Quem quer ser um personagem de anime? — Gama Revista

Cultura

Quem quer ser um personagem de anime?

Leonardo Neiva / Unsplash

Sucesso no Japão e EUA, youtubers que falam por meio de personagens animados, conhecidos como VTubers, vêm ganhando adeptos no Brasil

Leonardo Neiva 12 de Maio de 2021

Cabelos ruivos, óculos de aros circulares, olhos azuis. A jaqueta, decorada com um céu de constelações, não protege a barriga à mostra. Apesar de não parecer, a presilha em forma de ET nos cabelos e as orelhas longas e pontudas, com grandes pompons brancos, têm sim uma explicação. Mashiron veio da Lua. Mais especificamente, do lado oculto do astro, onde vive com uma tribo de coelhos. Devido ao breu total, por ali a conta de luz pesa no bolso. Aliás, o problema é tão sério que acabou motivando Mashiron a vir à Terra, onde há luz em abundância — mas, ainda assim, o valor da conta continua salgado.

Semelhante a um anime, o desenho descrito acima esconde a jovem de 23 anos enquanto fala com Gama por videoconferência. A verdadeira Mashiron — que prefere não ter seu nome verdadeiro revelado — mora com o irmão no interior de São Paulo. Ela se considera tímida, gosta de animações japonesas e de desenhar. Perdeu a mãe quando tinha 12 anos. O pai morreu no início de 2019. A irmã, casada, mora longe. E o irmão, dois anos mais novo, tem uma deficiência que o impede de falar e andar.

A Vtuber Moshiron, uma das pioneiras do modelo no Brasil, apresenta uma live em seu canal no Twitch

Desde que ficou responsável por cuidar dele, não pode sair para estudar ou trabalhar, e o auxílio doença que recebe, no valor de um salário mínimo, passa longe de ser suficiente para cobrir as despesas. “Sempre fui uma pessoa que se destacou muito na escola, só que não tive oportunidade. Cheguei a passar em sétimo lugar no vestibular para designer gráfica, mas não pude ir. Não tinha muito o que fazer.”

Foi então que, no começo de 2020, pensando em complementar a renda, decidiu unir suas habilidades para criar e desenhar personagens a uma paixão recente: os VTubers. A prática, já difundida pelo mundo, com uma multidão de adeptos principalmente no Japão e Estados Unidos, não é muito diferente do que já fazem os youtubers. Basta trocar os seres de carne e osso por personagens, semelhantes a animes, que, com a ajuda de programas específicos para isso, reproduzem os movimentos de quem está por trás das câmeras. As possibilidades são muitas. Há VTubers que comentam jogos de videogame, conversam com seus seguidores, fazem entrevistas e até mesmo cantam karaokê.

Mashiron começou com um visual 3D e depois, conforme aprendeu a mexer melhor no programa, evoluiu para um 2D, que, segundo ela, dá maior liberdade artística. Sempre mantendo a essência. Ou seja, ficam as características físicas, mas mudam os looks e estilos.

Nem todo VTuber precisa de uma história de origem, mas ajuda a dar algum estofo à personagem. Para criar a sua, Mashiron baseou-se em antigas lendas japonesas e chinesas. Desenvolveu também um pequeno polvo alado e cor-de-rosa que está sempre ao seu lado. Embora pareça fofo e inofensivo, Takoshi, como é chamado, é na verdade a cabeça pensante por trás da invasão à Terra e pertence à raça do Cthulhu — para quem não sabe, uma entidade cósmica lendária criada pelo escritor H.P. Lovecraft.

“Quem entra na live tem que declarar lealdade a ele ou a dizimação será iminente”, conta Mashiron. E dá risada: “Achei que seria legal. Mascotes estão em alta hoje em dia.”

Os pioneiros

Se os VTubers hoje podem ser considerados um universo à parte que, assim como o nosso, vem se expandindo constantemente, seu Big Bang tem nome, formato e até sobrenome. De lacinho rosa na cabeça, cabelos castanhos e uniforme colegial, Kizuna A.I. se apresentou no YouTube em 2016 como uma inteligência artificial que queria entender o comportamento humano. A partir de seu sucesso — seu canal no YouTube hoje tem quase três milhões de inscritos —, outras pessoas começaram a se aventurar a fazer vídeos por trás de personagens animados.

A Vtuber Kizuna A.I. é considerada precursora da tendência que virou febre no Japão

Já no ano seguinte, a empresa japonesa Hololive deu início ao que pode ser considerada uma agência de VTubers e que hoje é a principal instituição do gênero no mundo. Embora o foco geral sejam mulheres, há também perfis masculinos com bastante engajamento. Logo, fãs dedicados começaram a traduzir para outras línguas os vídeos de algumas das personalidades mais conhecidas, o que fez com que o fenômeno ganhasse o mundo. Hoje, a Hololive tem uma filial inclusive nos EUA, onde agencia um elenco crescente de estrelas virtuais.

Alguns canais brasileiros de sucesso também já se dedicam a legendar vídeos estrangeiros para o português, com a intenção de popularizar o fenômeno por aqui. Embora não tenha alcançado as mesmas proporções que em alguns países lá fora, há um elenco crescente de estrelas VTubers em solo nacional. Entre elas, youtubers que viram no formato um jeito interessante de fazer conteúdo e até jovens que decidiram criar conteúdo em grupo, na tentativa de reproduzir o que já fazem algumas agências no exterior.

Topa uma entrevista?

Atrás de uma bancada típica de talk show — só ficou faltando a tradicional xícara de café — e com muitos prédios reproduzidos ao fundo, uma jovem de olhos grandes e cabelos azuis com mechas laranja introduz, numa voz masculina, o convidado da vez. Surge então, no sofá ao lado, uma celebridade virtual brasileira, que fala sobre sua rotina, a personagem e como é ser VTuber no Brasil. O projeto, que vem acontecendo no YouTube há mais de três meses, é criação do VTuber Weeb na Web, que hoje conta com 52 mil inscritos na rede.

Em um cenário de talk show, a Weeb na Web conversa com VTubers brasileiros

Por trás da bonequinha simpática, que atende pelo nome de Ronaldo, está o estudante de marketing de Sorocaba (SP) Bruno Oliveira, 19 — que não tem tanto problema em revelar o nome, pois antes já era reconhecido como youtuber. “Criei um modelo feminino porque achei que seria engraçado a pessoa entrar numa live de uma garotinha e ela estar falando com voz grossa. Como era uma sátira, pensei num nome besta. Foi em homenagem ao Ronaldo Fenômeno.”

No começo, como ele conta, o talk show foi uma forma de se sentir incluído nesse universo. “Gostei muito porque me deu um pretexto para conhecer novas pessoas.” Além de não precisar puxar um assunto para fazer amizade — basta chegar e perguntar se topa uma entrevista —, Oliveira considera que tanto ele como o entrevistado saem ganhando. “Acaba fazendo com que liberem novos lados. Numa entrevista, você descobre muito mais sobre como a pessoa pensa e trabalha. Essa foi minha motivação. Costumo ir atrás de entender por que se tornaram VTubers, quais foram as influências, as coisas que gostam de fazer e o que mais incomoda durante as lives.”

Embora possa parecer divertida, a rotina de youtuber e VTuber não é fácil. O estudante de marketing conta que recentemente precisou pausar a produção de conteúdo devido a um quadro de burnout. “Hoje gasto pelo menos 2 horas por dia com lives e levo 8 horas para editar um vídeo, às vezes para receber só R$ 20 no YouTube. Boa parte do meu foco é para criar conteúdo. Infelizmente você fica o tempo todo pensando no que fez de errado e em como melhorar.” Segundo relatos de quem atua no ramo, o Twitch tem sido uma ferramente muito mais rentável do que o YouTube para a comunidade VTuber brasileira. Daqui para frente, buscando evitar que o problema se repita, Oliveira pretende criar apenas conteúdos que o agradem, sem pensar só em números.

Agenciando estrelas

Desde janeiro, a estudante Morphilus vem fazendo lives regularmente na pele de sua personagem de cabelos vermelhos e chifres, vagamente baseada numa lenda da cultura canadense. Ela não pensava em ser VTuber até que participou de uma seletiva organizada pela agência brasileira aLive, em outubro de 2020. “Me inscrevi inicialmente para ser animadora das modelos em desenho, mas tive uma conversa com o CEO da empresa e acabei percebendo que tinha interesse em ser VTuber”, diz a jovem, na mesma voz doce que usa durante seus vídeos.

Morphilus é uma das VTubers integrantes da agência nacional aLive

Ao lado de outras cinco VTubers, Morphilus integra a primeira geração da aLive. Baseada em um modelo de agência de talentos que já funciona lá fora, cujo grande expoente é a Hololive, a empresa selecionou artistas para trabalhar desde o design das personagens até dar voz e uma personalidade própria a elas. A ideia era unir perfis diferentes, que oferecessem conteúdos diversificados. Embora cada uma produza esse conteúdo separadamente, há também eventos de crossover esporádicos, e as estrelas da agência costumam interagir entre si com frequência semanal.

Para Océane Korin, outra das VTubers ativas no projeto, o “jeitinho brasileiro” da modalidade é diferente do que tem sido feito em países como Japão e EUA. “O público prefere conhecer melhor quem a gente é de verdade, mais do que só ver uma pessoa interpretando uma personagem inventada”, diz a jovem, que antes trabalhava com design de jogos.

Sua personagem, com temática do oceano, reflete a paixão pela arte japonesa, em especial a famosa xilogravura “A Grande Onda de Karagawa”, do mestre Hokusai. Há cerca de um mês, no entanto, Océane não vem fazendo suas lives desenhando ou comentando jogos de videogame porque foi recentemente banida da plataforma Twitch. “Tinha um quadro fixo no canal em que fazia críticas de mangás de conteúdo adulto. Não mostrava nenhuma imagem, só comentava, mas acho que alguém não gostou.”

Baile de máscaras

A VTuber Marcelinha Chan, 19, conta que esse universo acaba tendo ainda mais apelo para as mulheres especificamente porque permite que elas não mostrem o rosto. “Até porque ser mulher no Twitch é o mesmo que chamar gente escrota”, afirma. A desenhista, que também diz ser muito brava, hoje mantém uma política de tolerância zero com comentários e piadas degradantes. “Não tolero desaforo na live.”

A desenhista Marcela até já mostrou o rosto em lives, mas se sente mais livre ao falar como sua personagem

A prática acaba entrando também numa discussão que hoje está centrada na figura das Lolis. Embora isso não se aplique necessariamente às personagens criadas por VTubers, tratam-se de crianças ou adolescentes em animação que têm imagens sexualizadas e que podem acabar fazendo apologia ou até atraindo pedófilos. “É importante lembrar que comunidades são feitas por pessoas, pessoas fazem coisas e existem pessoas boas e ruins em todo lugar”, justifica Mashiron. “Então não se prendam tanto a isso, galera.”

Estar por trás de uma personagem, como contam diferentes entrevistados, também ajuda a desinibir. Muitas vezes, a figurinha animada serve como uma máscara, que a pessoa pode usar tanto para criar uma personalidade diferente quanto para finalmente ser ela mesma.

“Passei minha vida inteira sofrendo bullying pelo meu jeito, pelo tamanho do meu nariz, pela minha cara de brava. Isso foi me deixando muito introspectiva”, conta a intérprete de Marcelinha, que tem feito lives jogando Resident Evil em meio aos estudos para o vestibular de medicina, hoje um dos seus maiores sonhos. “Quando abro uma live mostrando a cara, fico bem mais quieta, não faço piada. Quando não mostro, consigo falar, ser engraçada, me divertir mais. É pela minha aparência mesmo, traumas do passado…”

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