Olivia Byington, João e a Síndrome de Apert — Gama Revista
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© Arquivo pessoal

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Depoimento

João nunca esteve só

Olivia Byington sempre buscou trocar com outras pessoas a experiência de ter um filho portador da Sindrome de Apert. Até que a família pôde experimentar um tipo de “agremiação que conforta”

Olivia Byington 12 de Julho de 2020

João nunca esteve só

Olivia Byington 12 de Julho de 2020
© Arquivo pessoal

Olivia Byington sempre buscou trocar com outras pessoas a experiência de ter um filho portador da Sindrome de Apert. Até que a família pôde experimentar um tipo de “agremiação que conforta”

Naquela ida ao Nordeste do Brasil, levei João comigo. Viajar fazia parte da rotina dos shows que eu fazia pelo país. Tenho quatro filhos, e nunca foi fácil deixar os meninos pra trás, às vezes no meio das férias escolares. Quando dava e o dinheiro permitia, incluía as crianças na trupe. João, meu primogênito, nasceu quando eu tinha 22 anos e me fez crescer brutalmente com a síndrome que veio com ele. Apert. Síndrome de Apert. Esse foi o nome que eu ouvi, no dia mais inesquecível da minha vida, marco zero do início da nossa luta pela sua sobrevivência. Os dedos das mãos e dos pés colados, o crânio deformado e muitas outras complicações que viriam depois foram anunciadas ali, no seu nascimento, e iriam me acompanhar pelas décadas seguintes.

Ele era único, diferente de todas as crianças que nós conhecíamos. Causava espanto a noticia, causavam pavor os encontros com amigos, afastava visitas. O que mais doía, numa longa lista de tristezas, era a solidão profunda de não poder compartilhar com ninguém, a não ser com ele próprio, os mistérios e perguntas a serem respondidas no decorrer da vida inteira. Frases como a da minha analista, “você não está só”, querendo me incluir no mundo de milhares de mães que passaram pelo mesmo caminho, me aliviavam o peso de ter sido escolhida pra viver este papel. Ainda, assim, olhava pro meu filho e ele era único. Não havia como trocar dicas de maternidade, não havia como encostar o carrinho na praça, nem convidá-lo a sentar na areia com outras crianças. As palavras que me socorriam e amparavam vinham de médicos especialistas nas incontáveis internações e cirurgias que iam acontecendo. Só havia a amargura de não fazer parte do mundo normal e de ter um filho ímpar.

Olivia Byington e o filho João

O que mais doía era a solidão profunda de não poder compartilhar com ninguém, a não ser com ele próprio, os mistérios e perguntas a serem respondidas

Dez anos depois, naquela viagem à Bahia, tive uma surpresa. Nos jardins da Igreja do Bonfim havia um menino que se parecia com o meu filho e vieram me chamar para que eu pudesse vê-lo de perto. Era um outro João. As mãos, os pés, os olhos, o rosto com as maçãs retraídas, e o sorriso com dentes desalinhados. Podia ser seu irmão gêmeo. Em algum lugar eu sabia que poderia encontrar essa semelhança, mas a síndrome é tão rara que até aquele momento eu nunca tinha encontrado ninguém que fosse do mesmo grupo. Era um menino feliz como o meu filho, solto ali no pátio da igreja, brincando, vivendo uma vida normal como a que eu sempre quis dar ao João. Tinha o ar gaiato e a mesma segurança de quem está acostumado a ser o centro das atenções. Falava com a voz fanhosa e trocamos algumas palavras. Eu estava aflita. Não tínhamos tempo, foi tudo muito rápido e fomos embora sem eles terem oportunidade de se conhecer melhor.

Dias depois, já de volta, ainda não sabia explicar a estranha sensação daquele encontro. O menino do Bonfim não me saía da cabeça. Cada vez mais percebia que havia um laço maior que ligava aquelas duas crianças. O menino me roubou a exclusividade do João. Ele pertencia a uma outra família além da nossa. A mutação genética gera características fortes nas crianças com a síndrome. Mais tarde pude observar que não só traços físicos mas também emocionais e comportamentais são bem semelhantes entre as pessoas com síndrome de Apert. Era urgente que eles se conhecessem.

João e dois dos três irmãos

Negavam uma vaga para o meu filho se sentar num banco de colégio para tentar aprender. Ninguém queria encarar a singularidade

A internet dava seus primeiros passos e logo João fez parte do primeiro grupo de crianças com a síndrome. A página foi criada nos Estados Unidos pela família de uma menina americana que aos poucos foi ligando crianças de todo mundo com síndrome de Apert. Nada aconteceu de diferente pra nós, mas na página foi publicada a fotografia do João, bem prosa, montado numa bicicleta. Isso queria dizer muita coisa. A bicicleta e a atitude eram de uma criança que tinha uma vida alegre, capaz de pedalar sozinha e sentir a liberdade e o vento no rosto. Pela franja caída na testa se via o quanto seguro e cheio de si era aquele menino. Mas aquilo era a aurora do mundo digital e na época não conseguimos armar uma rede com essas crianças.

A escolaridade foi difícil, negavam uma vaga para o meu filho se sentar num banco de colégio para tentar aprender. Ninguém queria encarar a singularidade, nem fazer um esforço pra encaixar a esquisitice nas suas salas de aula. Eu inventava soluções caseiras para contornar o atraso da sua educação mas nada substituia o convívio social, a integração no universo das crianças da sua idade. João continuava único. De vez em quando eu recebia um telefonema de alguma mãe que conseguia me encontrar pra falar sobre o desenvolvimento do seu filho com a mesma síndrome. Eu tinha muito o que informar porque João foi operado muito cedo e já era adolescente, eu podia dividir muitas informações. Mas estávamos longe de ter um grupo de mães, e da grande conexão que se fez com a internet nos anos seguintes.

Oliva Byington e os quatro filhos, entre eles João Byington de Faria e o ator, escritor e humorista Gregorio Duvivier

Três décadas depois, em plena pandemia e isolamento social, João não está mais só. Do quarto ao lado ouço as gargalhadas e a tagarelice on-line que atravessa tardes adentro nos grupos de Facebook e WhatsApp. Rapazes e garotas com síndrome de Apert discordam sobre politica, discutem notícias, falam sobre a luta contra o preconceito que sofrem, trocam intimidades que eu não estou lá pra saber quais. O encontro dos únicos, a agremiação que conforta. Nunca reencontrei o menino da Bahia. Deve ser um adulto como o meu filho. Quem sabe está lá no chat com ele.

Olivia Maria Lustosa Byington é escritora, cantora e violonista. É autora de “O que é que ele tem” (Objetiva, 2016).