Noemi Jaffe conta como o perdão pode ser libertador — Gama Revista
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Rafaela Ranzani

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Sociedade

Um rehab da alma

O perdão pode ser libertador como uma desintoxicação, escreve Noemi Jaffe. Mas como se perdoa?

Noemi Jaffe 05 de Junho de 2022

Um rehab da alma

Noemi Jaffe 05 de Junho de 2022
Rafaela Ranzani

O perdão pode ser libertador como uma desintoxicação, escreve Noemi Jaffe. Mas como se perdoa?

É como se a língua inglesa soubesse, antes da psicanálise, que perdão e esquecimento são termos mutuamente necessários. Em inglês, forget (esquecer) e forgive (perdoar) são muito semelhantes, só mudando o verbo get (pegar) e give (dar). Quem esquece, “pega” o acontecimento e o apaga; já quem perdoa, se entrega ao outro e isso se repete em português: per-doar. Na psicanálise, aprende-se com o tempo, que, para verdadeiramente perdoar e principalmente se perdoar, é preciso esquecer; e que, para esquecer, é preciso perdoar.

Nietzche, mostrando o quanto as noções de culpa e pecado estão relacionadas à moral do escravo, também mostra como o perdão divino é complementar a essa moral. Quem peca é sempre o servo e quem perdoa é sempre o senhor, que concede essa graça ao pecador e que, desta forma, mantém a relação de servidão, ainda mais forte e manipulável depois da graça concedida.

O ressentimento e o rancor – opostos ao perdão – exercem um jugo ainda mais poderoso sobre quem não consegue perdoar

Em nossa sociedade, é certamente difícil separar a fé do perdão. É como se aquele que perdoa tivesse uma espécie de obrigação externa – devo perdoar, embora não queira nem sinta a necessidade do perdão. Será que devo mesmo?

Mas de outro ponto de vista, mais materialista e psicanalítico, sabe-se que o ressentimento e o rancor – opostos ao perdão – exercem um jugo ainda mais poderoso sobre quem não consegue perdoar. É como se eles grudassem na alma e viciassem a pessoa magoada que, a cada dia, precisa renovar seu estoque de mágoa. Isso cria uma nuvem cinza e pastosa em torno desse rancoroso profissional, que repete continuamente, para si e para os outros, seu ódio e a injustiça de que foi vítima. Nesse sentido, o perdão pode ser libertador como uma desintoxicação, um rehab da alma.

Mas como se perdoa?

Como esquecer o pai bolsonarista ou, o que é pior, o filho bolsonarista?

Confesso que não sei. Parar de falar no assunto não é uma opção, ou pelo menos não no sentido de perdoar. O assunto silenciado parece que ganha força quando não se toca nele. É como se em cada almoço familiar em que só se fala da comida, do tempo, de futebol, o tema tabu ficasse ribombando na mesa e o futebol então se transforma em um ringue e a comida vira um cabo de guerra. Em tudo fica ressoando aquele barulhinho incômodo e ferino. Acho melhor falar, não transformar o assunto num fetiche, porque assim ele vira um monumento e a raiva recíproca só aumenta.

Não insistir em ganhar a discussão e nem em persuadir a qualquer custo. O tema não é a vitória, mas o desejo de manter um vínculo

Talvez relativizar seja um caminho. Tentar compreender as motivações e as circunstâncias, eventos passados que possam justificar essa escolha. Pensar também no quanto a intensidade da minha raiva e do meu ataque pode servir apenas para intensificar a oposição, no lugar de convencer o outro. Analisar as fontes de informação do seu opositor e ter a paciência de mostrar outras leituras. Sobretudo não insistir em ganhar a discussão e nem em persuadir a qualquer custo. O tema não é a vitória, mas o desejo de manter um vínculo. Muitas vezes, jovens para quem alguns assuntos estão sumariamente resolvidos não se dão conta de que não é assim com quem é mais velho e que é preciso tempo, coisa que muitos mal consideram. Perdão é tempo também.

Outro dia, relendo Jorge Luis Borges, de novo me vi às voltas com seus labirintos, seus espelhos e suas muitas teorias sobre o eterno retorno. No ensaio “A História da Eternidade”, li que o momento presente contém todos os tempos; uma pessoa contém todas as pessoas e um livro contém todos os outros. “Quem escreveu uma única linha de Shakespeare, é Shakespeare.” Isso incomoda e ao mesmo tempo consola. Posso não querer nem gostar, mas, em algum lugar que fico escondendo de mim mesma, também sou a pessoa de quem discordo e ela também é eu. Esse tempo que estamos vivendo contém o que foi, o que será e o que deixará de ser. Quem poderia imaginar, há dois anos, que Lula estaria solto, apaixonado, casado e candidato favorito à reeleição. “(…) a conjectura de que a existência do homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar. Nos tempos que declinam (como esses), é a promessa de que nenhuma censura, nenhuma calamidade ou ditador poderá nos empobrecer.”

Tudo soa muito sábio e nobre, mas não garante nada. Na hora H, quando se está diante do parente ou amigo que declara voto no monstro, naquele que amamos odiar, o tempo circular, os espelhos e a psicanálise vão todos juntos para o lixo e a vontade maior é de pegar a pessoa pelos colarinhos e esquecer não a ofensa, mas a própria pessoa, de preferência para sempre. O problema é que a gente não esquece e continuamos amando o pai, o filho e o irmão bolsonarista. Para não falar do próprio que, esse sim, eu faço questão de nunca perdoar e espero que tampouco a História o perdoe, essa mesma que gira e muda tudo. Afinal, não perdoar também pode ser uma delícia.

Tudo isso para dizer que perdoar é bom, é possível e é libertário, mas não é fácil.

Haja Borges.

Noemi Jaffe é autora de “Lili, Novela de um Luto” (Companhia das Letras, 2021), “O que Ela Sussurra” (idem, 2020) e “O que os Cegos Estão Sonhando?” (Editora 34, 2012) entre outros. É professora de escrita e literatura e coordenadora da Escrevedeira, centro cultural literário