Coluna do Fernando Luna: Desigualdade da cama — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Desigualdade da cama

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre a falta e o excesso de sono no Brasil, o feriado que cai às 3 da tarde, a alegre desordem das palavras de ordem e o quebranto como comorbidade

14 de Junho de 2021

“Ninguém se sente bem às quatro da madrugada”

Wislawa Szymborska, 1957

A desigualdade do país chegou ao sono.

Hoje existem dois tipos de brasileiros: uns não conseguem dormir, outros precisam urgentemente acordar.

Estamos polarizados entre a epidemia de insônia, que chegou logo após a pandemia injetar doses extras de ansiedade em nossa rotina, e o entorpecimento bovino, que fecha os olhos pra não ver a catástrofe do pior presidente da nossa longa história de péssimos presidentes.

Se a falta de sono causa problemas pessoais, o excesso provoca danos sociais.

O primeiro grupo já tentou leite morno, chá de camomila, Rivotril e CBD antes de deitar. Nada. Baixou o Calm, cortou o café depois das cinco da tarde, virou o travesseiro, maratonou vídeos de ASMR na internet. Também nada.

Despertar de sonhos intranquilos metamorfoseado num inseto monstruoso seria uma alegria.

A medicina conhece bem os efeitos negativos dessa vigília involuntária: depressão, irritação, aumento de peso, hipertensão, diabetes, gritos de “Fora, Bozo” na madrugada e toda uma comitiva de mazelas.

(O sono dos justos virou uma contradição em si. Ou tem sono, ou é justo; as duas coisas juntas se tornaram incompatíveis no Brasil.)

O segundo grupo, dos sonâmbulos em tempo integral, chega a subir em suas motos e sair por aí berrando “mito, mito”. Num itinerário genocida, entre a Rodovia dos Bandeirantes e o Monumento às Bandeiras, celebra a versão atualizada do morticínio com quase 500 mil vítimas – faz sentido chamar o evento de “Acelera para Cristo”, afinal.

A política sabe exatamente onde isso vai parar: tensão social, escalada autoritária, 81 e-mails da “Pifaizer” ignorados, Marcelo Crivella na embaixada da África do Sul, golpismo explícito.

Aquele mal-estar de rolar na cama às “Quatro da Madrugada”, como no poema da polonesa Wislawa Szymborska, é bem conhecido. Tudo parece pelo avesso quando “o vento das estrelas extintas assobia”, e o único pensamento possível é “será-que-de-nós-nada-vai-restar”.

Antes, a manhã era capaz de espantar a ave agoureira noturna. Agora, nossa única esperança é a eleição de 2022.


“Poesia é voar fora da asa”

Manoel de Barros, 1993

Cesse tudo o que a musa antiga canta, que a “Antologia Profética” completa um ano.

Doze meses usando e, frequentemente, abusando de versos como os decassílabos de Camões, trucidados sem cerimônia logo na primeira frase de hoje. Perdão.

Mas, como escreveu outro poeta da língua portuguesa, esse preferindo passarinhos a armas e barões assinalados, uma das mais deliciosas manifestações de amor é a falta de respeito.

Um ano, por outro lado, são 52 segundas-feiras.

Se bem que a pandemia serviu ao menos pra curar a Síndrome da Segunda-Feira. Desapareceu aquele mal-estar semanal do eterno retorno à labuta e seus estresses: continuamos sem saber direito se é segunda-feira, quinta ou sábado.

Porém, ah, porém, o mal-estar passou a atravessar o calendário inteiro: todo dia é simultaneamente segunda-feira, quinta e sábado. Em compensação, às vezes um feriado cai às três da tarde e dá pra enforcar até as cinco.

Cinquenta e duas manhãs de segunda correndo atrás de poemas que, mesmo cuidadosamente aprumados num tempo e espaço mui distantes, parecem falar do aqui e agora, com seus versos desgraçadamente atuais.

Cinquenta e duas manhãs praguejando contra mim mesmo. Inventar que poesia é profecia e me condenar a caçar poemas na memória, na estante e na internet, em vez de simplesmente sentar e escrever 2.200 toques sobre o que tá acontecendo e pronto?

(E aconteceu muita coisa de lá pra cá, mas nada tão brutal quanto ver o número de mortos por coronavírus saltar de 37 mil pra 473 mil.)

Cinquenta e dois finais de manhã achando graça, apesar disso tudo e justamente pra aguentar isso tudo, em reunir na mesma coluna Brecht e Xuxa, Drummond e bunda, Rimbaud e Leblon, Shakespeare e Véio da Havan, Leminski e kundalini, Virgílio e Clubhouse, Whitman e Beyoncé, entre outros arroubos de intertextualidade e interpretações de texto desaforadas.

Desta vez, sobrou pro Manoel de Barros, que abre seu “O Livro das Ignorãças” com a anticartilha literária “Uma Didática da Invenção”, um elogio ao delírio do verbo – também conhecido como poesia.

“Onde há perigo, cresce também o que salva”

Friedrich Hölderlin, 1803

Fazia tempo que a gente não se encontrava pessoalmente. Há 462 mil mortos, pra ser exato.

Saímos de casa, afinal, mesmo sabendo que era mais seguro ficar em casa.

Mas, como nos versos de “Patmos”, do alemão Friedrich Hölderlin, “onde há perigo, cresce também o que salva”. O título do poema se refere à ilha grega onde São João teria escrito o “Apocalipse”, o que só deixa tudo mais atual.

Após algumas semanas de hesitação e análise de risco tabulada por pessoas de humanas, trocamos o panelaço na janela pela porta da rua. A insatisfação generalizada, que as pesquisas de opinião vinham apontando há meses, ganhou corpo em dezenas de milhares de brasileiros.

Foi bonita a festa, pá.

E, também, um tanto assustador reencontrar caras conhecidas num espaço público, mesmo sem conseguir reconhecer boa parte delas: tava todo mundo de máscara. De qualquer jeito, dava paúra de um corona descobrir uma brecha e virar agente infiltrado no pulmão. Minha hipocondria vai passar os próximos 14 dias fabricando sintomas. Falsos, espero.

Assim como o Black Lives Matter abriu parênteses no distanciamento social e ocupou as cidades norte-americanas, as avenidas daqui foram tomadas pela impossibilidade de continuar separando luta e luto.

Lá, o gatilho foi o assassinato de George Floyd, gritando que o racismo precisava ser combatido junto com o vírus. Aqui, em vez de um único gatilho, tivemos saraivadas de escárnio e rajadas de sandices.

Por isso, as bandeiras, faixas e cartazes protestavam contra tantas coisas diferentes. As palavras de ordem estavam mesmo desordenadas – e isso era mais uma qualidade do que um problema do 29M.

Foi uma manifestação pela democracia, pela vacina, pelo SUS, pela ciência, pelo auxílio emergencial decente, pela educação, pelo combate à discriminação racial, pelos direitos das mulheres, pelo respeito LGBTQ+ e pela proteção das terras indígenas, pra ficar só em algumas das pautas que compartilhavam um quarteirão da avenida Paulista.

Todas essas agendas, incrivelmente diversas, têm um singelo desejo em comum: “Fora, Bolsonaro”.

“A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”

Manuel Bandeira, 1930

Tem gente fazendo check up na esperança de encontrar alguma comorbidade.

Qualquer uma serve.

Bateu o desespero. Imunização devagar quase parando, casos de covidacelerando rumo à terceira onda, F5 gasto de tanto atualizar a home do site “Quando Vou Ser Vacinado?” – resposta é sempre a mesma: sei lá.

Quem dera a única coisa a fazer fosse tocar um tango argentino, como no caso do tuberculoso de “Pneumotórax”. Com febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos, o eu lírico de Manuel Bandeira seria o primeirão na fila de
vacinação do SUS.

Nem todo mundo tem essa sorte.

Nada de desânimo, porém. Levanta, sacode a poeira, procura um médico, agenda os exames e torce pelo pior.

– Encontrou alguma coisa, doutor?

Do outro lado da mesa, um mal-estar evidente no rosto compungido. O pigarro grave é pouco alvissareiro.

– Tenho uma péssima notícia.

– Pode falar, tô preparado.

– Infelizmente você está saudável. Absolutamente saudável.

– Não… é… possível… Isso tinha que acontecer logo comigo? Por que eu?

– Calma, vai ficar tudo bem.

– Esse é o problema!

– Respira. Aos poucos você se conforma em ter a vida toda pela frente.

– Não me queira mal. E essa mancha aqui na radiografia, hein, hein?

– Seus exames estão ótimos. Quer dizer, péssimos.

– Assim acabo morrendo de tão saudável. Tô lá no fim da fila, doutor. Isso mata. Já são 450 mil óbitos e agora essa variante indiana por aí. Tem como dar um jeitinho?

– Como assim?

– Um atestado médico, sabe, dizendo qualquer coisa aí… Dá mais uma olhadinha na imagem, aquilo ali não parece uma espinhela caída ou uma comichão?

– O juramento é de Hipócrates, não de hipócrita.

– Mas todo mundo tem alguma doença, basta procurar direito. Até aquele meu chapa que bate uma feijoada toda quarta e sábado e corre dez quilômetros cinco vezes por semana já vacinou. Não dá mesmo pra fazer nada?

– Seu passaporte tá em dia?

– Com o dólar alto desse jeito…

– Bom, a ciência não tem resposta pra tudo. Vou te passar o contato de uma benzedeira ponta firme. Marca uma sessão com ela pra ver o que dá.

– Quebranto é comorbidade?

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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