Crianças e autoimagem
Como evitar que as crianças herdem ou desenvolvam inseguranças em relação ao corpo e a imagem? A psicanalista Joana de Vilhena Novaes, especialista no tema, falou a Gama
As chamadas doenças da beleza são hoje questão de saúde pública e afetam cada vez mais crianças. Um dos motivos pelos quais a rejeição ao próprio corpo acontece mais cedo é o contato também precoce, especialmente por meio das redes sociais e seus influencers, com uma mentalidade que associa prestígio e sucesso à magreza e à juventude.
O que os pais podem fazer a respeito? Entre outras coisas, rever neuras que eles mesmos podem estar transmitindo aos filhos e estimular novos valores na relação com o corpo. Nos Estados Unidos, pesquisadores coletaram dados de 581 pais de crianças entre 9 e 15 anos sobre os diferentes tipos de “fat talk” (papo de gordura, em tradução livre) que tinham com seus filhos.
O estudo, publicado em 2018, mostrou que 76% dos pais falavam mal de seus próprios corpos na frente dos mais novos e 43% apontavam questões nos corpos de seus filhos, como o ganho de peso ou a flacidez dos braços. Esse último grupo de pais, segundo a pesquisa, era o mais sujeito a ter crianças comendo compulsivamente, escondidas ou propensas a desenvolver outros comportamentos anormais com relação à alimentação.
Gama conversou sobre o tema com a psicanalista carioca Joana de Vilhena Novaes. Especialista em transtornos alimentares, ela publicou, entre outros, “Com que Corpo eu Vou?” (Pallas, 2010) e “O que Pode um Corpo?” (Appris, 2019).
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G |Na sua experiência no consultório, o que você tem percebido na relação das crianças com a percepção de beleza e do próprio corpo?
Joana de Vilhena Novaes |Cada vez observamos mais os distúrbios da alimentação em crianças mais novas. Falo de crianças com quatro, cinco anos que já mostram um quadro de restrição alimentar muito grande. Elas estão cada vez mais expostas, pelas redes e pela mídia, à difusão do que são belos corpos. Isso acontece ainda que a criança tenha um uso controlado da internet, sob supervisão dos pais. Não dá para garantir que elas estejam imunes a propagandas e à disseminação de padrões estéticos. Na escola é a mesma coisa. Outra razão é a mimetização das normas, padrões e valores dos pais, que estão imersos nessa sociedade onde a gente sabe que imagem é sinônimo e passaporte para o sucesso e a felicidade. Mesmo sem se dar conta, acabam reproduzindo isso para os filhos. Aí, quando chegam ao consultório, os pais, sobretudo as mães — porque devemos lembrar que a alimentação é algo social, cultural e historicamente atribuído à mulher — estão absolutamente estarrecidas porque os filhos vão, por exemplo, às festinhas e não comem brigadeiro, não querem tomar refrigerante. Sem se dar conta de que eles mesmos têm essa dieta super restritiva, e que a criança está reproduzindo esse comportamento.
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G | Como a pressão dos pais sobre a imagem dos filhos pode afetar o jeito como eles se veem?
JVN |Uma coisa muito comum no consultório é a mãe que vem preocupada com a alimentação da filha, mas ela mesma não come glúten, não come lactose, tem uma superpreocupação em perder 3 kg. E não se dá conta de como é que a criança está absorvendo aquilo. Os pais são modelos identificatórios para as crianças. Às vezes isso acontece de uma maneira muito dissimulada. Se a mãe coloca uma menina para fazer balé, por exemplo, e não está suficientemente sensibilizada e atenta para o fato de que, de repente, ela não tem um tipo físico que favoreça. Então começa a sofrer pressão ou, de uma hora para outra, a apresentar um comportamento alimentar muito restritivo.
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G |E como perceber e tentar evitar essa pressão?
JVN |Pela via da prevenção e da educação, criando espaços de pensamento crítico e reflexão. Alertando, desnaturalizando aquilo que as pessoas acham que é assim mesmo e não tem nada demais. Tem sim: é a reprodução de uma mentalidade e de um momento histórico. Também é importante falar sobre quais as instituições que podem e devem abrir e fomentar esses espaços de reflexão crítica. A escola certamente é um deles, a mídia também tem um papel preponderante. Além de campanhas no âmbito da saúde pública para alertar pessoas próximas às crianças e aos jovens que exercem alguma influência sobre eles.
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G |Como fazer para não transmitir as próprias inseguranças para as crianças?
JVN |Precisa haver uma conscientização dos pais para avaliar a própria relação com a imagem corporal para, se for o caso, buscar ajuda. E acho que a gente tem que traçar uma distinção entre a patologia e o desconforto. Existe uma diferença entre não gostar do próprio corpo e ter com ele uma relação absolutamente persecutória e odiosa. Se houver uma doença ali, é uma relação tão odiosa que certamente vai espirrar em quem está no entorno. Outra coisa é ter o cuidado de não obrigar uma criança a ter uma dieta restritiva antes da adolescência. Se você não quer que o seu filho desenvolva um transtorno alimentar, a primeira coisa que tem que fazer é oferecer uma alimentação balanceada e a prática de exercícios. Aí você está garantindo uma criança saudável; psiquicamente, inclusive.
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G |Você acha que não falar da própria dieta ou de insatisfações com o corpo perto de crianças é uma estratégia eficaz?
JVN |Tudo é uma questão de gradação. Você vai criar também uma relação muito pouco autêntica e espontânea com seu filho se não puder falar sobre nenhuma insatisfação que tenha, também não é natural. Mas se mostrar para o seu filho como uma pessoa que está envolvida de uma maneira tão rígida com a alimentação que não aceita sair da dieta nem em eventos sociais, nem em festividades, certamente é um comportamento patológico que vai sinalizar para essa criança que ela também deve reproduzir isso. O que os pais precisam prestar atenção é: o que você deixa entrar ou não na sua casa? Tendo bom senso de dizer para a criança o que é comida de todo dia, o que é só no final de semana, que tem situações em que é aceitável a gente comer algo específico, em outras não. Se você não tem isso nunca, está sinalizando para a criança uma relação muito rígida que, para ela, vai ser a norma.
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G | Você acha que as redes sociais agravaram questões relacionadas à autoimagem e alimentação?
JVN |A redes sociais banalizaram — e democratizaram também, num outro aspecto — uma série de saberes sobre o corpo. Mas também tem espaços muito legais de resistência e acolhimento dos corpos na internet, além de ser um espaço muito rico para os pais de troca e de compartilhamento e uma forma de desenvolver o pensamento crítico das crianças. Como tudo, você pode fazer bom ou mau uso. As redes sociais se organizam por meio de afinidades ideológicas e, não nos enganemos, o corpo é uma questão política e ideológica. Não é algo só do foro íntimo e do que eu considero meu bem-estar: a aparência tem uma função social de incluir e excluir socialmente as pessoas.
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G |Como deve ser a conversa com crianças sobre questões relacionadas à alimentação?
JVN |Alimentação está diretamente ligada a prazer: diz 10% de fome e 90% de afeto. Minha primeira dica é não usar comida como barganha. Alimento não pode ser associado a prêmio ou castigo. Outra coisa é você, desde muito cedo, introduzir o esporte que, para a criança, é a forma saudável de perder peso.
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G | E com relação a corpo e autoimagem?
JVN |Em casa você precisa desenvolver ou fomentar um discurso que não esteja ancorado no valor ligado à aparência. A gente faz isso às vezes sem querer: “Nossa, você emagreceu, como está linda”, ou seja, o valor está só ancorado na aparência, isso é um cuidado que a gente tem que ter — das qualidades da criança e dos pais não estarem reduzidas à aparência. Enquanto a gente fizer terrorismo alimentar não vai conseguir que as pessoas se alimentem melhor e adoeçam menos. É uma relação diretamente proporcional. Isso não faz ninguém ser mais saudável. Pelo contrário, as pessoas só vem engordando mais e desenvolvendo transtornos de ansiedade e adições relacionadas a comida.
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G |E o que é terrorismo alimentar?
JVN |Você dizer que comer é do mal e associar comida e aparência estética a adjetivos depreciativos. Ou, por exemplo, dizer que é um crime, um pecado comer carboidrato depois das seis da tarde. De tanto a gente associar magreza a sucesso e criminalizar a gordura, dizer que as pessoas só são assim porque elas querem, vai conseguir que elas cada vez mais se sintam infelizes em relação aos próprios corpos.
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G |Como você vê a evolução dos debates sobre corpo e imagem em um futuro próximo?
JVN |O corpo é uma expressão dos tempos e do caldo cultural em que ele está inserido. Com este novo cenário traumático, de privação, catástrofe e de confronto cotidiano com a morte — onde nós nos voltamos radicalmente para a sobrevivência — há mudança na forma como a gente percebe, lida, trata e usa o corpo. Há uma outra ética, não de estetização da vida, e sim uma dimensão de solidariedade e de cuidado, empatia, escuta compassiva. É um outro mapa de navegação, e claro que isso espirra no corpo. Porque o corpo que agora é importante éo aquele que nos mantêm vivos. Junto com isso vem a questão da solidariedade e de uma percepção mais generosa e tolerante de nós e dos outros. Brinco com os meus alunos que a gente está atravessando um novo portal, um novo paradigma que se estabelece, que faz repensar a forma como a gente vive, interpreta e lida com os nossos corpos e com os dos outros.