Isabelle Moreira Lima
Em louvor da acidez
É ela que faz um vinho ser efetivamente bom. Sua ausência torna tudo entediante, chato, sem vida, sem graça, flácido
Eu digo acidez. No que você pensa? Queimação e desconforto? Um tipo de humor com piadas maldosas? Limão espremido na hora? Opa, estamos chegando mais perto. Me refiro à coisa que te faz salivar, a característica que traz equilíbrio para tantas comidas e bebidas e, principalmente, o principal elemento que compõe um vinho. É a acidez que faz um vinho ser efetivamente bom.
Sua ausência torna tudo entediante. Um vinho sem acidez é chato, sem vida, sem graça, flácido. Em inglês, é “flat”, plano, achatado. E, como diz o expert e crítico brasileiro Jorge Lucki, “depois de certa idade, não dá pra aguentar nem gente nem vinho flat”. Eu vou mais longe e digo que, mesmo antes de certa idade, não dá: afinal, a vida passa rápido.
Já um vinho com boa acidez é “crispy”, crocante como uma maçã verde e outras frutas frescas, um morango e uma ameixa no começo da maturação, uma uva verde suculenta mas que se quebra com estalidos quando mordemos. (Não mordemos um vinho, embora alguns deem essa vontade, mas aceitamos a figura de linguagem porque, vai, é tão legal.) Um vinho com boa acidez é vivaz, elétrico, brilhante, vertical.
Na boca, ela faz pinicar as laterais da língua. Quando engolimos a bebida, salivamos. Se você nunca sentiu, proponho o exercício da próxima vez que tiver uma taça à sua frente: coloque o vinho na boca e não engula imediatamente. Observe o que acontece. Quando engolir, conte quantos segundos dura a salivação. Se a coisa for longe, a acidez é boa.
Assim como a vida e o amor, os desejos do paladar vem em ondas. Lembra quando você amava tomate seco, ele estava em todo lugar, e você depois passou a temê-lo?
Mais recentemente tem havido uma celebração dessa sensação de frescor. Assim como a vida e o amor, os desejos do paladar vêm em ondas. Lembra como você um dia amou tomate seco, ele apareceu em todo lugar, e você passou a temê-lo? O mesmo aconteceu no mundo do vinho, que só queria potência e volume até os anos 2000-2010. Hoje, todo mundo se cansou e o que se quer é frescor, uma sensação de leveza que vem de uma acidez mais alta. Ela é buscada hoje mesmo nas bebidas potentes. Ali, é um colete salva-vidas, afinal, é o que faz com que não nos sintamos esmagados por um rolo compressor quando bebemos um vinho muito alcoólico, muito encorpado ou muito tânico. A acidez é o que traz equilíbrio a esses outros pilares.
E qual o segredo do sucesso? Para ter acidez, o vinho precisa ter sido feito com uvas colhidas no ponto certo: uma uva verde pode ser bastante ácida, mas pode trazer amargor ou notas desagradáveis herbáceas ou de pimentão (pirazina); já uma uva passada perde essa crocância e vai ter mais açúcar, o que gera um vinho mais alcoólico. As bebidas de lugares mais frios, por outro lado, costumam ser menos alcoólicas e mais frescas, já que a maturação mais longa, sem tanto calor, preserva a acidez. Altitude e, consequentemente, amplitude térmica são outros aliados da boa acidez.
Algumas variedades de uvas trazem essa característica mais forte do que outras: a Pinot Noir é mais ácida que a Merlot; a Sauvignon Blanc é mais que a Viognier. Alguns terroirs também: um Chardonnay de Chablis, na França, vai ter mais acidez que um do Valle Central, no Chile. Alguns processos de vinificação podem matar ou potencializar a acidez, bem como ela pode ser adicionada — no mundo dos vinhos químicos, tudo é possível. Na virada do gosto dos vinhos potentes para os frescos, um elemento foi vilanizado: o uso de barricas de carvalho, que passou a ser símbolo de vinhos pesados e gordos. Não que tenham sido deixadas de lado totalmente, mas há uma (justificada) campanha contra o excesso de seu uso.
Na prática, a grande vantagem de um vinho mais fresco é a sensação que temos ao tomá-lo: ele realmente não pesa. E dá vontade de tomar mais. Os vinhos com acidez alta são excelentes para acompanhar a comida. Se o prato é gordo, há um mantra: “acidez corta gordura”. Se a comida é ácida, um ceviche, por exemplo, harmonizamos por semelhança. Se é untuosa, vamos por contraste; e por aí vai. É como um pretinho básico, vai com tudo.
A acidez também permite que vinhos durem décadas. Os grandes Rieslings da Alemanha podem durar anos e anos e evoluir trazendo notas empireumáticas inimagináveis. Champagnes encontrados no fundo do mar em navios naufragados há um século seguem vivos graças à acidez. Com ela, os grandes vinhos do Porto, alguns tão antigos quanto o império de D. Pedro II, brilham até hoje.
Ela é também causa e sintoma do movimento do vinho natural. Muitos, de tão ácidos, são azedos, assim como os laranja e as cervejas sour. E fazem de (quase) todos uma experiência interessante, leve, mais alegre e festiva.
A acidez está para o vinho assim como o tesão está para a vida: sem ela, não tem solução
Agora, quando ela falta, ó tristeza, lá vem a chatice. Quem viu “The Bear”, sabe os estragos que sua ausência podem causar. Outro dia, estava animadíssima com um argentininho de uva Criolla que trouxe na mala. Era um claret, último grito da moda do mundo do vinho, mistura de uvas brancas e tintas que fazem um rosé mais aceso. Qual foi a minha tristeza quando constatei que aquele belo rosado era como um copo de água saborizada. Nada aconteceu na minha boca e sobrei com expectativas frustradas.
Mas doeu ainda menos do que outra experiência que conto aqui como quem deixa um conselho: se jogue na pré-venda de livros, de ingressos, dos que for, mas fuja da de vinhos! Eu e uns amigos compramos entusiasmados uns naturais do que se chama de “unicórnio”, bebidas raras, difíceis de comprar. Acontece que os vinhos ficaram presos na alfândega por meses (tinha uma imagem de uma criança no rótulo, o que explicou a apreensão). Com o calor, o vinho sofre alterações como se estivesse “cozido”; quando há luz, ele passa pelo chamado “light strike” e perde seu brilho. É nosso palpite, que tenha sido mal armazenado nessa temporada de apreensão e que tenha sofrido com essas intempéries. Resultado: os líquidos de algumas garrafas desceram redondo… como uma bola de boliche.
Uma ressalva deve ser feita: vinhos naturais são vivos e cada um pode evoluir de um jeito. (No nosso caso, algumas garrafas estavam ainda boas.) Mas a acidez está para o vinho assim como o tesão está para a vida: sem ela, não tem solução.
Saca essa rolha
PROVE OS ITALIANOS, O MAIS PURO SUCO DA ACIDEZ
O espumante Bernardi Jacur é maravilhoso pra uma noite de fim de semana, para dar um ar especial. Vai sozinho ou com uma mesa de petisco. Um branquinho gostoso é o Barone Montalto Pinot Grigio, que vai bem com comida do mar e com pizza, especialmente aquelas chamadas biancas, sem molho de tomate. E dois tintos que são uma delícia, com essa acidez hipergastronômica da Itália, são o Beni de Batasiolo Barbera D’Alba e o Masi Bonacosta Valpolicella Classico.
BRANCOS FRESCOS COM UMA PONTA DE SAL
Je t’aime mais j’ai soif, em francês, quer dizer eu te amo mas tenho sede. E é esse o nome do vinho que pode vencê-la, do grande produtor Vincent Caillé. É um 66% Melon de Bourgogne e 34% Marsanne do Loire. Outro branco de chorar é o Antonella Corda Vermentino di Sardegna, que vai te deixar salivando até uma hora depois do fim. Para ir a um país pouco conhecido, que tal o esloveno Quercus Pinot Bianco, suuuuper-refrescante.
TINTOS PARA O FRIO QUE NÃO PESAM
Os vinhos da Herdade do Esporão, do Alentejo, são caprichados na acidez, embora seja um lugar com bastante sol, mas as castas nativas dão um show. O Esporão Colheita é um desses perfeitos pro inverno. Vale provar também o natural Y tu de quien eres, cheio e suculento.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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