Casos de assédio e estupro para não esquecer
De Marcius Melhem a Felipe Prior, Gama recupera os vários episódios de violência sexual contra mulheres que repercutiram em 2020 e mostra como estão os processos
Em 15 de dezembro de 2018, a influenciadora digital Mariana Ferrer, então com 21 anos, registrou um boletim de ocorrência em Florianópolis (SC) alegando ter sido drogada e estuprada durante uma festa no beach club Café de la Musique. O caso veio à tona alguns meses depois, em maio de 2019, quando a jovem falou sobre o assunto pela primeira vez nas redes sociais e passou a usar as plataformas para expor o acontecido e pedir por justiça. O acusado, o empresário André de Camargo Aranha, se tornou réu no processo de estupro de vulnerável em julho daquele ano.
Foi no fim de 2020 que o caso de Mari Ferrer teve um desfecho e que a repercusão da história ganhou mais uma dimensão viral: o debate sobre o tratamento de mulheres vítimas de violência sexual pela justiça brasileira ressurgiu quando o jornal The Intercept Brasil divulgou imagens da audiência em que Aranha foi absolvido por falta de provas e atribuiu o termo “estupro culposo” ao conteúdo da sentença.
A história da influenciadora, no entanto, não foi a única que levantou discussões sobre o assédio sexual e a cultura do estupro no Brasil + no ano passado. A seguir, Gama relembra outros casos de violência sexual revelados em 2020, como aqueles envolvendo o humorista Marcius Melhem e o ex-BBB Felipe Prior.
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A queda de Marcius Melhem
Ex-chefe do humor na Globo é acusado de assédio sexual e moral por Dani Calabresa e outras mulheres
Na verdade, não foi em 2020, mas nos últimos dias de 2019, que as primeiras denúncias de assédio contra o humorista Marcius Melhem se tornaram públicas: em 26 de dezembro daquele ano, uma nota do colunista Leo Dias no UOL apontava que o então coordenador do Departamento de Humor da TV Globo estaria “sendo denunciado por assédio moral por uma série de atrizes do núcleo de humor da emissora”, citando nominalmente Maria Clara Gueiros, que negou ter feito as acusações, e Dani Calabresa, que não se manifestou sobre o assunto na época. Em março de 2020, Melhem pediu uma licença de quatro meses de seu cargo e, em agosto, foi desligado definitivamente da emissora.
Foi só no início de dezembro, porém, que os detalhes e os bastidores da história foram desvendados em uma extensa reportagem do jornalista João Batista Jr. para a revista Piauí. Com relatos de testemunhas, o texto revela que Dani Calabresa vinha sendo assediada moral e sexualmente pelo chefe desde 2017. Em outubro, a advogada Mayra Cotta, que representa a humorista e outras cinco mulheres contra Melhem, já havia comentado sobre os episódios em entrevista à coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo.
Sem resultados satisfatórios para as vítimas na investigação interna da Globo, o caso foi parar na justiça. Em 17 de dezembro de 2020, as advogadas de Calabresa confirmaram o encaminhamento de um pedido de investigação contra Melhem ao Ministério Público Federal, comemorado pela defesa do ator. Na última semana de dezembro, duas atrizes prestaram seus depoimentos à Ouvidoria das Mulheres no Conselho Nacional do MP.
Melhem nega as acusações e, em janeiro de 2021, protocolou uma ação contra Calabresa por danos morais e materiais, divulgando mensagens na tentativa de provar que a relação entre os dois era amigável. Antes de ele abrir o processo, a exposição dos prints e áudios fez com que os advogados dos dois lados trocassem farpas publicamente. O ator também está processando a revista Piauí e outros humoristas que comentaram o caso nas redes sociais.
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A revelação de Anitta
Em documentário, cantora conta que foi estuprada na adolescência
No primeiro episódio da série documental “Anitta: Made In Honório”, lançada pela Netflix em dezembro de 2020 com a promessa de revelar os bastidores da família e da carreira da cantora, Anitta conta que foi estuprada aos 14 anos por um namorado abusivo e que, por muito tempo, se culpou pelo que aconteceu. “Eu percebi que não era certo fazer aquilo por medo nem nada e falei que não queria mais. Mas ele não ouviu. Ele não falou nada, só seguiu fazendo o que queria fazer.” Ela narra, ainda, que o ocorrido foi, de certa forma, decisivo para a criação de sua persona como diva pop. “[Anitta] nasceu da minha vontade e necessidade de ser uma mulher corajosa e que nunca ninguém pudesse machucar.”
Depois da revelação, o movimento MeToo Brasil, que acolhe vítimas de violência sexual, divulgou um texto de apoio à cantora. “Sabemos o quanto é doloroso relembrar um episódio de abuso sexual, principalmente quando corrido em uma fase tão importante do desenvolvimento quanto a adolescência. Por isso, o MeToo Brasil reitera a importância da coragem da cantora, que serve de exemplo a todas e todos que passaram por situações semelhantes a procurarem ajuda e a denunciarem, mesmo que o crime já esteja prescrito”, diz o documento.
A assessoria de imprensa de Anitta publicou nas redes sociais uma nota esclarecendo que a artista não vai mais se pronunciar sobre o assunto. “Tudo (…) já foi dito na série.”
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O assédio na Alesp
Deputada Isa Penna foi apalpada pelo colega Fernando Cury na Assembleia
Durante uma sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo que votava o orçamento do estado para 2021, em dezembro passado, a deputada Isa Penna (PSOL-SP) foi abraçada por trás e apalpada pelo colega Fernando Cury (Cidadania-SP). Penna registrou boletim de ocorrência contra Cury e o denunciou ao Conselho de Ética da Assembleia, pedindo que ele perca o mandato — a expectativa é que uma decisão seja tomada até meados de março. A justiça também autorizou a abertura de uma investigação criminal contra o deputado.
A composição da comissão que julgará o caso sofreu críticas, já que o Conselho de Ética da Alesp conta com apenas uma mulher, a deputada Maria Lúcia Amary (PSDB-SP). O deputado Carlos Giannazi (PSOL-SP) prometeu ceder sua cadeira à suplente Erika Malunguinho (PSOL-SP) e pediu a substituição de outros homens da comissão por mulheres. Enquanto os trâmites da denúncia correm na Alesp e na justiça, o conselho do Cidadania já sugeriu a expulsão de Fernando Cury, medida que ainda depende da análise da diretoria nacional do partido.
O episódio de violência contra Isa Penna trouxe a público relatos de outras deputadas sobre situações semelhantes vividas por elas. Tabata Amaral (PDT-SP), Joice Hasselmann (PSL-SP), Áurea Carolina (PSOL-MG) e Clarissa Garotinho (PROS-RJ) afirmam que já sofreram assédio de colegas homens durante o exercício de seus mandatos. Em uma entrevista recente ao jornal Folha de S. Paulo, Penna relembrou outros casos, afirmou que não se sente segura no trajeto de seu gabinete ao plenário e cobrou uma reação do governador João Doria.
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As denúncias contra Felipe Prior
Ex-BBB é acusado de estupro, tentativa de estupro e assédio sexual
Logo depois de deixar a casa do Big Brother Brasil no paredão mais votado da história do programa, em abril de 2020, o arquiteto Felipe Prior aparecia nas manchetes do país por outro motivo: a revista Marie Claire publicou uma reportagem revelando duas acusações de estupro e uma de tentativa de estupro contra o ex-BBB. No texto, as vítimas relatam os crimes que teriam acontecido em 2014, 2016 e 2018.
Em outubro passado, a justiça aceitou a denúncia do estupro de 2014 e Prior se tornou réu no processo, que corre em segredo de justiça. A defesa alega inocência, e o julgamento deve acontecer em maio deste ano.
Enquanto isso, o ex-BBB continua se envolvendo em episódios de violência sexual: em dezembro, duas mulheres registraram um boletim de ocorrência por terem sido assediadas por ele em uma festa em Brasília. O arquiteto negou as novas acusações e disse que tomaria as medidas cabíveis contra uma das vítimas, que o teria chamado de “estuprador” na ocasião.
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A menina de dez anos e a militância antiaborto
Criança que engravidou depois de ser estuprada pelo tio virou alvo de ultraconservadores
O caso da menina de dez anos que engravidou depois de ser estuprada pelo tio em São Mateus, no Espírito Santo, ganhou repercussão em agosto de 2020 por causa da mobilização de grupos ultraconservadores, políticos e até médicos contrários à realização do aborto — permitido pela legislação brasileira em casos de estupro desde os anos 1940 — autorizado pela Justiça estadual e negado pelo Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo. O Ministério Público Federal enviou um ofício à instituição cobrando esclarecimentos sobre a recusa.
Por causa disso, a criança teve que viajar para o Recife, onde o procedimento foi realizado. Todo o processo deveria correr em sigilo, mas o nome da menina e o hospital em que seria realizada a interrupção da gestação viralizaram nas redes sociais quando a extremista bolsonarista Sara Geromini, conhecida como Sara Winter, divulgou um vídeo com essas informações. Vítima de violência sexual, a garota de dez anos se transformou em alvo de militantes antiaborto na internet e de um grupo liderado por políticos ligados a igrejas, que realizou protestos na porta do hospital e hostilizou a equipe médica sob gritos de “assassinos”.
Um mês depois, a Folha de S. Paulo revelou que a ministra Damares Alves, titular da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, enviou assessores para o Espírito Santo com o objetivo de impedir a interrupção da gravidez da menina. Em novembro, a Procuradoria-Geral da República abriu uma investigação inicial sobre o envolvimento de Damares no caso.
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As acusações contra Saul Klein
14 mulheres denunciam o empresário por aliciamento e estupro
Denúncias de aliciamento e estupro contra o empresário Saul Klein, filho do fundador das Casas Bahia, vieram à tona em dezembro de 2020, quando ele foi obrigado a entregar seu passaporte à Justiça e ficou proibido de manter contato com as 14 mulheres que fizeram as acusações. Em julho do ano passado, a polícia já havia arquivado um inquérito parecido que incluía também a exploração sexual de uma menor de idade. Agora, outras 25 mulheres cogitam se juntar à ação do Ministério Público.
As vítimas alegam que Klein aliciava e estuprava mulheres em festas em sua casa, em Barueri (SP), desde 2008. Segundo o Ministério Público, os relatos incluem atividades sexuais, “inclusive de modo humilhante e a contragosto”, ingestão de drogas e submissão a consultas e procedimentos médicos com ginecologistas e cirurgiões plásticos. Já a defesa, que descreve o empresário como um “sugar daddy” — homem mais velho que sustenta financeiramente mulheres jovens em troca de afeto e sexo —, nega os crimes e trata o caso como tentativa de extorsão.
Após as acusações, a Via Varejo, proprietária das redes Casas Bahia e Ponto Frio, divulgou uma nota afirmando que Saul Klein “não possui qualquer vínculo com a companhia”. O processo corre em segredo de justiça.
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As 50 vítimas de um comerciante mineiro
Dono de loja de roupas em Belo Horizonte responde por estupro e assediava clientes e funcionárias
Nos últimos dias de 2020, cerca de 50 mulheres usaram as redes sociais para denunciar o comerciante mineiro Cleidson dos Santos Fernandes por violência sexual. Estimuladas por uma publicação da consultora financeira Maria Eduarda Amaral, reunindo alguns relatos, as vítimas — entre elas funcionárias, clientes e jovens atraídas por promessas de trabalho — expuseram casos de assédio e estupro. A maioria dos crimes teria ocorrido nos provadores da loja de roupas de Fernandes, em um shopping de Belo Horizonte.
A primeira denúncia contra o comerciante, registrada em 2017 por uma mulher que o acusou de abuso sexual durante uma entrevista de emprego, foi arquivada por falta de provas. O acusado também é réu em um processo de estupro aberto em 2018, que teve uma audiência cancelada por causa da pandemia.
Em dezembro de 2020, dezenas de novos casos foram revelados e pelo menos sete mulheres já oficializaram as queixas e foram ouvidas pela polícia. A defesa nega as acusações, e a administração do shopping informou que a loja de Fernandes encerrará as atividades.
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