Leandro Sarmatz
Fibras
O modo como nos vestimos pode ajudar a explicar como o mundo caminha
Não acho que seja preciso gostar de moda para admirar Yves Saint Laurent. A questão parece ser outra. Como um criador que passou a vida enunciando sua absoluta insularidade – do frisson algo desolador da couture, da sentimentalidade burguesa e do papai-mamãe sexual e intelectual –, Saint Laurent atravessou a segunda metade do século 20 atuando como a escala Saffir-Simpson em plena temporada de furacões. Com a única diferença que algumas vezes era ele mesmo quem a um só tempo produzia o furacão e saia aos pinotes para catalogá-lo.
Foi o caso da coleção de 1971, que entraria para a história como a “coleção do escândalo”. Não eram poucos os motivos. Pagando um tributo bastante ambivalente ao que se vestia durante a Ocupação (é preciso lembrar que ele havia nascido em Oran, em plena Argélia colonizada), Saint Laurent produziu uma cafonalha brilhante que ajudaria a definir não apenas a costura, mas a cultura. Trazia à tona aqueles trajes piafianos (ombreiras quadradas, saltos de plataforma), a maquiagem pesada das drag queens vistas por ele em Nova York e a então nascente peregrinação aos brechós. Era como se a história da França sob Hitler estivesse sendo reencenada por John Waters. O volume “Yves Saint Laurent: The Scandal Collection, 1971” documenta essa jornada ao que então parecia o rodapé da história. Era na verdade um de seus parágrafos iniciais. A partir daquele momento, temas como nostalgia, retrô e streetwear entrariam para a nossa gramática visual e emocional.
De uma hora para outra, boa parte da humanidade pensa no que vai usar para cobrir o corpo
Se a política da moda deu uma guinada radical naquele momento, a política tout court passaria a entender que o modo como nos vestimos pode ajudar a explicar como o mundo caminha. Algumas vezes (poucas, é verdade), inclusive iluminando os movimentos da história. No fundo de nossos labirintos pessoais, os medos trazidos à tona por essa pandemia não parecem se resumir apenas à morte. Há muito mais em jogo. Agora que sair às ruas nos provoca calafrios, vestir-se (para ficar em casa ou para ir até a farmácia) obedece a um rigoroso esquema em que os ditames da autopreservação se impõem acima de tudo. De uma hora para outra, boa parte da humanidade pensa no que vai usar para cobrir o corpo.
Eu tenho uma bela jaqueta vermelha comprada em 2016. É do tipo “souvenir jacket”, aquele estilo que os soldados americanos trouxeram do Japão depois da Segunda Guerra. Na sua origem, era basicamente uma jaqueta de baseball com algo bordado nas costas: um tigre, um orgulhoso avião ianque, uma cena idílica tirada de um ukiyo-e, as clássicas gravuras japonesas. No caso da minha jaqueta, criação de uma marca paulistana, uma mão bastante esguia faz o gesto de heavy metal (ou algo endiabrado do tipo) com a seguinte frase, repetida no peito esquerdo: “Dangerous for tourists”. Desde pelo menos o final do ano passado eu tenho sentido um certo incômodo em sair pela rua com ela. Era como se subitamente aquela frase, com seu ethos anti-haole – a coleção 2016 dessa marca era toda calcada na selvageria algo apocalíptica de certas tribos de surfistas –, demonstrasse com clareza no que o país se tornou graças ao embotamento geral. Nas últimas semanas, tudo parece ainda pior. Com os governos de diversos países solicitando que seus cidadãos se retirem do Brasil, usar algo em que se lê “perigoso para turistas” é não apenas abandonar a ironia original: é entregá-la em forma de bife aos leões.
Quase na mesma época em que deixei a jaqueta no fundo do armário, uma famosa marca alemã de tênis criou uma coleção chamada Gardening Club 2.0. Dois modelos de tênis e um híbrido robusto de tênis e papete. O apelo voltairiano de “É preciso cultivar nosso jardim” é retomado pela marca em fotografias de gente com a roupa mais relaxada do mundo (bermudas cargo, meias grossas, moletons), pés fincados na terra, enquanto parecem se dedicar a plantar, semear, cultivar suas flores. Um bucolismo que abandona a utopia regressiva de, digamos, Teócrito ou Virgílio – em que a idade de ouro estava sempre no passado –, reprojetando-a rumo ao futuro. Amanhã você estará mais confortável (ao menos no que tange a vestuário), cuidando de si mesmo e dos seus, parece dizer a marca. Seu jardim privado está logo ali.
A estética de Kanye West, com seus moletons cor de terra para um mundo pós alguma coisa, parece estar sendo prescrita universalmente
“Não há nada tão raro quanto o normal”, disse Somerset Maugham. Nas últimas semanas, quando trabalhar de casa se tornou o “novo normal”, tenho sido exposto a uma quantidade infindável de propagandas e reportagens sobre o melhor estilo para se vestir quando em reuniões de trabalho no aplicativo de videoconferências Zoom. O consenso: roupa confortável, flexível, de fibra natural, tons neutros. Todo o credo do leisure e relaxed fit para a humanidade inteira. Uma tendência que há pelo menos dez anos encontrou sua casa entre os milionários do rap e altas executivas em licença-maternidade (os bebês, por sua vez, só enxergam cores saturadas). A estética de Kanye West, com seus moletons cor de terra para um mundo pós alguma coisa, parece estar sendo prescrita universalmente.
Há muita futurologia barata nos dias que correm, e uma parcela da humanidade acredita que sairemos melhores (seja lá o que isso significa) dessa experiência de temor e resguardo universal. Não tenho lá muita certeza. Às vezes acho que, assim que voltarmos às ruas e ao mundo do trabalho, certas convenções serão postas de lado. Mas há momentos que penso que nossos anos 20 vão refletir a década recém saída da Gripe Espanhola de um século atrás: furor e um jeito desvairadamente hedonista de encarar qualquer evento da vida. Inclusive na hora de sair de casa.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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