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SociedadeUm rehab da alma
O perdão pode ser libertador como uma desintoxicação, escreve Noemi Jaffe. Mas como se perdoa?
- @gamarevista
O perdão pode ser libertador como uma desintoxicação, escreve Noemi Jaffe. Mas como se perdoa?
É como se a língua inglesa soubesse, antes da psicanálise, que perdão e esquecimento são termos mutuamente necessários. Em inglês, forget (esquecer) e forgive (perdoar) são muito semelhantes, só mudando o verbo get (pegar) e give (dar). Quem esquece, “pega” o acontecimento e o apaga; já quem perdoa, se entrega ao outro e isso se repete em português: per-doar. Na psicanálise, aprende-se com o tempo, que, para verdadeiramente perdoar e principalmente se perdoar, é preciso esquecer; e que, para esquecer, é preciso perdoar.
Nietzche, mostrando o quanto as noções de culpa e pecado estão relacionadas à moral do escravo, também mostra como o perdão divino é complementar a essa moral. Quem peca é sempre o servo e quem perdoa é sempre o senhor, que concede essa graça ao pecador e que, desta forma, mantém a relação de servidão, ainda mais forte e manipulável depois da graça concedida.
O ressentimento e o rancor – opostos ao perdão – exercem um jugo ainda mais poderoso sobre quem não consegue perdoar
Em nossa sociedade, é certamente difícil separar a fé do perdão. É como se aquele que perdoa tivesse uma espécie de obrigação externa – devo perdoar, embora não queira nem sinta a necessidade do perdão. Será que devo mesmo?
Mas de outro ponto de vista, mais materialista e psicanalítico, sabe-se que o ressentimento e o rancor – opostos ao perdão – exercem um jugo ainda mais poderoso sobre quem não consegue perdoar. É como se eles grudassem na alma e viciassem a pessoa magoada que, a cada dia, precisa renovar seu estoque de mágoa. Isso cria uma nuvem cinza e pastosa em torno desse rancoroso profissional, que repete continuamente, para si e para os outros, seu ódio e a injustiça de que foi vítima. Nesse sentido, o perdão pode ser libertador como uma desintoxicação, um rehab da alma.
Mas como se perdoa?
Como esquecer o pai bolsonarista ou, o que é pior, o filho bolsonarista?
Confesso que não sei. Parar de falar no assunto não é uma opção, ou pelo menos não no sentido de perdoar. O assunto silenciado parece que ganha força quando não se toca nele. É como se em cada almoço familiar em que só se fala da comida, do tempo, de futebol, o tema tabu ficasse ribombando na mesa e o futebol então se transforma em um ringue e a comida vira um cabo de guerra. Em tudo fica ressoando aquele barulhinho incômodo e ferino. Acho melhor falar, não transformar o assunto num fetiche, porque assim ele vira um monumento e a raiva recíproca só aumenta.
Não insistir em ganhar a discussão e nem em persuadir a qualquer custo. O tema não é a vitória, mas o desejo de manter um vínculo
Talvez relativizar seja um caminho. Tentar compreender as motivações e as circunstâncias, eventos passados que possam justificar essa escolha. Pensar também no quanto a intensidade da minha raiva e do meu ataque pode servir apenas para intensificar a oposição, no lugar de convencer o outro. Analisar as fontes de informação do seu opositor e ter a paciência de mostrar outras leituras. Sobretudo não insistir em ganhar a discussão e nem em persuadir a qualquer custo. O tema não é a vitória, mas o desejo de manter um vínculo. Muitas vezes, jovens para quem alguns assuntos estão sumariamente resolvidos não se dão conta de que não é assim com quem é mais velho e que é preciso tempo, coisa que muitos mal consideram. Perdão é tempo também.
Outro dia, relendo Jorge Luis Borges, de novo me vi às voltas com seus labirintos, seus espelhos e suas muitas teorias sobre o eterno retorno. No ensaio “A História da Eternidade”, li que o momento presente contém todos os tempos; uma pessoa contém todas as pessoas e um livro contém todos os outros. “Quem escreveu uma única linha de Shakespeare, é Shakespeare.” Isso incomoda e ao mesmo tempo consola. Posso não querer nem gostar, mas, em algum lugar que fico escondendo de mim mesma, também sou a pessoa de quem discordo e ela também é eu. Esse tempo que estamos vivendo contém o que foi, o que será e o que deixará de ser. Quem poderia imaginar, há dois anos, que Lula estaria solto, apaixonado, casado e candidato favorito à reeleição. “(…) a conjectura de que a existência do homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar. Nos tempos que declinam (como esses), é a promessa de que nenhuma censura, nenhuma calamidade ou ditador poderá nos empobrecer.”
Tudo soa muito sábio e nobre, mas não garante nada. Na hora H, quando se está diante do parente ou amigo que declara voto no monstro, naquele que amamos odiar, o tempo circular, os espelhos e a psicanálise vão todos juntos para o lixo e a vontade maior é de pegar a pessoa pelos colarinhos e esquecer não a ofensa, mas a própria pessoa, de preferência para sempre. O problema é que a gente não esquece e continuamos amando o pai, o filho e o irmão bolsonarista. Para não falar do próprio que, esse sim, eu faço questão de nunca perdoar e espero que tampouco a História o perdoe, essa mesma que gira e muda tudo. Afinal, não perdoar também pode ser uma delícia.
Tudo isso para dizer que perdoar é bom, é possível e é libertário, mas não é fácil.
Haja Borges.
Noemi Jaffe é autora de “Lili, Novela de um Luto” (Companhia das Letras, 2021), “O que Ela Sussurra” (idem, 2020) e “O que os Cegos Estão Sonhando?” (Editora 34, 2012) entre outros. É professora de escrita e literatura e coordenadora da Escrevedeira, centro cultural literário
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