Leandro Sarmatz - Sambando na lama de sapato branco — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Sambando na lama de sapato branco

O sapato branco é uma declaração: as coisas são sérias, o mundo anda feio e triste, mas ninguém precisa se vestir de coveiro de filme de Tim Burton

02 de Agosto de 2021

Artefato de malandro da época do Cassino da Urca ou de playboy ianque nas férias em Capri, o sapato branco – e seu parente ainda mais informal, o tênis branco – já deixou de ser exclusivo dos verões suspeitos ou do dolce far niente. Para mim, pelo menos. Com mais coragem estética (ou menos simancol, vá saber) depois dos 40, quase não porto outra cor nos pés. Tento especular as razões disso. Uma delas, a mais óbvia, tem a ver com o conjunto todo: nada fica melhor com camisa havaiana e calça caqui. Isso, num nível superficial. Mas também o uso com terno em ocasiões cerimoniais, como as botas chelsea brancas com que caminhei numa premiação literária antes da pandemia. Percebo aqui e ali umas caras de reproche. Tento não ligar. Minha bravura fica por aqui.

Como tantas coisas que usamos, o sapato branco é uma declaração. Veja bem, as coisas são sérias, o mundo anda feio e triste, mas ninguém precisa se vestir de coveiro de filme de Tim Burton. Podemos viver na base da leveza e de certa nonchalance. Às vezes ele está dizendo justamente isso. Noutras, serve como uma nota sutil de inconformismo, por mais leviano que possa parecer.

O certo é que poucas coisas no ato de se vestir parecem tão prazerosas que meter um sapato alvo nos pés. Adoro a palavra que os falantes de língua inglesa usam para definir aquele sapato branco novinho e sem marcas: “pristine”. Algo como impecável e sem marcas. Acho, contudo, que o sapato branco com marcas e manchas é algo mais digno e verdadeiro. Significa que foram usados, que zanzaram por aí, foram vistos e – eventualmente – até desagradaram alguém.

Poucas coisas no ato de se vestir parecem tão prazerosas que meter um sapato alvo nos pés

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Hoje com 74 anos, Stan Smith foi um tenista norte-americano número 1 do ranking mundial nos 1970. Magro, ágil, com um bigodinho meio aliciante, Smith teve um tênis batizado com seu nome pela Adidas. É o epítome do tênis branco e um dos calçados mais vendidos da história. É também um fenômeno cultural como poucos. Um livro recente, “Some People Think I’m a Shoe” (Rizzoli), tenta dar conta dessa empreitada. Criado em 1973, no auge da carreira do atleta, o tênis minimalista há muito que saiu das quadras. De John Lennon a David Bowie, passando por figuras das artes e da moda, o Stan Smith consolidou-se como um ambíguo “quadro branco” para dar destaque a outras partes do corpo. No mais das vezes, ele chama quase toda a atenção para si.

O mais fascinante na história do Stan Smith é que ele, em mais de 40 anos entre períodos em que esteve meio esquecido (pela própria Adidas) e revivals, preparou o terreno para que o calçado branco fosse mais aceito na vida real – e não apenas nas quadras de esporte ou nas férias em balneários. Para muita gente (como eu), o Stan Smith é como a maconha na cabeça daquela sua tia sem noção: é a “porta de entrada” para drogas mais pesadas. No caso, uma variedade quase infinita de brogues, oxfords, botas e outros sapatos brancos.

Como os Repetto que o astro pop francês Serge Gainsbourg ajudou a popularizar. Numa de suas melhores biografias, assinada por Gilles Verlant, lê-se que um dia Jane Birkin trouxe de uma tradicional loja de sapatilhas de balé um par de oxfords de couro de cabra, levíssimos, que davam a sensação de “pés descalços”. Paixão à primeira pisada. Gainsbourg passou a usar apenas o “oxford Zizi” da marca. Gastava dois pares por ano, pois são frágeis e finos, sem forro e com um solado de couro traseiro. Élégance.

Para muita gente (como eu), o Stan Smith é como a maconha na cabeça daquela sua tia sem noção: é a “porta de entrada” para drogas mais pesadas

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Depois de um ano escrevendo textos por vezes graves e dramáticos, indignados e até furiosos, foi um alento (ao menos para mim) adentrar no terreno – levíssimo — dos calçados brancos. Não é que as coisas estejam mais fáceis no Brasil. Não mesmo: ainda temos a cavalgadura assassina no Planalto e nossa missão de varrê-lo para o esgoto de onde nunca deveria ter saído nas próximas eleições. Porém, semana retrasada tomei a segunda dose da vacina, e aquela sensação de espada sobre a cabeça, que me acompanhava desde março do ano passado, começa a se dissipar.

O mesmo com muitos amigos e conhecidos. Óbvio que a situação ainda inspira muitos cuidados (a média de mortos por aqui permanece escandalosamente alta), mas saber que estamos protegidos, e que assim ficaremos cada vez que o braço de um semelhante recebe a picada da vacina, dá um otimismo quase inebriante. Um senso de comunidade que estávamos quase a perder.

Porém, ainda não é hora – ai de nós – de desbundar. A festa precisa esperar. A variante Delta está se espalhando pelo país (como de resto em outros lugares com uma cobertura vacinal muito mais alta que a nossa) e fazendo com que recobremos nossa atenção. Falta um tempo ainda para voltarmos aos abraços nos bares, às danças suadas, ao toque sem medo ou receio. Grande parte da nossa sociabilidade é expressa nos gestos da proximidade e do contato corporal. Isso vai voltar, e o Zoom aos poucos vai retornar para o seu papel primordial: aproximar pessoas que estão distantes na geografia. Será o fim dessa triste história. E o início de uma nova idade dos afetos.

E eu vou de sapato branco.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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