Vera Iaconelli fala do impacto da ausência paterna — Gama Revista
O que um pai consegue fazer em cinco dias de licença-paternidade?
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Foto:Renato Parada

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Conversas

Vera Iaconelli: “Estamos passando para as crianças que é um horror cuidar delas”

Psicanalista fala do que nos leva a tratar as mães como cuidadoras insubstituíveis e as consequências do cuidado unilateral para crianças, mulheres e a sociedade

Luara Calvi Anic 11 de Agosto de 2024

Vera Iaconelli: “Estamos passando para as crianças que é um horror cuidar delas”

Luara Calvi Anic 11 de Agosto de 2024
Foto:Renato Parada

Psicanalista fala do que nos leva a tratar as mães como cuidadoras insubstituíveis e as consequências do cuidado unilateral para crianças, mulheres e a sociedade

Vemos com mais frequência nas redes sociais e, com sorte, em casa, uma maior participação masculina no cuidado com os filhos, mas esses parecem ser ainda fatos isolados. Em 2023, aumentou o número de crianças registradas sem o nome do pai. Foram 173,6 mil apenas com o nome da mãe em um total de 2,6 milhões de registros, segundo dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), responsável pelos cartórios.

Sabemos que quando há divisão do trabalho com os filhos, melhora a vida de quem faz parte desse projeto — especialmente das mulheres, que carregam um histórico de cuidados. Mas melhora também a percepção das crianças em relação à qualidade dessa atenção. “Se a gente conseguisse dividir, teríamos pelo menos duas pessoas menos estressadas, culpadas e sobrecarregadas”, diz Iaconelli. “Quando o trabalho é dividido, a criança percebe que o cuidado que se tem com ela não é puro peso, não é um horror.”

Vera Iaconelli é fundadora e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise. Doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (Usp), em seu livro mais recente, “Manifesto Antimaternalista: psicanálise e políticas de reprodução” (Zahar, 2023), ela trata do maternalismo, ou a ideia ainda difundida de que a mulher estaria naturalmente pronta para esse papel. “O termo ‘mãe’ se liga ao mito de que a genitora é o tipo preferencial de mãe, aquela que teria dotes naturais para a função”, escreve.

Na conversa com Gama, Iaconelli ressalta a importância da sociedade no cuidado com as novas gerações. Para ela, embora a divisão seja essencial, esse trabalho não diz respeito apenas ao âmbito privado. “As crianças se tornaram, socialmente, estorvos sociais. Tem lugares em que entra cachorro, mas não entra criança. Elas também estão sendo hostilizadas no espaço público”, diz na conversa a seguir.

Quando o trabalho é dividido, a criança percebe que o cuidado que se tem com ela não é puro peso, não é um horror

  • G |Quando se cobra a participação paterna na criação dos filhos, muitas vezes associamos essa necessidade ao fato de que a mulher, hoje, trabalha tanto quanto o homem. Como se o pai só devesse participar do cuidado com os filhos porque a mãe está sobrecarregada. Que outros argumentos você destacaria em relação à necessidade de divisão dessas tarefas?

    Vera Iaconelli |

    Há uma invisibilização do fato de que as mulheres sempre trabalharam. Elas lavavam a roupa do vizinho, cozinhavam, trabalhavam nas lavouras, nas fábricas, com as crianças junto inclusive. Tudo isso era totalmente invisibilizado, “o dinheiro para os alfinetes”, como se dizia. Um dinheiro que a mulher ganhava de maneira constrangida porque mostrava que o marido não conseguia cumprir a função de provedor. Que mulheres passaram a trabalhar nos anos 1960, disputando postos ditos masculinos? As que tinham maridos que eram provedores ou que tinham heranças. Mas, na verdade, essa é uma parte minúscula da população. E houve sempre um contingente muito grande de mulheres cuidando sozinhas dos seus filhos, mães solteiras, mulheres abandonadas, viúvas. Além disso, muitas não podiam trabalhar. Imagina quantas brigas e mortes aconteceram porque a mulher resolveu trabalhar, sendo esposa de um homem com posses. E muitos trabalhos eram remunerados, mas o dinheiro desaparecia porque ia para a família, ficava na conta do marido. A mulher nunca pôde reivindicar esse dinheiro.

  • G |No seu livro, você traz a complexidade da criação dos filhos, o que requer um longo desprendimento de atenção, energia e afetividade, algo que fica a cargo especialmente das mulheres. Além das consequências para elas, quais questões esse cuidado muitas vezes unilateral traz para as novas gerações?

    VI |

    Geralmente são os pais que contam do prazer de estar com os filhos. Por quê? Eles estão nessa relação em que tudo o que fizerem é lucro, o que dá um status gigantesco. E tem que dar mesmo, até a gente conseguir equilibrar isso aí… Mas para a mulher não há status nenhum. É o contrário, mostra que ela está aprisionada. Então o cuidado que ela oferece é mais estressado, preocupado, mais comprometido. A criança sente que aquela pessoa que está dividida entre o trabalho e o cuidado. Se a gente conseguisse dividir isso, teríamos pelo menos duas pessoas menos estressadas, culpadas e sobrecarregadas. Quando o trabalho é dividido a criança percebe que o cuidado que se tem com ela não é puro peso, não é um horror. O que a gente está passando para as crianças é que é um horror cuidar delas. As mulheres estão exaustas e o que é isso? É sobrecarga, não são as crianças. As crianças sempre vão demandar a mesma coisa, elas dão trabalho, ponto; e estão no direito delas. Precisam de uma sociedade que se debruce sobre elas.

  • G |Você quer dizer que, além da divisão do trabalho em casa, essa responsabilidade sobre as crianças extrapola o âmbito doméstico?

    VI |

    Sim. E a gente não está administrando isso bem do nosso lado, como sociedade. Podemos oferecer um cuidado melhor para elas. A segunda coisa é que, em termos de gênero, isso também dá um tilt na cabeça das crianças porque você está mostrando que as mães e mulheres são frustradas, que ser mulher é péssimo. Tem criança que fala, “não quero ser mulher. Se eu for mulher é um horror”. “Eu não quero ser homem, os homens são atacados dia e noite.” Então essa disputa entre os gêneros cria confusão. Não está confortável para ninguém. Tem efeitos em vários níveis, tanto na qualidade do cuidado, na identificação com o gênero, quanto no se sentir culpado por demandar o que uma criança deve demandar. As crianças se tornaram, socialmente, para além dos pais, estorvos sociais. Tem lugares em que entra cachorro, mas não entra criança. Elas também estão sendo hostilizadas no espaço público. Isso é um grande paradoxo porque a sociedade, para se manter, precisa que as crianças nasçam, senão a gente vai ter um déficit demográfico pavoroso, um problema econômico grave. E, ao mesmo tempo, a sociedade diz que [o cuidado com a nova geração] é um problema privado, “a gente não tem nada a ver com isso. Eu não quero que a criança frequente o mesmo espaço que eu.”

  • G |As mulheres que terceirizam o cuidado muitas vezes são criticadas pela sociedade. O que essa crítica nos revela?

    VI |

    Acho um problema a gente falar que a mulher terceiriza. Você está dizendo “olha, a responsabilidade era dela, e ela jogou para outra mulher pobre”. Não é ela que terceiriza, mas a família e a sociedade. A sociedade terceiriza esse cuidado para a mulher pobre periférica, que fica sem ninguém para cuidar dos próprios filhos. E, se uma mulher passou essa responsabilidade, é porque ela já recebeu essa responsabilidade de alguém. Então, se a gente continuar com esse discurso, estamos dizendo que é um assunto feminino, que as mulheres brancas estão explorando as mulheres pretas. Elas podem até estar explorando, mas é dentro de uma cadeia em que elas estão sendo exploradas; e ao fim e ao cabo todas estão sendo exploradas. É uma lógica que precisa ser repensada, porque senão fica parecendo que é uma disputa entre mulheres. Cadê os homens nessa conversa? O pai dessa criança não terceirizou? O Estado não terceirizou? Na verdade todo mundo terceirizou.

  • G |Quais as soluções possíveis para esse impasse?

    VI |

    Toda a sociedade tem que se mobilizar para pensar nas crianças, não como filhos de fulano e de sicrano, mas como a próxima geração para a qual todos somos responsáveis. O que mulheres brancas, homens brancos, ricos, pobres têm que fazer é pensar políticas públicas que dêem conta de incluir a mãe da quebrada entre as que também precisam ser cuidadas. O grande problema é que pensamos sempre em demonizar o pai, demonizar a mulher que tem uma babá. Essas pessoas têm que ser criticadas e repensar suas posições, mas é preciso pensar políticas públicas, não apenas no âmbito privado. Ter lavanderias coletivas, creches coletivas, cozinhas solidárias, vários dispositivos para atenuar o sofrimento e o trabalho escravo das mulheres periféricas e pobres. Isso tudo faz parte dessa crise da maternidade.

  • G |No livro você apresenta que mulheres não são insubstituíveis e que o instinto materno pode ser questionado. Como argumentar diante desse discurso tão estabelecido e que acaba por afastar a participação dos homens e da sociedade nos cuidados?

    VI |

    A gente não é dominado pelo instinto. O que os humanos mais fazem são coisas fora da curva. A gente faz sexo não procriativo, faz greve de fome. Além disso, os bebês não são cuidados da mesma forma aqui, no Japão, em 1900, em 1800. Toda a questão cultural atravessa a nossa forma de cuidar, de amar, o amor romântico que dá lugar ao amor pós-moderno. Todas formas de existir são atravessadas por ditames da cultura, por questões que os outros animais não têm. E quando você tem a experiência que a gente chama de perinatal, que pode acontecer com pessoas nascidas com útero e que conceberam, você tem uma experiência no corpo que pode te aproximar do bebê recém-nascido ou pode levar a uma aversão. A experiência em si não diz nada do que vai se estabelecer entre quem gestou e pariu, o feto e o bebê. Do contrário a gente não teria as entregas e as adoções, os abortos eletivos. Para a psicanálise, o acontecimento não determina como o sujeito vai viver o resultado desse acontecimento. Agora, não podemos negar que a experiência perinatal acontece no corpo, mexe no narcisismo, mexe com a libido, ela afeta, tem algo que nos tira do lugar. Então tem um convite que pode fazer com que a gente se debruce sobre a experiência da gestação e do parto e venha a assumir uma criança no lugar materno. Mas existem outros caminhos. Nossos pais nos amaram não foi porque o instinto mandou, mas porque eles construíram isso com a gente.

  • G |Temos visto nas redes sociais o advento de influenciadoras que divulgam o papel de cuidadoras exclusivas dos filhos e da casa, que renunciaram a outras aspirações para além da maternidade. Por que esse sucesso, esse interesse?

    VI |

    O que a internet fez foi unir pessoas que jamais se uniriam. Aquela cunhada que nunca encontrou eco dentro da família porque pensava muito esquisito, achava que a terra era plana…. Ela encontrou outra pessoa que também achava que a terra era plana e eles todos se juntaram. Essas pessoas que hoje estão cheias de seguidores sempre existiram. O que aconteceu é que elas conseguiram se juntar com outras pessoas e ganhar dinheiro fazendo isso. Não se pode esquecer que isso tudo é atravessado por dinheiro. Os likes, as propagandas, os cursos… Como a gente vive num momento em que os discursos são muito antagônicos e muito fluidos, as pessoas ficam muito inseguras. Elas querem alguém que diga “é isso, o negócio é ser assim ou assim.” E elas vão como cardumes porque é muito angustiante o que a gente vive hoje. As pessoas precisam encontrar lugares onde se sintam ouvidas. Então você vai ter tanto igrejas fazendo esse papel, quanto esses grupos na internet. Mas eu entendo que o feminismo é o direito das mulheres fazerem o que elas quiserem. Eu lamento, mas não condeno.

  • G |A psicanálise ainda sustenta a ideia de que a mãe carrega um papel insubstituível no cuidado com os filhos, ou você vê atualizações?

    VI |

    Vejo profundas atualizações, é muito injusto a gente pensar na psicanálise como algo que Freud fez há 125 anos, ele fez o que era possível e fez muito. Se estivesse vivo, já teria revisto milhões de coisas, mas isso coube a nós. A psicanálise continua trabalhando com muita força. As pessoas de outras áreas, como Paul B. Preciado, Judith Butler, filósofos que criticam a psicanálise para fazê-la andar, não para dizer que não vale nada. Criticam porque acham que ali tem coisas, inclusive são pessoas analisadas. A boa nova é que a psicanálise brasileira é de ponta. Temos coisas escritas em português que são de extremo valor, não estamos devendo nada aos europeus, quando a gente vai para lá é muito elogiado. Tem alguma coisa acontecendo no Sul Global, e tem alguma coisa acontecendo no Brasil porque estamos muito atravessados pelas questões de gênero, de raça, as questões interseccionais. A psicanálise é muito atual porque ela se atualizou.