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ConversasDeborah Colker: "Encontrei um lugar de aceitar e gritar, de aceitar sem desistir"
A coreógrafa partiu da experiência com o neto, portador de uma doença incurável, para criar ‘Cura’, um espetáculo em que traz a ciência, a fé e a arte como pilares de um processo de aceitação e questionamento
- dança
A coreógrafa partiu da experiência com o neto, portador de uma doença incurável, para criar ‘Cura’, um espetáculo em que traz a ciência, a fé e a arte como pilares de um processo de aceitação e questionamento
A dança, para Deborah Colker, é também um lugar de depurar experiências, sensações, conhecimentos. É por isso que ela lembra que o trabalho de um bailarino não é apenas físico. “O bailarino é um artista, então ele tem que se alimentar de saberes que às vezes não vêm através do corpo. Vem de outros lugares”, diz a Gama em uma conversa por vídeo de sua casa no Rio de Janeiro. O papo aconteceu logo após ela levar seu neto, Theo, para a escola e um dia depois de completar 61 anos.
Foto Leo Aversa
A chegada de Theo, há 12 anos, levou Deborah a pensar outras coisas, buscar diferentes caminhos e vozes. O menino, que nasceu com uma mutação genética incurável chamada de Epidermólise Bolhosa, que provoca bolhas e feridas na pele ao menor toque, é a inspiração para o seu novo espetáculo, “Cura”. Mas não é o único: há ainda Jesus Cristo, o músico Leonard Cohen, o orixá Obaluauê e o cientista Stephen Hawking. Eles representam, cada um a sua maneira, as diferentes maneiras de “curar o que não tem cura”, nas palavras de Deborah.
Com dramaturgia do rabino e escritor Nilton Bonder e trilha sonora original de Carlinhos Brown, o espetáculo estreou dois anos após a Companhia Deborah Colker perder um contrato de patrocínio com a Petrobrás, que durava 25 anos. “Cura” está em turnê pelo Brasil e teve estreia no Globoplay. A carioca, que ostenta prêmios como o Laurence Olivier Award na categoria “Oustanding Achievement in Dance” (realização mais notável em dança), entregue pelo The Society of London Theatre, e o título de primeira mulher a dirigir um espetáculo do Cirque du Soleil, “OVO”, em 2009, fala das transformações que a dança e a chegada do neto foram capazes de lhe proporcionar. E como é possível encontrar diferentes tipos de cura também no incurável.
A dança é dinâmica, ela circula energia, circula positivo e negativo. Cura fisicamente e emocionalmente
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G |“Cura” estreou no streaming, no vídeo. Algo inédito na sua companhia. Você acha que o espetáculo visto pelas telas funciona tanto quanto ao vivo?
Deborah Colker |Sim, funciona, mas eu não pensava assim no passado. Eu originalmente fiz o “Cura” para o teatro ao vivo, normalmente uso a câmera mais como registro. Eu acho que a gente tem um corpo com uma intensidade, uma história, uma memória e sempre ficava com esse pensamento de que a câmera esfria, hoje em dia eu acho que não. Estou pensando em fazer meu próximo trabalho com duas pegadas, uma para o teatro e uma para a câmera. Ainda assim, essa coisa de “novo normal” é bobagem pra mim. Ao vivo tem uma troca, uma sinergia, uma parada diferente.
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G |Você cria esse espetáculo que tem relação direta com o seu neto, 12 anos depois dele nascer. Por que resolveu tratar desse tema neste momento?
DC |Porque não é sobre ele, ele é um dos personagens. O Theo inaugura algo dentro de mim. Ele é meu primeiro neto e nasce com uma mutação genética que não tem cura. Quando ouço isso me causa muitas coisas. E essas muitas coisas foram todos os espetáculos que fiz nesses 12 anos. Essas muitas coisas, muitos sentidos, pensamentos, ações, reflexões, me causaram, por exemplo, muita indignação, revolta, raiva. Mas ao mesmo tempo, luta, aceitações, compreensões. Certos significados que, para mim, começam a partir dessa situação pessoal que eu vivo, mas me alertam para relações com a sociedade, como a discriminação… Se fala hoje muito em diversidade, em cada um ser da maneira que é. Então eu percebo isso de uma maneira muito real. Cada um tem sua história, sua genética. De perto, ninguém é normal. O “Cão sem Plumas” [espetáculo da Cia. Deborah Colker que estreou em 2017] é muito ligado à história do Theo.
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G |Por que escolheu esse nome?
DC |Esse nome é de um poema de João Cabral de Melo Neto [1920-1999]. É um nome perfeito. Ele sabe muito dessa situação, desse cão sem plumas, dessa pessoa que roubam dela até o que ela não tem. Ele fala de um ribeirinho que é mastigado, saqueado, roubado, e que roubam dele até o que ele não tem. Isso é de uma crueldade, mas é uma realidade. No espetáculo “Tatyana” [2011] eu fazia um solo que chamava de cinco sentidos. Lidava com cheiro, olhar, escuta, paladar, toque. Era tudo pensando na delicadeza que o Theo me trouxe. Então, na verdade, não é que agora eu resolvi fazer uma coisa, eu já vinha fazendo, eu já vinha transformada, tocada por isso há muito tempo.
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G |E como surgiu o nome “Cura”?
DC |Em 2018, eu li em todos os jornais sobre a morte do Stephen Hawking [1942-2018], aquele gênio incrível. Comecei a prestar muito mais atenção na vida dele do que na morte. E ele foi um cara diagnosticado com ELA [Esclerose Lateral Amiotrófica], essa doença que não tem cura também, em que ele fica aprisionado no corpo dele, e só a mente existe. Um cientista genial, um cara criativo e iluminado. Deram a ele três anos de vida e ele viveu mais 50. Esse cara descobriu a cura do que não tem cura. Quem deu o nome desse espetáculo foi ele. A cura precisa existir, se ela não está no plano físico, está no plano emocional, intelectual. O Stephen Hawking se curou intelectualmente. Aí comecei a buscar esses personagens. Um deles é o Theo. Também Obaluaiê, que é orixá da cura e da doença.
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G |O espetáculo começa com o Theo declamando “quando ele nasceu, ela falou: que coisa mais feia. O garoto nasceu se coçando cheio de bolhas e machucados por todo o corpo”. De onde vem essa fala e como foi gravada?
DC |Foi totalmente por acaso. Dos seis aos nove anos o Theo adorava dormir ouvindo histórias. Um dia eu já tinha contado cinco histórias e perguntei se ele lembrava de uma que eu tinha contado no passado, do mito de um deus que é da doença, da cura: Obaluaiê. E pedi que ele contasse. Ele começou a contar, não sabia ler e escrever ainda. Eu pedi que esperasse para eu gravar. Na hora eu não estava pensando em nada, tanto é que a gravação tem a minha voz, tem umas batidas no chão. Quando levei para o Carlinhos Brown ele falou que não ia mexer, que tinha que ser aquela, não quis gravar em estúdio. Então ficamos com essa pérola, que eu gravei no celular. E aí tinha essa história que o [Nilton] Bonder falava: na tradição a avó sempre conta uma história para o neto. Só que nesse espetáculo o neto conta a história para a avó.
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G |Você foi a Moçambique como parte da pesquisa do espetáculo. O que você, como coreógrafa, observa quando vai para lugares em que a dança é tão arraigada?
DC |Engraçado, sou uma pessoa que acho que não observa muito os passos de dança, mas tem uma coisa da energia, uma coisa que me contagiou, de ver todo mundo batendo o pé, cantando. Lembro que quando voltei, eu falei: “A gente vai cantar [os bailarinos cantam em determinadas coreografias, algo inédito na companhia]”. Porque fui buscar cura na África, que é um lugar inimaginável, de uma pobreza, uma miséria, e as pessoas têm vontade de viver! Talvez com a expectativa de vida menor do planeta, e os caras são de uma intensidade, querem viver aquele dia. Eu observo isso, essa potência, esse corpo que se expressa.
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G |O debate sobre representatividade de diferentes corpos em diferentes espaços está muito em alta. Você pensa em colocar outros corpos no palco? Pessoas gordas, por exemplo.
DC |Meus espetáculos demandam uma atividade física que se a pessoa tiver um corpo muito pesado pode machucar o joelho, a coluna. Na verdade, não tenho um perfil de corpo para a minha criação. Meu bailarino não precisa ser um corredor de 100 metros ou um nadador. Os atletas têm essa demanda. Claro que, como sou uma pessoa que gosta muito de técnica, a técnica clássica, as posições demandam uma musculatura. Até agora, nunca uma ideia minha demandou um corpo x ou y. Eu sempre faço audições para a minha companhia porque eu preciso de um bailarino homem ou mulher. Normalmente é assim. Eu me lembro que, uma vez, queria uma bailarina alta porque uma outra bailarina alta saiu. Às vezes, você fica querendo aquele perfil para manter a origem do trabalho. Mas chegou uma menina pequenininha espetacular. E foi ela que entrou. Isso subverte, sabe?
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G |Dança cura?
DC |Eu penso que sim. Com certeza. Eu acho que para cada um ela vai curar de uma maneira diferente. Tem gente que cura o espírito, tem gente que cura o intelectual, às vezes você é um cara tímido, fechado, que não se comunica e aí você descobre uma maneira de dançar e se expressar. Você sai de uma concha e de um casulo. Ela cura fisicamente, a dança é dinâmica, ela circula energia, circula positivo e negativo. E emocionalmente, às vezes você está com um negócio ali preso, travado, e você dança, quem dança seus males espanta.
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G |Então é verdadeiro o ditado. E como você saiu desse espetáculo? Qual o resultado em você?
DC |Ele está pronto. Uma vez, antes da estreia, aquele momento em que você sente que vai explodir se não estrear, me lembro que o Bonder falou para mim: ‘Acho que você encontrou a cura, hein?’ Aí eu falei: não, não encontrei. Porque eu sou sempre reativa, resistente, mas depois pensei que alguma cura eu encontrei, sim. Encontrei um lugar de aceitar e gritar, de aceitar sem desistir. Não vou desistir nunca. Não só do Theo, como dessas crianças com epidermólise bolhosa, não vou desistir das doenças raras. Não vou desistir dos raros, dos especiais. E o nome já diz, eles são extraordinários, especiais. Então, realmente, o meu lugar de interesse mudou. Acho que encontrei um caminho de interesse, de vontade, de luta, de aceitação, de encontrar forças dentro de algo tão frágil. Me sinto capaz de evoluir, de me tornar uma pessoa cada vez melhor. A gente só tem a aprender. Essas pessoas são tão especiais, e fica todo mundo tendo que brigar para elas terem um lugar. É uma chance evolutiva que jogamos fora. Eu não jogo não, eu estou agarrada nela.
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