Airbn — do auge à crise — Gama Revista

Airbnb – do auge à crise

Revolucionário, problemático e disruptivo, o Airbnb é um dos maiores exemplos da economia do compartilhamento. Gama destrincha os acertos, os erros e a crise que colocou a plataforma em risco

Daniel Vila Nova 07 de Novembro de 2020

Nos últimos dez anos, uma companhia se tornou sinônimo de viagem ao redor do mundo. Criada em 2008, o Airbnb mudou o turismo. Antes da pandemia, a plataforma tinha um valor estimado de 38 bilhões de dólares e era um dos símbolos da economia de compartilhamento — ou do capitalismo de plataforma, para os mais rígidos.

Com a pandemia do novo coronavírus se espalhando pelo globo e obrigando a população mundial a se manter isolada e em lockdown, o aplicativo enfrentou a sua maior crise da sua história. Os 38 bilhões de dólares se transformaram em 18 e, por meio de uma videoconferência, o CEO Brian Chesky anunciou que cerca de 1900 funcionários estavam sendo desligados da companhia. Em um único dia, um quarto do quadro de empregados do Airbnb havia sido demitido.

Como manter de pé um aplicativo baseado em compartilhamento de espaço e locomoção quando a recomendação é ficar em casa

A pandemia colocou em xeque o modelo de negócio do Airbnb. Como manter de pé um aplicativo baseado em compartilhamento de espaço e locomoção quando a recomendação da OMS é ficar em casa, o mais distante possível uns dos outros?

O baque da pandemia, entretanto, está longe de ser o primeiro problema enfrentado pelo Airbnb. Nos últimos anos, a plataforma passou a ser criticada por descaracterizar cidades turísticas e colaborar em um processo de gentrificação desordenado.

Símbolo da democratização das viagens nos primeiros anos de sua criação, o Airbnb revolucionou o turismo mundial e mudou a maneira com que viajantes, cidades e capital se relacionam. Gama investiga o futuro, o passado e o presente da companhia e busca entender qual o caminho da plataforma que mostrou ao mundo um novo jeito de viajar.

Abrindo o jogo sobre o futuro do Airbnb

Em entrevista ao The Times, Chesky, um dos criadores, confessou que o Airbnb havia se distanciado de sua proposta original. Em seu mea culpa, o CEO admitiu que precisava pensar melhor no impacto que a plataforma tem em cidades e comunidades e prometeu um retorno ao modelo original, voltando o foco da empresa para aluguéis em uma escala menor.

Apesar da crise, o Airbnb pode ter encontrado uma solução que pode garantir o futuro da companhia — o turismo de isolamento. Para a Gama, a empresa destacou que o turismo está operando de maneira diferente na quarentena. Destinos domésticos, perto de casa, são os mais procurados. A nova tendência tem a ver com viagens feitas de carro e encontra no campo e no litoral uma alternativa para o isolamento nas cidades.

Apelidadas de “Zoom Towns”, algumas cidades interioranas mundo afora ganharam a alcunha por se tornarem o destino daqueles que fazem home office. Uma das preocupações que existem é se essas cidades serão capazes de lidar com o aumento repentino de turistas do dia para a noite.

A nova tendência tem a ver com viagens feitas de carro e encontra no campo e no litoral uma alternativa para o isolamento nas cidades

Já o arquiteto, urbanista e fundador do portal Caos Planejado Anthony Ling é cauteloso ao falar sobre o assunto: “A parcela da população brasileira que trabalha em home office é pequena. Dessa parcela, uma quantidade ainda menor saiu em direção à pequenas cidades”, complementa.

Para Bianca Tavolari, professora do Insper, pesquisadora da Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e mestre em direito pela USP (Universidade de São Paulo), a pandemia alterou o quadro de migração das pessoas e é possível que essas cidades pequenas enfrentem problemas estruturais, especialmente na área de saúde. “Precisamos de uma democratização da discussão, de políticas públicas específicas discutidas em conjunto com a população. Mas, infelizmente, esse debate ainda não ocorre no Brasil”, diz a Gama.

O Airbnb busca reestruturar seu negócio e parte dessa transformação começa com a abertura do capital, que a empresa realizará em um futuro próximo. Ling acredita que esse processo pode ser positivo, aumentando a transparência da empresa e a obrigando a seguir certas regras do mercado financeiro. Entretanto, a perda de flexibilidade para tomar decisões é um ponto que o arquiteto considera negativo.

Vivendo como um local

O futuro incerto pode parece novidade para uma das mais lucrativas companhias da última década, mas a vida desse unicórnio nem sempre foi fácil. O nome, “Airbnb” vem de “airbed & breakfast”, ou “colchões de ar e café da manhã” em bom português.

A ideia surgiu em 2007, em São Francisco, nas mãos dos amigos Joe Gebbia e Brian Chesky. Sem dinheiro para pagar o aluguel da casa que dividiam, eles aproveitaram uma conferência de design que ocorreria na cidade e criaram um site simples, onde anunciaram três vagas para pessoas que desejassem dormir em sua casa, fornecendo assim uma opção mais barata do que os hotéis da região.

As três vagas foram preenchidas e, satisfeitos com os resultados, Gebbia e Chesky decidiram investir na ideia. Nathan Blecharczyk, colega dos dois, entrou na equação e eles resolveram tornar aquela experiência em um negócio. A proposta era simples: alugar quartos vagos a um preço barato.

Inicialmente, o projeto não foi recebido com entusiasmos por investidores — e o “Airbed & Breakfast” acumulou rejeições ao longo dos meses. Mas os três amigos continuaram a trabalhar na ideia e, após serem convidados a participar de uma aceleradora de startups, simplificaram o nome do negócio, criando então o “Airbnb”.

Em regiões com grande fluxo de turistas o preço de hotéis era salgado e pouco convidativo e os valores mais acessíveis do Airbnb passaram a chamar a atenção de viajantes e de pessoas que procuravam um lugar para dormir. Além da oferta de economia, o aplicativo também encontrava um diferencial na maneira com que se vendia — como uma experiência.

Live Like a Local”, ou, “Viva Como um Local”. O lema do aplicativo prometia uma experiência personalizada, diferente da padronização dos hotéis. Com o Airbnb, seria possível viver a vida real de um parisiense ou de um romano, experienciando aquela cultura da maneira mais autêntica possível. A plataforma também se vendia como uma criadora de conexões, aproximando os hóspedes de seus anfitriões e criando uma relação benéfica para ambos.

Com o boom de aplicativos como Uber e Airbnb, a economia do compartilhamento se tornou uma alternativa cada vez mais relevante, atraindo inúmeros consumidores e mudando a dinâmica de diversas indústrias. Para uma parte significativa da população mundial, o acesso passou a ser mais interessante do que a propriedade.

Um novo modelo de negócio

O aplicativo cresceu cada vez mais e, se em 2011 já atuava em 89 países, em 2016 estava presente em 190. Entretanto, a medida que a plataforma crescia, o modelo de negócio mudava. Se antes os anfitriões eram pessoas que desejam fazer uma renda extra alugando quartos vagos para turistas, hoje a realidade é diferente.

“O modelo de negócios do Airbnb não é o mesmo de dez anos atrás. Monitoramentos externos independentes indicam que hoje a maior porcentagem de usuários do Airbnb são pessoas que alugam o apartamento inteiro, sem sequer terem contato com os turistas, e contam com diversos imóveis”, afirma Tavolari.

As casas e os apartamentos mais bem localizados, onde a infraestrutura pública é melhor, são esvaziadas e os moradores das cidades são expulsos para longe

O problema, segundo a pesquisadora, é que esse efeito tem consequências sérias na vida dos moradores dessas cidades. A flexibilidade dos contratos do Airbnb — que podem se resumir a dias e não meses — são atraentes para os proprietários, que enxergam um maior potencial de rentabilidade na plataforma. Mas, à medida que se torna mais interessante alugar os imóveis no aplicativo em detrimento de um aluguel a longo prazo, troca-se residentes fixos por residentes temporários.

“As casas e os apartamentos mais bem localizados, onde a infraestrutura pública é melhor, são esvaziadas e os moradores das cidades são expulsos para longe”, diz a pesquisadora. “O planejador público coloca mais apartamentos em zonas onde há mais infraestrutura pública, como transporte público. Mas com o Airbnb, é o turista que acaba se beneficiando, não o morador ou trabalhador da cidade.”

Residentes temporários acabam pagando mais do que residente fixos, o que contribui para o aumento do valor do aluguel e do custo de vida nessas regiões. Com o tempo, os efeitos colaterais causados pelo aplicativo foram ficando cada vez mais claros. A descaracterização de cidades históricas e o papel na gentrificação de bairros turísticos são fontes de inúmeras críticas a empresa. Mas há aqueles que entendem que o problema é um pouco mais embaixo.

Para Ling, o Airbnb apenas potencializou um efeito que já acontecia nas cidades turísticas. “Essas cidades investem em turismo e em preservação do patrimônio histórico há décadas. Há muito tempo urbanistas e arquitetos alertam para uma modificação dos centros históricos de cidades turísticas em parques temáticos.”

Ele acredita que as cidades hoje enfrentam um conflito de interesses que é relativamente novo e ainda não foi bem resolvido — ser um polo turístico ou priorizar a qualidade de vida dos seus moradores?

“Algumas propostas apresentadas tentam atingir todos os objetos de maneira simultânea. Uma cidade turística, com prédios baixos, com menos oferta imobiliária, com aluguéis acessíveis e com ampla mobilidade. Mas muitas vezes esses objetivos são conflitantes entre si, não há solução mágica.”

Ling acredita que a desvalorização e valorização de áreas na cidade são transformações naturais e que o planejamento urbano não deveria buscar evitar a valorização de certa região, mas garantir políticas públicas de acessibilidade à moradia, que por exemplo monitorem alugueis e mantenha as regiões diversas.

“Os aluguéis estão aumentando e a culpa é do Airbnb? Não é bem isso. A plataforma é apenas um veículo, situado em estrutura urbana que tem uma história antiga com forças de mercado e políticas públicas muito mais significativas. O Airbnb só possibilitou a aceleração desse processo”, afirma o arquiteto.

Tavolari entende que muito dos impactos causados pelo Airbnb não foram previstos e só estão sendo compreendidos agora. “Várias cidades europeias estão discutindo o turismo em massa e chegando à conclusão que suas infraestruturas não têm condição de sustentar uma população transitória tão grande.”

A Europa contra-ataca

Buscando frear os efeitos negativos do Airbnb, metrópoles europeias estão criando alternativas para o funcionamento da plataforma. Em Barcelona, casas e apartamentos que não estão ocupados podem ser confiscadas pelo governo, Amsterdam proibiu o Airbnb em uma das regiões históricas da cidade, Lisboa passou a pagar proprietários que utilizam o Airbnb e sublocar os imóveis para pessoas de baixa renda e Paris prepara um referendo sobre o tema.

“Barcelona só admite um número pré-estabelecido de unidades alugadas via o aplicativo e todos devem pagar uma taxa na secretaria de turismo. Outras cidades definem um número máximo de noites que podem ser alugadas a curto prazo. Em Lisboa, há um zoneamento de contenção onde o Airbnb é limitado em alguns bairros e regiões”, explica a pesquisadora.

Sem turistas e com imóveis que só são alugados a curto prazo, Paris e Barcelona viram seus centros ficarem vazios durante a pandemia

Em setembro, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que é possível limitar a quantidade de imóveis disponíveis para aluguéis de curto prazo. “Sem turistas e com imóveis que só são alugados a curto prazo, Paris e Barcelona viram seus centros ficarem vazios durante a pandemia.” De acordo com a pesquisadora Tavolari, a pandemia fez com que muitas dessas cidades entendessem que deveriam ser ainda mais incisivas no controle da plataforma.

A palavra regulação pode assustar muita gente, mas parece ser o caminho tomado por grande parte das cidades turísticas na Europa. No Brasil e no mundo o maior desafio encontrado na hora de entender os impactos causados pela plataforma são os dados — ou a falta deles.

Extremamente sigiloso com sua base de dados, a falta de transparência do Airbnb é criticada há alguns anos. Ainda em Setembro, a empresa anunciou o “Portal da Cidade do Airbnb” — que busca estabelecer uma comunicação mais transparente com as cidades ao redor do mundo.

Como é possível planejar uma cidade sem saber quais são os dados do Uber e do Airbnb, que impactam diretamente moradia e transporte?

Existem também monitoramentos independentes dos dados do Airbnb, como o “Inside Airbnb”. O site, que opera de forma independente e não comercial, coleta e disponibiliza uma série de informações sobre a presença do Airbnb nas cidades. Porém, seu único representante brasileiro é o Rio de Janeiro. Sem acesso aos dados, não há como saber se a situação do país é similar à da Europa e a dos EUA.

“Eu não sei dizer quantas unidades de Airbnb nós temos em São Paulo. Como é possível planejar uma cidade sem saber quais são os dados do Uber e do Airbnb, as duas maiores plataformas de economia do compartilhamento, que impactam diretamente moradia e transporte?”, questiona Tavolari. Segundo a pesquisadora, nós sequer temos dimensão do problema que enfrentamos em solo brasileiro.

“A pandemia colocou em xeque a economia do compartilhamento. Para que ela funcione, uma cidade atrativa e viva é necessária. Isso mostra o quão dependentes essas empresas são: o modelo de negócio do Airbnb é a cidade.”

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