Isolados e ansiosos
Nos sentimos frágeis, desprotegidos, tolhidos em nossa liberdade de ir e vir. Psicanalista analisa a saúde mental de quem está confinado
“Uma infância são ânsias”
Marilene Felinto
O isolamento compulsório a que o perigo do contágio pelo Covid-19 nos condena a todos – à exceção, é claro, do nosso presidente ungido por Deus – lançou a todos em uma condição que se pode chamar de infantil. Como as crianças pequenas, deixamos de ser donos de nossos narizes. Não temos o direito de ir onde nos der na telha. Ficamos presos em casa, como a criança de apartamento cujos pais, muito ocupados, não podem levar no parquinho.
Se os pais forem amorosos, essa criança talvez não fique deprimida ou revoltada. Mas não consegue evitar de ficar ansiosa: os prazeres e alegrias de sua vidinha de repente se tornaram proibidos. Não se pode brincar no playground do prédio. Não se pode chamar os amiguinhos, nem ir a casa deles. Se o adulto obrigado a cercear esta criança lhe explicar que ela não pode fazer certas coisas porque são perigosas, talvez a ansiedade diminua: é bom ser levado em consideração. É bom que o adulto aposte na capacidade de compreensão infantil.
Mas isso não impede que a criança continue ansiosa. “Mãe, posso ir brincar lá fora?”; “Pai, me leva pra tomar sorvete?”; “Mãe, posso ir só um minuto no salão do prédio?” Ansiosa pelo dia seguinte, quando quem sabe alguém possa levá-la a passear. Ansiosa também para crescer depressa, ser dona do próprio nariz e capacitada para enfrentar tais perigos. E quem há de negar, até na vida adulta, que alguns riscos tornam a vida mais interessante? Me parece fora de dúvidas que uma vida pautada, acima de tudo, pela segurança, possa se tornar bem chata. Só que a obsessão contemporânea pela segurança não é o tema dessas reflexões.
Nós, adultos, encarregados de proteger nossas crianças, também estamos frágeis. Ameaçados. Tolhidos em nossa liberdade mais elementar: a de ir e vir
Acontece que neste momento nós, adultos, encarregados de proteger nossas crianças, também estamos frágeis. Ameaçados. Tolhidos em nossa liberdade mais elementar: a de ir e vir onde nos aprouver. O confinamento é claustrofóbico: como ficar tantos dias sem sair de casa, sem trabalhar – a maioria, sem ganhar dinheiro – em convívio permanente com pessoas a quem amamos (ou eventualmente não), mas nem por isso deixamos de desejar um pouco de independência, um pouco de solidão, um pouco de mobilidade para fora das quatro paredes que nos protegem?
Tememos por nossos filhos e netos, mesmo sabendo que crianças são menos vulneráveis a essa pandemia. Temos medo de ficar sem dinheiro. Sentimos medo da morte. Sentimos medo da vida. Bem, poderíamos considerar que essas inseguranças também são próprias da velhice – mas os velhos, diante de suas limitações ficam, talvez, deprimidos; ou entristecidos. As crianças ficam ansiosas. Precisam de espaço para correr, pular, gritar. Tentam correr e gritar dentro de casa, mas como nós adultos também estamos ansiosos, nos irritamos com mais facilidade.
Devo avisar ao leitor que a ansiedade não é um conceito da psicanálise. O “Vocabulário da Psicanálise” (Martins Fonets), De Laplanche e Pontalis, não inclui esse verbete. Já o “Dicionário Técnico de Psicologia” (Cultrix), de Álvaro Cabral e Eva Nick, menciona sete tipos de ansiedade, a começar por:
Ansiedade: estado emocional desagradável e apreensivo, suscitado pela suspeita ou previsão de um perigo para a integridade da pessoa. No caso de perigos reais, dá-se à ansiedade o nome de ansiedade realista.
Alguém aí já identificou as razões de nossas ansiedades atuais?
Menciono mais alguns tipos.
Ansiedade básica: definida por Karen Horney como o sentimento de solidão, impotência e contra-hostilidade, proveniente da infância, em face do meio circundante, considerado hostil.
Sim, mesmo para aqueles criados nos ambientes mais amorosos e protetores, hoje nosso “meio circundante” está hostil. Não me refiro apenas à violência e à paranoia insufladas pelo (des)governante da nação. O meio circundante, mesmo nos bairros mais pacíficos, também pode nos matar. A morte vem pelo ar. Pode nos atingir se um semelhante respirar perto de nós. Passamos a ter medo do outro, dos outros. Até pessoas que nos amam podem nos condenar à morte. Vivemos em um estado que talvez possamos chamar de “ansiedade flutuante”. Ainda o “Dicionário Técnico de Psicologia”:
Ansiedade flutuante: estado crônico de ansiedade que se prende a toda e qualquer situação ou atividade do indivíduo (que…) vive dominado pelo medo racionalmente infundado de que algo desagradável ou funesto lhe ocorra.
Infundadas são as declarações e atitudes do mandante da nação, cujo nome prefiro não digitar aqui. Diante dessa verdadeira incitação ao crime muitos cidadãos sentem-se, no mínimo, ansiosos
Essa última definição se parece muito com o que a inquietação a que estamos submetidos sob ameaça do vírus, com a diferença de que nosso medo não é racionalmente infundado. Infundadas, são, isto sim, as declarações e atitudes do mandante da nação, cujo nome prefiro não digitar aqui. Diante dessa verdadeira incitação ao crime (“saiam de casa”; “abram o comércio”; “o país não pode parar!”), muitos cidadãos – aqueles que acreditam no confinamento como meio de combate à epidemia – sentem-se, no mínimo, ansiosos.
Nesse caso, não em função de uma ameaça à própria vida (refiro-me aos que têm respeitado a quarentena) mas pelo que pode acontecer à vida de milhões de outros. Já não há leitos nos hospitais para receber os infectados. Nas favelas, onde as pessoas não têm nem espaço para se isolar, o vírus pode se propagar ainda mais depressa. O contágio já atingiu terras indígenas. Vale lembrar que muitas etnias indígenas já foram dizimadas antes, a partir do contato descuidado com o homem dito “civilizado” que transporta em seu corpo, sem saber, vírus para os quais os índios isolados não tinham anticorpos. Com a globalização, surgem com mais frequência vírus para os quais também nós, os não índios, não temos defesas.
Nas cidades, os mais vulneráveis são os moradores de rua, que à falta de políticas públicas para protegê-los, além do risco de contágio pelo Covid podem, nesse momento, simplesmente morrer de fome nas calçadas onde já não passa ninguém a quem pedir ajuda. Os moradores das comunidades pobres, onde casas muito pequenas abrigam famílias numerosas, também estão em risco de vida, tanto pela possibilidade de contágio quanto pela fome. Aqueles que vivem como vendedores ambulantes ou da oferta de serviços não encontrarão nem gente nas ruas para comprar seus produtos, nem famílias que os façam entrar em casa para consertar uma torneira, uma cerca, um fogão. Não é preciso ser socialista para sentir ansiedade diante do drama da fome vivido nesse momento por milhões de brasileiros.
Enquanto isso, no Alvorada…
Para piorar as coisas, não é possível confiar nas providências tomadas pelo mandante da nação – mesmo porque, tais providências inexistem. O Ministro da Saúde que pregava o isolamento como meio de diminuir a propagação da doença foi substituído por mais outro, negacionista. Nos dois próximos meses a epidemia deve atingir seu pico, e as pessoas sem trabalho contarão com insuficientes 600 reais para passar o mês. Que se virem. Bem, o que se pode esperar de um governo cujo presidente se orienta pelos conselhos de um guru terraplanista?
Sim, imagino que mesmo aqueles que ajudaram a eleger o aloprado que governa o país estejam ansiosos – ainda quando não entendam exatamente por quê. O mecanismo psíquico de recusa exige do negacionista que faça malabarismos constantes para sustentar seu raciocínio. Esse conceito, criado por Freud, designa a recusa da percepção de um ou mais fatos que possam angustiar o sujeito, ou revelar falhas e fraquezas, em si próprio, que o outro possa criticar. Cito Freud, no texto de 1925: “Não há prova mais forte de que conseguimos descobrir o inconsciente do que quando vemos o analisando reagir com essas palavras: (…) nunca pensei nisso”++(logo após ter feito, por exemplo, uma associação comprometedora a respeito de uma fantasia ou de um sonho). O “nunca pensei nisso” indica uma recusa em admitir aquilo que, queira ou não queira, o sujeito já sabe.
O outro mecanismo que facilita a recusa de algo que o sujeito sabe, mas não quer saber, se chama denegação. Esse designa a estrutura do perverso. Não se trata daquele que não quer saber de alguma coisa que possa angustiá-lo (por exemplo, de que a morte existe), mas daquele que sabe, mas não quer saber. Aquele que “não está nem aí” para os limites que a realidade social lhe impõe, porque se considera uma exceção à regra, com direitos excepcionais de gozar daquilo que aos outros é interditado. Essas pessoas podem ser criminosos comuns, embora nem todos os criminosos sejam perversos. Podem ser sedutores baratos, manipuladores, chantagistas. Podem até chegar a governar países. A convocar manifestações durante uma pandemia. A recusar mostrar o resultado de seu exame para o vírus e falar em público sem máscara, tossindo sobre os que o escutam de perto.
Não, ele não está nem um pouco ansioso com isso, porque parece se considerar acima das prerrogativas que colocam limites à ação da maioria dos mortais. Ansiosos nesse caso, diante dele, estamos todos nós.
Maria Rita Kehl é psicanalista. Autora de vários livros, ganhou o Prêmio Jabuti com “O Tempo e o Cão – Atualidade das Depressões” (Boitempo, 2010). Seu livro mais recente é “Bovarismo Brasileiro” (Boitempo, 2019)