O que é uma filantropia ancestral? — Gama Revista
Conversas

O que é uma filantropia ancestral?

O diretor executivo do Fundo Baobá, Giovanni Harvey, e a líder indígena e diretora da Nia Tero Brasil, Nara Baré, abordam o lugar da ancestralidade na filantropia

Leonardo Neiva 06 de Dezembro de 2024
Fotos: divulgação

Hoje não tem como falar de adaptação climática ou preservação ambiental sem abordar também pontos ligados diretamente a essas questões, como o racismo ambiental ou a causa indígena. Se os povos indígenas são diretamente responsáveis pela proteção de boa parte das florestas brasileiras e se os efeitos diretos das mudanças climáticas, como o aumento das enchentes, afetam ainda mais as periferias das nossas cidades, deixar de tratar desses assuntos de forma mais ampla e inclusiva seria ignorar partes cruciais desse panorama.

“A gente colabora com o planeta de maneira ancestral”, apontou a ativista e coordenadora do Fundo Indígena Rutî, Josimara Baré, em diálogo sobre a relevância da ancestralidade na construção de um futuro mais justo, durante o evento Filantropando, realizado pelo Intituto Beja. O debate — que contou com a participação da professora e pesquisadora de governança digital Geci Karuri-Sebina, e foi mediado pela co-fundadora, diretora geral e publisher da Gama, Paula Miraglia — acendeu um alerta para a importância de observar o passado para criar projetos de futuro e também para a posição central que o pensamento ancestral deve ocupar dentro da própria filantropia.

Por sua vez, o diretor-executivo do Fundo Baobá, primeiro fundo exclusivo para a promoção da equidade racial no Brasil, Giovanni Harvey, afirma que a ancestralidade é indissociável da identidade de grupos como organizações quilombolas e do movimento negro. “No movimento negro, nós apresentamos a nossa formação política a partir das experiências de trabalho com os mais velhos. Então eu me apresento como alguém que atuou e militou com Januário Garcia, com Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez, conta em entrevista a Gama.

Já para a ativista por direitos humanos e ambientais Nara Baré, que também é diretora da organização pelos direitos indígenas Nia Tero no Brasil, a ancestralidade significa pertencimento a uma origem, a um lugar, a uma história, aos conhecimentos que são repassados de geração para geração. “Por isso a ancestralidade para a gente é forte. Tudo que vem acontecendo e dando certo tem uma origem”, ela reforça.

Na entrevista a seguir, as duas lideranças sociais e filantrópicas se aprofundam no papel dessa ancestralidade, central para a identidade de diferentes grupos sociais, abordando também questões como a reparação para populações historicamente oprimidas, a diversidade dentro do terceiro setor e a importância da aproximação de doadores e investidores sociais com o dia a dia de comunidades periféricas, indígenas e quilombolas.

O que significa uma filantropia ancestral? Para pensar em soluções para o presente e o futuro, é importante lançar um olhar para o passado?

Giovanni Harvey: Da filantropia como um todo eu não me sinto em condições de falar. Posso falar sobre nós, negros, não apenas na filantropia, mas nas várias frentes de atuação em termos de organizações sociais. Posso falar de forma geral das organizações quilombolas, dos grupos sociais negros e das organizações do movimento negro. Para nós, levar em consideração os elementos ancestrais que constituem a nossa identidade é indissociável, uma coisa óbvia. Não conseguimos nos enxergar como pessoas, como seres nas várias dimensões sem ser como continuidade das pessoas que vieram antes de nós. É um elemento constitutivo pedir licença e bênção aos mais velhos, levar em consideração aquilo que fizeram as pessoas que vieram antes. Isso para nós é o ponto de partida. Não começamos nada da estaca zero. Ainda que seja para fazer de forma diferente, sempre damos continuidade a algo que foi feito antes de nós.

Nara Baré: A própria inteligência artificial me traz um medo muito grande, por ser uma coisa que a gente não vê, não sabe de onde vêm os resultados. Enquanto mulher indígena dentro da filantropia, entender a ancestralidade é ver que há um pertencimento daquela origem, daquele local, daquela história, dos conhecimentos que são repassados de geração em geração. Por isso a ancestralidade para a gente é forte. Tudo que vem acontecendo e dando certo tem uma origem. Os povos indígenas remetem isso à ancestralidade, assim como os negros. Eles foram retirados da África, do local de origem, e buscam essa ancestralidade hoje. Diferente dos povos indígenas, que têm uma continuidade da sua ancestralidade. Então, são termos que trazem o pertencimento do seu território, da mesma forma como você foi retirado forçadamente dele. A filantropia deve entender essa essência, de onde você veio. Isso traz um outro significado muito forte.

Quando a gente olha para esse passado, há um debate sobre dívidas históricas e reparação a populações negras e indígenas. Como esses temas devem entrar nas organizações?

GH: Eu participei da Conferência da Diáspora Africana em Salvador três meses atrás, e nesse evento foram tratados o conceito de reparação, de não repetição, compensação e devolução de artefatos retirados do continente africano por exploradores europeus. Há visões diferentes. Alguns países africanos defendem reparação na forma do perdão de dívidas. Outros, também em compensações financeiras. No Brasil, ainda não temos um consenso sobre o que é reparação e como ela se daria aqui. Seria uma reparação feita como Branca Moreira Salles [a fundadora da Rádio Novello, casada com João Moreira Salles, atende por Branca Vianna], que assumiu que parte do seu patrimônio foi concebida a partir da exploração da mão de obra escravizada? É um debate que vai consumir bastante tempo. E temos um debate sobre ações afirmativas na área de titulação, de mercado de trabalho, que ainda hoje provoca polêmica, mas que já está pacificado do ponto de vista jurídico. Aquilo que se pintou que iria acontecer no Brasil, o fim do mundo, que os negros não iam ficar, que as notas iam ser baixas, o tempo mostrou que essa estupidez, registrada em revistas, jornais e livros, não aconteceu.

NB: Estamos vivendo questões climáticas extremas, o mundo pegando fogo, furacões, secas, animais e plantas morrendo, ou seja, a vida na Terra está se acabando. Então, qual caminho a gente quer apontar e apoiar para minimizar isso e ter menos impacto para o futuro? Eu gostaria muito de conhecer meus netos, mas não quero que os meus descendentes morem num planeta pior do que esse em que estamos, cheio de guerras, numa busca pelo consumismo e poder. Espero que a filantropia não caia na armadilha de buscar o que é mais fácil, o mais cômodo, a zona de conforto. A filantropia precisa ver que ajudar e apoiar não é fácil, requer um custo alto. Não só financeiro, mas operacional e humano, para seguir essa meta. Gosto muito de citar o Davi Kopenawa. Ele questiona: até quando os povos indígenas vão continuar segurando o céu? A filantropia precisa olhar para isso. Cientistas da natureza, dos territórios, veem que, passando de geração em geração, o cuidado com o território vale muito mais do que arrendamentos para o mercado comercial. Então, há um desafio muito grande. Eu não sei até quando a filantropia está disposta a segurar a mão de quem realmente faz esse trabalho acontecer, para o bem de todos nos territórios.

Questões sociais e raciais são indissociáveis de outros temas relevantes como o meio ambiente? As organizações precisam pensar o clima nessa intersecção com os povos indígenas, ou em questões como o racismo ambiental?

GH: Alguns anos atrás, eu dirigia uma incubadora de negócios, e incluímos na nossa emenda as preocupações com o meio ambiente. Nós apoiávamos um negócio, a Associação Pequena África, lá no Rio. O fundador, o Rubem Confete, era um dos nossos alunos. Quando chegou no capítulo de meio ambiente e a pessoa responsável começou a conversar sobre isso, o Confete disse: “Para nós, negros, não há uma existência que não seja em respeito ao meio ambiente. A profissão de fé em matriz africana se dá em harmonia com o meio ambiente. Os povos quilombolas e ribeirinhos vivem de forma sustentável no meio ambiente.” Eu não tinha essa dimensão. Com a fala dele é que eu me dei conta de que muitas vezes acabamos falando de preservação do meio ambiente para quem deveria estar nos ensinando: os indígenas, os quilombolas, os povos de comunidades tradicionais e de matriz africana, que historicamente não são agentes de devastação, de desmatamento, poluição e produção de CO2. A ancestralidade é um pouco isso.

NB: É preciso conhecer e respeitar a essência de cada povo que habita este planeta, respeitando a conexão dos povos com o território. Porque a ancestralidade traz um manejo, essa palavra que vem da origem não só indígena, mas dos povos tradicionais. A filantropia tem esse papel de ouvir e escutar — porque nem sempre quando se ouve, se escuta. Tem o papel de ver, enxergar, e principalmente de sentir, tanto com a cabeça quanto com o coração, para evitar fazer escolhas não tão boas. E, se fizer, que a gente as tenha como um aprendizado. A filantropia precisa estar nesse processo de educar quem não respeita e não conhece todas as alternativas e conhecimentos tradicionais e ancestrais dos territórios. Um processo de apresentar, de ensinar e fazer com que as ações sejam mais humanizadas. Não se fala de clima separado de direitos humanos. E nós temos leis muito boas protegendo um direito fundamental para todos, que é o direito à vida.

O trabalho com comunidades e lideranças locais, que conhecem seus territórios e populações, tende a render bons frutos. Ainda há barreiras na filantropia para colocar recursos e poder de decisão nas mãos dessas lideranças?

GH: Se existe uma filantropia cujo escopo de atuação está muito ligado ao financiamento de temas de interesse estratégico da instituição, isso é legítimo. Quando uma empresa faz investimento social no entorno das suas unidades operacionais, eu acho legítimo. Isso é investimento social privado e pode ser filantropia também. Nós fazemos filantropia para esse enfrentamento às desigualdades étnico-raciais. Então hoje o que eu acho desejável é que cada um diga explicitamente que tipo de filantropia faz, porque essas filantropias todas podem conviver. Aí fica até mais fácil para que quem faz um tipo de filantropia diferente possa inclusive se aliar. Acho que hoje nós estamos um pouco nessa vibe de um olhar o que o outro está fazendo, e não necessariamente as instituições fazerem todas a mesma coisa.

NB: Estar engajada à frente do movimento indígena e também aqui do lado da filantropia para mim é bem interessante. Em alguns espaços de tomada de decisões, quem deveria estar ali eram justamente as comunidades. São as pessoas que precisam ter a vez de falar, não somos nós. O papel da filantropia não é falar. A gente não pode cair no erro de construir algo sem a participação efetiva das pessoas com quem a gente quer trabalhar. Somos apenas a ponte para que as comunidades, o território que a gente acredita que precisa de um apoio esteja ali. A atenção para isso é a construção coletiva e não só de um lado, senão não dá certo. O próprio processo de apoiar é conhecer, mas também estar aberto ao diferente, à desigualdade. Hoje o movimento indígena fala: nada sobre nós sem nós. Precisamos fazer essa reflexão. A filantropia tem avançado, principalmente aqui no Brasil.

A filantropia brasileira ainda é elitizada e liderada principalmente por pessoas brancas? O que é necessário para que o terceiro setor seja mais diverso e inclusivo?

GH: A filantropia brasileira é predominantemente branca, constituída por patrimônio legado de famílias e empresas, e pelo investimento social privado. Cada qual funcionando dentro de uma lógica, todos com legitimidade para atuar. O Baobá é a primeira e maior, se não mais a única, experiência de filantropia por pessoas negras, que fazem a gestão de um fundo patrimonial de R$ 130 milhões. É fazer filantropia por quem discursa sobre relações raciais em primeira pessoa. Causa espécie que nós tenhamos conselhos que tomam decisões de investimento em temas raciais constituídos por pessoas brancas. Como alguém que iniciou sua militância política com o movimento negro há 43 anos, e com o movimento social há 46, me permito dizer que, se fôssemos defender a validação de pessoas brancas sobre o que precisa ser feito, não teríamos chegado até aqui. Falando em primeira pessoa, eu, Giovanni Harvey, vejo com profunda desconfiança pessoas brancas escolhendo quais organizações negras devem receber apoioe quais pessoas negras devem ser potencializadas. Não estou colocando em dúvida a honestidade e a boa vontade das pessoas, mas acho muito difícil que pessoas brancas tenham condições de definir o que é prioridade para o movimento social negro.

NB: Eu nem colocaria essas palavras. Quem é elitizado? Eu não sei. Muitas vezes olham os povos indígenas como se não tivessem riqueza, mas eles são super ricos em seu território. Pelo menos para mim, essas palavras não funcionam. Mas a filantropia precisa ser aberta e inclusiva para todos, independente da sua cor de pele, orientação sexual, religião ou se você fala ou não português. Não deve haver barreiras para ninguém, para que a filantropia seja um instrumento também de formação, porque ninguém nasce sabendo. É um elemento de preparo para que outras pessoas dêem continuidade a essa filantropia limpa, igualitária e de fato inclusiva.

O que fazer para aproximar doadores, investidores sociais e organizações para conviver com a realidade e as dores dessas comunidades?

GH: O Baobá possivelmente em 2025 vai fazer uma primeira experiência de convidar parceiros para uma visita de campo. E acho que estamos falando de pessoas que não conviveram, no processo de formação da sua identidade como crianças e adolescentes, com outras pessoas negras. Eu vejo um esforço de pessoas que lideram as organizações de buscar um pouco de diversidade nos seus colegiados. E isso é saudável. Só tem que tomar cuidado para isso não ser uma tokenização, ter a sua “pessoa negra de estimação” sem nenhum nível de incidência, para dizer que tem diversidade. Por outro lado, é preciso reconhecer que o dinheiro está com os brancos, e é legítimo que decidam a partir dos seus pontos de vista o que é prioridade. Eu não posso cobrar isso de alguém que nunca conviveu com uma pessoa negra em condições de equivalência social. Eu não sei a resposta para essa pergunta. O que posso dizer é que estamos discutindo isso, da minha parte, respeitando muito os limites que cada pessoa tem e até onde ela consegue ir.

NB: Primeiro, precisamos conhecer os vários Brasis que existem aqui. Para apoiar uma comunidade, ela não precisa ter CNPJ, ou doadores não vão querer apoiar, porque dá trabalho. A filantropia precisa levar em consideração os modos de vida daquele local, não interferir na dinâmica interna e na política organizacional, mas apresentar meios. Não um feijão com arroz, mas um cardápio de oportunidades e propostas, para que eles decidam o que é bom e o que não é. Também ter mecanismos de monitoramento, acompanhamento e intercâmbio funcionando. Os intercâmbios são riquíssimos, porque alguém que talvez se sinta sozinho vai ver que existem outras pessoas e locais passando pela mesma coisa. Cobramos transparência dos nossos parceiros, mas às vezes não somos transparentes entre nós, no meio da filantropia. Precisamos receber como críticas construtivas coisas que talvez a gente não queira ouvir. Não é fácil, não é uma receita pronta. Cada local tem uma especificidade e nem todo mundo pode doar seu tempo e sua vida para estar aqui. Então, a gente precisa humanizar e ancestralizar a filantropia.

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Este conteúdo é parte de uma série especial produzida com apoio do Instituto Beja, que atua para promover o impacto positivo no campo da filantropia fomentando a inovação, colaboração, eficácia e engajamento da sociedade civil, do setor privado e do governo para resolução de problemas sistêmicos.

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