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ReportagemSeu psicólogo te entende?
Muitos se perguntam se um psicólogo ou analista branco pode compreender um paciente negro; ou um profissional cis e hétero, um paciente LGBTQIA+. Gama foi atrás de respostas
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Seu psicólogo te entende?
Muitos se perguntam se um psicólogo ou analista branco pode compreender um paciente negro; ou um profissional cis e hétero, um paciente LGBTQIA+. Gama foi atrás de respostas
“Existem coisas, Dra. Leigh, que não me sinto confortável em compartilhar com você. E não tem nada que você possa fazer para me deixar mais confortável. Preciso de algo diferente. Preciso de um terapeuta negro.” A fala é de Randall (Sterling K. Brown), um dos personagens da série This Is Us (2016), da NBC. Aos não familiarizados com a produção, Randall é um dos três filhos da família Pearson – o único negro, adotado. Diagnosticado com ansiedade e muitas vezes incompreendido pela família adotiva branca, ele vai em busca de terapia. Depois de algumas sessões com uma psicóloga, percebe que não consegue ser totalmente honesto sobre suas aflições e angústias com ela, justamente pela diferença na cor da pele.
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O caso, apesar de ficcional, extrapola os limites da fantasia, e é um reflexo de um debate cada vez mais presente na sociedade — das identidades sociais e da representatividade, que parecem dar às caras nas salas de terapia. Vítimas de preconceito e violência constantes, grupos minoritários como negros, mulheres e pessoas LGBTQIA+ podem se sentir desconfortáveis e até incompreendidos pelos próprios psicólogos quando o assunto é discriminação e intolerância, como afirmam especialistas ouvidos por Gama. E assim, muitos preferem optar por profissionais com marcadores sociais semelhantes.
“A psicologia foi e ainda é uma ciência da saúde usada para adequar sujeitos, e segue um parâmetro branco, burguês, heteronormativo. Por isso, muitas violências estruturais podem ocorrer nas salas de terapia”, afirma Natália Aparecida da Silva, psicóloga e fundadora do Grupo Reinserir, uma clínica de atendimento psicológico com ênfase em questões raciais, de gênero e sexualidade. “Uma tentativa que as pessoas encontraram de se proteger disto é a confiança em um terapeuta que parta do mesmo lugar que o seu.”
Ela explica que o processo terapêutico não se basta na identificação, mas que é parte importante de todo esse debate, como reafirma a psicóloga e doutoranda Brune Coelho, do Centro de Referência LGBTQIA+ da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora): “A coisa mais importante da psicologia, num primeiro momento, é construção de vínculo, e isso é perpassado necessariamente pelas nossas identidades”.
A psicóloga e psicoterapeuta Maria Lúcia da Silva, especialista em relações raciais e de gênero, além de integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude, diz que a sala de terapia é, teoricamente, um espaço em que o paciente pode destinar aquilo que lhe importuna e inquieta. “Se não consigo me abrir e falar sobre preconceito, por exemplo, não há processo terapêutico.”
Gama questionou especialistas sobre a importância desse debate, se de fato psicólogos com os mesmos marcadores sociais que seus pacientes são capazes de entendê-los com mais profundidade, e qual é, enfim, a origem dessa problemática.
O conflito entre o divã e as identidades sociais
Se nem máquinas e inteligências artificiais são neutras e desprovidas de preconceito, como vemos nas preferências dos algorítmos das redes sociais, que dirá um profissional da saúde mental. “Talvez falte compreensão, por parte de analistas e psicólogos, sobre a realidade do Brasil: reconhecer a existência do racismo, perceber qual é o lugar que ocupa na sociedade, quais são os privilégios ou não que ele detém por sua condição racial”, explica Maria Lúcia da Silva.
A partir dessa percepção, segundo a especialista, o psicólogo é capaz de entender melhor as questões de um paciente com identidade diferente da sua, ainda que sem se isentar totalmente de suas dificuldades e preconceitos – algo que diz não existir. “Não há um lugar de isenção. O analista ocupa um espaço, é uma pessoa, tem história, origem, privilégios.” E adiciona: “O fato de você ser um profissional da saúde mental não significa que você resolveu as questões e preconceitos da vida. Você continua sendo um ser humano”.
A análise não se sustenta no espelho, e sim por aquilo que justamente não aparece no espelho
É normal, entretanto, que as pessoas busquem salas de terapia onde se sintam mais confortáveis para falar sobre qualquer assunto — o que pode significar uma escolha por terapeutas que os pacientes se identifiquem num primeiro momento. O psicólogo Kwame dos Santos, do coletivo Margens Clínicas, diz se tratar de uma tentativa de imaginar um espaço seguro, em que a pessoa sinta que o analista entende, por exemplo, sobre transfobia, racismo, etc. “É possível que isso aconteça, mas não é o que sustenta a análise. Ela não se sustenta no espelho, e sim por aquilo que justamente não aparece no espelho.”
A potência da terapia está, de acordo com os especialistas, na troca, seja entre quem for. Brune Coelho conta de um caso que viveu há pouco, quando precisou conversar com os pais de um paciente em transição de gênero, ainda bem jovem. E relatou que o pai lhe pareceu pouco aberto a ouvir suas considerações. “Os pais eram separados, e a mãe comentou depois que o pai havia dito algo como ‘claro que nosso filho ia virar trans, com uma psicóloga dessas…'”, conta. “Nesse caso, além de eu ter sido vítima de transfobia, a semelhança de identidades entre eu e o paciente não potencializou o processo terapêutico, ainda que não tenha inviabilizado sua permanência no grupo de apoio. Não houve abertura do pai, o que dificultaria uma intervenção, caso fosse necessária”, exemplifica.
Por isso, mais do que focar na diferenças ou compatibilidades identitárias, Brune mostra a importância de, com cuidado, manejar os marcadores sociais que estarão, inevitavelmente, em jogo. “Até que ponto ser atendida por uma mulher trans vai me facilitar entender algumas questões, ou dificultar? Vai fazer com que eu não questione por estar muito próxima? Até que ponto vou me aproximar, ou me afastar?”, questiona. “Tem pessoas que vão precisar de identidades semelhantes, outras que não. Tudo depende de como vamos encará-las na terapia.”
A escuta em primeiro lugar
Em 1982, a psicóloga Maria Lúcia da Silva teve sua primeira experiência em análise – com um profissional negro, que não a acolheu. “Quando disse sobre meu sofrimento e as discriminações que vivi, ele falou que aquilo era bobagem. Também não fui acolhida, em outro momento, por uma analista branca, que não conseguiu compreender o racismo que eu sofria.” Maria Lúcia diz que, independentemente das circunstâncias e identidades, o que se faz necessário é a escuta aberta. “É preciso ter um profissional que, ao me acompanhar, possa também explicitar suas dificuldades, ou seu não entendimento. A análise é um trabalho que só acontece com intimidade, e sem confiança não existe a possibilidade de transformação para nenhum dos dois: nem analista, nem paciente.”
Idealmente, como explica a psicóloga e professora Patricia Porchat, todo analista deveria fazer uma escuta do desejo inconsciente, sem permitir que suas opiniões pessoais interfiram no processo, assim como qualquer forma de preconceito. Entretanto, ressalta como nenhum profissional terá vivido as mesmas experiências que seu paciente. “Um analista branco não sofre qualquer tipo de preconceito ou opressão que uma pessoa negra sofre. O mesmo com analistas héteros, cis e pacientes LGBTQIA+. Mas isso também se aplica a imigrantes, praticantes de determinadas religiões, etc.”, explica.
Em um artigo publicado na revista Lacuna, especializada em psicanálise, as autoras Beatriz Santos e Elsa Polverel refletem sobre a ideia de um “psicanalista safe”, ou um psicanalista seguro — que, segundo o site Psysafe, criado por especialistas da saúde mental, é o profissional capaz de receber pessoas cujas identidades e orientações são consideradas marginalizadas. E o psicanalista perigoso? Segundo as autoras, “trata-se de um analista cuja escuta estaria excessivamente comprometida pelo ruído das certezas derivadas do regime de normas de seu tempo”.
A questão das identidades pode iluminar alguns pontos, mas não pode funcionar como resistência na análise
A lista de marcadores sociais, entretanto, pode se estender infinitamente, e por mais que em algumas situações a semelhança entre eles sirva como premissa para uma sessão mais aberta, honesta e confortável para o paciente, nem sempre é um facilitador do processo da terapia. “A questão das identidades pode iluminar alguns pontos, mas não pode funcionar como resistência na análise. Não acho que só pessoas negras possam atender negros, ou só pessoas LGBTQIA+ possam atender outros da comunidade”, conta Patricia. “Precisa haver uma denúncia de toda forma de preconceito na formação do profissional da saúde mental para que as escutas sejam livres de preconceito. Isso foi o que sempre se buscou.”
A ficção talvez tenha uma resposta simples para toda essa problemática complexa. Em “This Is Us”, Randall se perguntou o que todos nós, em processo terapêutico, deveríamos nos questionar: me sinto confortável em compartilhar o que sinto e penso com este profissional? Identidade, marcadores sociais e visão de mundo podem servir como pontapé inicial para uma sessão com mais abertura e conforto para troca, mas não devem ser os únicos critérios na escolha de um terapeuta — e muito menos servirem como objeção ao cuidado com a saúde mental. “Randall, se buscar um terapeuta negro é algo que você sente que precisa, eu completamente respeito a sua decisão”, foi a resposta da Dra. Leigh ao personagem da série.