respeito mútuo. É claro que as pessoas trazem suas próprias habilidades e recursos diferentes, mas cada vez mais apreciamos a singularidade de nosso parceiro, e não sua conformidade com um estereótipo de gênero. Então você tem que gostar mais do seu parceiro do que no passado. E para manter a parte amorosa, as pessoas precisam estar dispostas a crescer como indivíduos e também como casal.

  • G |Como o distanciamento social tem afetado as relações amorosas e familiares?

    SC |

    Já temos visto o aumento de ligações relatando violência doméstica à medida que casais com problemas sérios têm a situação agravada sob o estresse e a proximidade constante no isolamento. Acho que também precisamos nos preocupar com o aumento da violência com as crianças nesse contexto em que os pais não podem se afastar das interações constantes para se acalmar.
    Mas é uma pressão até para os casais mais compatíveis, não só por causa dessa aproximação forçada e do afastamento de todo o resto, mas também pela tensão por motivos financeiros. Pesquisadores descobriram que o estresse econômico crônico e a insegurança são ótimos para prever negatividade entre parceiros.

  • G |O que esse novo jeito de viver vai alterar no modo como nos relacionamos amorosamente? 

    SC |

    Alguns casamentos podem sair mais fortes desse período desafiador, muitos vão passar por maus momentos. Se vão resultar em danos permanentes, depende de reconhecermos que todos estão sob tensão. Quanto mais entendermos que a tensão está na situação, não em nosso parceiro, melhor nos daremos. É uma chance de lembrar que estamos juntos nisso e devemos apoiar aqueles que estão ainda mais mergulhados nessa situação, que estão realmente lutando. Quanto mais prestamos ou demonstramos esse apoio a outras pessoas, mais melhoramos nossa moral e fortalecemos nossos  relacionamentos. Este não é apenas um desejo de piedade: pesquisadores mostram que a sensação de bem-estar das pessoas (e também seu bem-estar fisiológico) melhora quando dão algo aos outros ou fazem algo pelos outros. Se existe um tempo para colocar isso em prática, esse tempo é agora.