Leandro Sarmatz
Skate
Entretenimento para tempos precários, é indiscutível sua simplicidade: bastam alguns poucos metros quadrados para a diversão ficar completa
Nas últimas décadas, que estilo sintetizou o que há de mais vibrante na vida das cidades? Não me refiro aos grandes nomes, aqueles entronizados ao longo das temporadas habituais entre Paris e Nova York, ou aos mais dispendiosos (embora uma espécie de mercado paralelo de revenda tenha se estabelecido, jogando certas marcas à estratosfera dos milhares de reais). Falo de jaquetas de nylon com recortes em color block, de calças de cós elástico um pouco mais folgadas que o habitual, de tênis simples com sola vulcanizada. Um estilo que, a partir de uma faixa demográfica e etária, penetrou outros domínios. E, junto com o sportwear em geral, converteu-se numa das molas mestras da urbanidade.
Mesmo com toda essa influência, há algo de estranhamente elusivo na cultura do skate. Possivelmente só a enxergamos quando vemos o pacote completo: um bando de moleques dando pinotes barulhentos na calçada. Ao contrário do surfe, em que as cores e o vocabulário visual – ajudados pelo imaginário natural e geográfico – são facilmente distinguíveis como um sistema completo, o skate parece ser dotado de um viralatismo intrínseco. É citadino, mescla-se bem com a paleta cinza-asfalto, não se incomoda (pelo contrário) com o ar um tanto desmantelado de nossas sociedades pós-industriais. Provavelmente devido à sua origem quase clandestina em busca de piscinas abandonadas na Califórnia. Ou talvez seja pelo uso bastante heterodoxo (e criativo) do mobiliário urbano. Se o surfe é “Guerra e Paz”, frondosas linhas em que vida e morte parecem ser decididas a cada parágrafo com eloquência e grandeur, o skate parece estar mais para a poesia de Brecht: simplicidade, anti-heroísmo e busca pelo corriqueiro. Sua força parece brotar do chão.
É citadino, mescla-se bem com a paleta cinza-asfalto, não se incomoda com o ar desmantelado de nossas sociedades pós-industriais
Companhias como Vans, Palace e Stüssy – para citar aquelas facilmente identificáveis com a cultura do skate – ditam em larga medida a estética de capitais e periferias. Recentemente os nórdicos parecem estar na vanguarda. Distantes dos verões perpétuos da Califórnia, marcas como Soulland, Han Kjøbenhavn e Wood Wood, as três vindas do reino do bem-estar social da Dinamarca, estão ajudando a reinventar essa cultura numa operação tão inteligente quando desafiadora do ponto de vista conceitual: vindas de um subúrbio afluente da Europa, elas se apropriam a um só tempo das franjas das sociedades locais (os imigrantes africanos e das ex-repúblicas soviéticas), incorporando-as ao – na falta de melhor palavra – sistema de pensamento escandinavo, em que o artesanato, o desapego chique e a urbanidade amena ajudam a atravessar os longos e desoladores invernos. Os arroubos emocionais de Strindberg, Ibsen e Bergman devem ficar entre quatro paredes.
Tudo isso me veio à mente no início de maio, quando comprei um skate de aniversário para minha filha. Sem estarmos saindo à rua, pensei numa diversão que pudesse ser aclimatada nos estreitos corredores das áreas comuns do nosso prédio. Um entretenimento para tempos precários. Assim como uma bola qualquer, é indiscutível a simplicidade do skate: bastam alguns poucos metros quadrados para a diversão ficar completa. Enquanto ensinava a ela os primeiros passos – subir, manter-se em equilíbrio, ganhar movimento –, percebi que havia 30 anos que eu mesmo não andava de skate.
Uma escadaria não mais servia apenas para subir ou descer com passadas regulares. Dropá-la era uma prova de habilidade
Estive nas duas primeiras grandes ondas do esporte no Brasil. A primeira, no final dos anos 1970, quando aos seis anos ganhei de presente um skate da marca Bandeirantes. Era a época dos shapes fininhos e estreitos. Manobras com a mão no chão, longas – e acidentadas – descidas serpenteantes de ladeira. A construção das primeiras pistas. Eu não era de nada, claro, mas lembro que mesmo na minha cidade no sul do país o panorama se modificava. Uma escadaria não mais servia apenas para subir ou descer com passadas regulares. Dropá-la era uma prova de habilidade sobre as quadro rodinhas estridentes.
Depois, na metade dos anos 1980, a febre voltou novamente. O cenário (literalmente) era outro. Com a topografia mais desmazelada depois das sucessivas crises econômicas, os praticantes tinham vastos territórios a explorar: corrimões descascados, rampas de acesso de supermercados (segundos antes de serem enxotados pelo guardinha), bancos lascados de praça. O shape agora era mais largo e ondulante. Suas raízes no surfe já pareciam menos evidentes. Não tenho ideia se houve um apagamento voluntário (provavelmente foi apenas a evolução natural de um novo meio), mas aqueles movimentos que antes pareciam evocar o mar em pleno asfalto deram lugar a manobras autônomas, genuinamente criadas para a nova plataforma e que, longe das pistas especiais, converteram o skate na atividade esportiva mais citadina de que se tem registro.
“Mesmo Sem Dinheiro Comprei um Esqueite Novo” (Companhia das Letras, 2014) é o título de um belíssimo livro de poemas de Paulo Scott. Scott, como Roberto Bolaño, é o mais narrativo de nossos poetas. Sua verve costuma enveredar para dicções e motivos bastante distintos da poesia contemporânea brasileira. Guarda uma mistura de estranheza e familiaridade. A música interior dos versos já não assovia as melodias habituais. Os temas são variados, e o poeta parece demonstrar especial predileção por questões quase comezinhas. Estão lá o amor e o desamor, claro, e também a percepção do indivíduo no espaço e no tempo. Mas também a busca de novos territórios poéticos, miudezas sensoriais, meditações meio desafinadas que costumam surpreender. Scott, que já foi skatista, parece ter aprendido a lição de modéstia e radicalidade das quatro rodinhas.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.