Faz o que eu mandar
A escritora Natércia Pontes e o relato de uma missão quase impossível: dormir. “Além de a insônia ser tão imprevisível quanto o bocejo, há múltiplas implicações que envolvem ter gêmeas em casa”
A obrigação de cortar quarenta miniunhas a cada três dias (o pai delas tem verdadeiro pavor de cometer um crime ao fazê-lo) é uma das múltiplas implicações que envolvem ter gêmeas em casa. Enquanto observo minhas cutículas encrespando, só consigo definir a sensação permanente que padeço como a de ser vítima de um alfinete falante na base do pescoço eternamente cochichando no meu ouvido: “Faz o que eu mandar”.
Essa cena eu roubei de um filme que adoro, “Mar de Rosas”, em que a atriz Cristina Pereira encarna o papel inesquecível de Betinha, uma criança má que de forma sádica espezinha e fustiga a mãe, Felicidade, com um alfinete na sua jugular, enquanto ela tenta dirigir um fusca na estrada. Pois. Se a Norma Bengell tenta dirigir um fusca na estrada, eu tento dormir.
Já nasci com olheiras, devendo algumas horinhas de sono ao deslizar nas mãos do obstetra. Sofro há longos quarenta anos de uma insônia atroz. Antes de ter filhos, achava que tê-los amansaria minha insônia, no que estava parcialmente correta. Explico: meu cansaço injustificável agora poderia ter um nome, aliás, dois: Olga e Madalena, conhecidas também como “Perversas Polimorfas e Macias”. Ainda sem dormir direito, sigo eternamente exausta, no entanto, hoje consigo ser respeitada socialmente.
Já nasci com olheiras, devendo algumas horinhas de sono ao deslizar nas mãos do obstetra. Sofro há longos quarenta anos de uma insônia atroz
Se estou com a raiz do cabelo empapada de óleo, vagando a dois palmos do chão diante da seção de frios do supermercado: “Guerreira!”. Se estou há dias sem pregar o olho à noite, cochilando intermitentemente durante a tarde: “Mãezona!”. Se devido a intensa privação de sono troco palavras e ponho a chaleira elétrica sobre a boca do fogão acesa: “Maravilhosa!”. Se minhas unhas sumiram debaixo dos novelos de cutículas e as nódoas de alvejante nas roupas passam como uma despretensiosa lavagem tie-dye: “Rainha!”. Se jogo meu rg no lixo e guardo na pasta de documentos importantes um rótulo da lata de mexilhões em conserva: “Deusa Gaia”! Mas antes de ter filhas eu já era assim, eu já fazia tudo isso, ou não fazia nada. A diferença é o alfinete na jugular; eu não posso me dar ao luxo de vestir um pijama decente, apagar o sistema com um punhado de ansiolíticos e passar uma vida inteira ou mesmo “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”, como a morfética personagem da Otessa Moshfegh. Que inveja.
Invejo também minhas filhas que dormem a noite inteira desde os três meses de idade. (Dado isso, não é exatamente a existência delas que me impede de dormir oito horas seguidas, apesar de que uma tossezinha inocente vinda do quarto de lá é capaz de arruinar algumas centenas de carneiros contados.) Felizmente, ao que tudo indica, elas herdaram o gene carinha-fresca-pela-manhã do pai. Meio caminho andado: certamente não sofrerão os obstáculos morais e humilhações sociais pelo qual passam pessoas maldormidas. A seguir, meu dossiê mais ou menos literário da minha semana de tentativa de descanso e relaxamento:
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Dia 1
Cérebro pastoso. É noite ou dia? Coloquei o feijão de molho? Isto aqui pinicando a batata da minha perna é a minha própria unha?
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Dia 2
Como é bom dormir sabendo que minhas filhotas estão devidamente alimentadas, banhadas, vestidas em seus pijamas e fraldas secas, tão penteadas, com seus cabelos estilizados para trás. Mas… um momento. Quem é essa pessoa diante do espelho?! Cristina Pereira, é você?
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Dia 3
A tosse às vezes é tão persistente que em um crescendo vira uma golfada, que por sua vez vira um muco espesso e volumoso, que ato contínuo vira um vômito ruidoso, que por fim culmina em uma maçaroca de leite coalhado e grãos de feijão semimastigados espalhados poeticamente pela fronha de coraçõezinhos. A solução é acordar com os engulhos sincopados na babá eletrônica, trazer a polimorfa em questão para a cama e deixar o refluxo secar no berço durante a madrugada. Depois é só incinerar o lençol.
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Dia 4
Resolvi deixar de lado as notícias do país em chamas e me pus a arrumar o guarda-roupa das pequenas. Encontrei um maço de cigarros na gaveta de gorros e meias. Quando o serviço social me interrogar direi que vou morrer sem saber como foi parar ali.
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Dia 5
Olga e a Madalena pedem para ver a estrela na minha barriga e logo se entendiam com suas miniunhas amoladas, exigem uma chupeta, um pato de borracha, e, depois de um festival de choro, a gente se amontoa e vira uma coisa só. Durmo. Sonhei longamente que estava numa praia de areia branquíssima. No areão, no meio do caminho que eu fazia, surgiu uma fenda d’água e nela um peixe enorme se pôs a me encarar, impedindo a passagem. Pulei na água e colhi o peixe pelo rabo, com a minha mão. Tinha molares pavorosos e olhos fundos como os do Roberto Carlos. Joguei o peixe longe e segui feliz. Acordei cansada. Chequei as pequenas, o pai delas ressona tranquilo. Mas o trato era que eu também dormisse. Acordada, reflito se vou mandar para dentro esse inofensivo Dramin. Não que minhas filhas corram o risco de me perder por isso.
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Dia 6
O sono profundo a gente engole e mastiga, ruminando imagens debaixo dos olhos, como peixes desinteressados flutuando no aquário. A horas se espicham, e depois do transe não somos mais os mesmos, mas uma versão melhor de si. Outras vezes as imagens fundem-se em um negror absoluto, que nos golpeia docemente, deixando um rastro de suor no meio das costas.
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Dia 7
Olga e Madalena parecem não se lembrar que eu as abandonei. Disputam uma boneca combalida, cujos laços de fita sumiram para sempre nos recônditos do sofá. Daqui a pouco elas dormirão em seus berços, tensionando as pequenas pálpebras, girando sobre o colchão com seus bracinhos e pernas, imitando os girassóis. Eu as observo sem saber quando terei outra oportunidade de dormir tão bem.
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Conclusão
Considero parcialmente cumprida minha incursão ao mundo cor de rosa das oito horas de sono. Para minhas filhas e para o pai delas, tudo permaneceu igual: edredons convidativos, sonos reparadores, manhãs ensolaradas e alegria excessiva. Meu maior desafio era eu mesma, sendo a insone convicta que sou. Mas desde que elas nasceram, sinto que consigo alcançar o famoso apagão com menos sofrimento, sem a ajuda de um mix de remédios e taças de vinho já aberto da geladeira. Devo a realização desse sonho à Cristina Pereira, sem dúvida.
Natércia Pontes é autora de “Copacabana dreams” (Cosac Naify, 2012), pelo qual foi finalista do Prêmio Jabuti, e de “Os Tais Caquinhos”, romance que será publicado pela Companhia das Letras