Mãe de suposto bandido se apresenta como “mamãe” para o filho, em público, desafiando a farsa dos direitos humanos — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Mãe de suposto bandido se apresenta como “mamãe” para o filho, em público, desafiando a farsa dos direitos humanos

A mãe certamente intui, ou conhece o tratamento que o filho vai receber no inferno do cárcere

23 de Fevereiro de 2024

“Kaique, mamãe tá aqui. Você não tá sozinho não” – o grito extraordinário soou na noite de 15 de fevereiro último, a curta distância, do meio de uma pequena aglomeração na entrada da delegacia aonde o filho chegava para cumprir prisão em Santos (SP), acusado de ter matado ali o policial militar Samuel Wesley Cosmo, em 2 de fevereiro.

Kaique Coutinho do Nascimento tinha sido capturado em Uberlândia (MG) e então levado para Santos (SP). Os dados são esses. E o enredo seguia o padrão nacional: rapaz de 21 anos, negro, escoltado por policiais ostentando armas pesadas, servia de protagonista à espetacularização da captura, arranjada pela autoridade de segurança pública do estado de São Paulo e reforçada pela cobertura incriminatória que a mídia jornalística faz de casos desse tipo.

Narrativa sem novidades: jovem negro e pobre, acusado de assassinato de policial branco durante operação de forças policiais numa periferia qualquer do Brasil. Somente a palavra “mamãe” destoava, cortando como lâmina a cena já brutal.

“Mamãe”, na voz embargada da mulher, não evocava sentimentalismo nenhum, pelo contrário, era um misto de dor e ironia frente à exibição daquele aparato policial de guerra. Ou seria um corajoso pedido de socorro: a mãe certamente intui, ou conhece o tratamento que o filho vai receber no inferno do cárcere.

A mãe sabe da farsa dos direitos humanos no sistema prisional brasileiro e nos bairros miseráveis onde tentou criar o filho

A mãe sabe da farsa dos direitos humanos no sistema prisional brasileiro e nos bairros miseráveis onde tentou criar o filho: tortura, desumanização, cooptação, morte; invasão arbitrária de residências, humilhação, ameaça, eliminação de vidas.

O senso comum, da sociedade quieta e calada que autoriza todo tipo de barbárie contra os marginalizados sociais, vibra com a ideologia da vingança, da polícia que extermina o “inimigo”. A sociedade dá a isso o nome de “justiça” (pela morte do policial, apenas). Mas justiça, como aponta o antropólogo e estudioso de segurança pública Luiz Eduardo Soares, é sinônimo de equidade, ou deveria ser. Uma das formas mais repulsivas de desigualdade social, diz ele, está exatamente no fato escandaloso de somente alguns terem acesso ao sistema de justiça.

Os dados são estes: a periferia, no caso do suposto crime de Kaique, é o bairro Rádio Clube, na zona noroeste da cidade de Santos, onde o policial foi morto, e que abriga parte da maior favela de palafitas do Brasil. Este o tamanho da desigualdade: a periclitância da palafita, ausência de serviços públicos, abandono, desemprego, fome, crime.

Foi por ali, naquele contexto de miséria, que as forças policiais de São Paulo, alegando legítima defesa em confrontos, mataram 54 civis em menos de dois meses na Baixada Santista (31 somente neste fevereiro), em investidas letais de vingança contra a morte de Cosmo e outro PM.

É por ali, como também afirma Soares, por esses territórios mais pobres, mais vulneráveis, nas vilas e favelas, “que a presença policial vai à caça de seus presos prediletos: os presos possíveis – os presos que não por acaso são negros, pobres e jovens, que estão entupindo as penitenciárias e sendo induzidos a buscar vínculo com organizações criminosas”.

“Mamãe”, o substantivo feminino, a onomatopeia infantil, arriscou lançar-se no ar opressivo daquele cenário de brutos como um carinho incompatível com o momento, como companhia surpreendente ao filho sozinho.

Houvesse cumprimento de ética jornalística, o rapaz não teria sido exposto em vídeo da TV Tribuna, afiliada da Rede Globo na Baixada Santista, vídeo com aparência de notícia, mas que, na verdade, vinha apenas dar legitimidade ao espetáculo imoral montado pela autoridade policial de orientação fascista, sob comando do direitista e tecnoburocrata asséptico Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo.

O código de ética do jornalismo (isso existe!) recomenda “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão; defender os princípios constitucionais e legais, base do estado democrático de direito; defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias. O jornalista não pode: expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação (…).

Que nada! O vídeo exibido no portal G1, da mesma Globo, se encerrava com a sugestão revoltante: “Compartilhe nas redes sociais e apps de mensagens”. Ou seja, explorava-se a imagem do jovem em seu uniforme de presidiário como uma marca boa para criar engajamento, gerar impulsos, cliques nas mídias sociais da corporação midiática sem caráter.

Sobre o número de execuções nas ações da PM paulista, o ouvidor das polícias de São Paulo, Claudio Aparecido da Silva, declarou recentemente que a operação no litoral é a mais letal da história do estado. O histórico é este: execuções que se repetem barbaramente, à luz do dia, diante da atuação inócua de comissões de direitos humanos ou instituições de justiça escaladas para investigar centenas de casos semelhantes.

‘Mamãe’, na voz embargada da mulher, era um misto de dor e ironia frente à exibição daquele aparato policial de guerra

Em 2022, uma associação de mães que perderam filhos para a violência letal da polícia de São Paulo – “Movimento Mães em Luto Da Zona Leste” – sistematizou em livro a experiência trágica pela qual passaram e as consequências disso em suas vidas. No livro “Mães em Luta” (editora Fábrica de Cânones) sete mães dão depoimentos de inconformismo e revolta, por meio de relatos de suas histórias, cartas a autoridades judiciais ou dirigidas aos policiais que mataram seus filhos.

Não falta nos textos reconhecimento dos eventuais “erros”, como elas dizem, ou crimes cometidos pelos jovens, o que há é indignação e protesto contra a execução pura e simples de seus filhos.

Numa carta intitulada “A você que matou meu filho”, dirigida a um policial militar não identificado no texto, uma das mães diz: “Por que não deu a oportunidade de meu filho pagar pelo seu erro? (…) Por que você decidiu ser o delegado, o promotor, o juiz, o jurado e decidiu dar a sentença de morte para meu filho? Como você consegue dar três tiros em uma pessoa toda encolhida no chão? Encolhida no chão e já com a mão erguida para o alto, se entregando (…).”

«“Mamãe”, esse balbucio precoce, esse apelo tão primeiro-primitivo, atuou como superlativo que fosse ecoar dentro daquela delegacia sinistra que engolia o filho desamparado. Mas “mamãe”, palavra ao mesmo tempo simples e complexa, poderia ser também um singular diminutivo, formado por derivação (“de mãe” para “mamãe”), único diminutivo que teria como propriedade aumentar de tamanho o colo das mães, engrandecer a coragem delas. Ou pode ainda ser simplesmente um verbo, sempre na forma infinitiva e no tempo infinito – a ser conjugado conforme a ocasião, a época e o tipo de chamado, seja de que natureza este for, de saudade, por virtude ou por delito de filhos.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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