Entrevista sobre bolhas sociais e como viver junto — Gama Revista
Como viver junto?
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Conversas

"Vivemos em cidades cosmopolitas, mas ainda em bolhas"

Para lidar com as crises nas grandes cidades, diz o sociólogo Mario Luis Small, é preciso olhar para os lados e lembrar que, de algum modo, estamos todos conectados — mesmo que em isolamento

Willian Vieira 29 de Março de 2020
©Fabrizio Lenci

“Vivemos em cidades cosmopolitas, mas ainda em bolhas”

Para lidar com as crises nas grandes cidades, diz o sociólogo Mario Luis Small, é preciso olhar para os lados e lembrar que, de algum modo, estamos todos conectados — mesmo que em isolamento

Willian Vieira 29 de Março de 2020

Como poderemos viver juntos em cidades cada vez mais densas, complexas e desiguais sem perder o senso de comunidade, sobretudo em tempos de crise? Professor do departamento de Sociologia da Universidade de Harvard, o panamenho Mario Luis Small tem estudado a desigualdade em metrópoles norte-americanas, e não só do ponto de vista econômico – seu foco são as conexões estabelecidas no dia a dia e como elas nos permitem uma experiência em comunidade, mesmo no caos cotidiano dos centros urbanos. Em entrevista a Gama, o sociólogo analisa como as grandes questões contemporâneas (da imigração ao aquecimento global, da desigualdade à onda conservadora) se relacionam entre si sob a ótica da vida urbana – ainda mais agora, com a pandemia do novo coronavírus disseminando pânico e desinformação e obrigando governos a isolar milhões de pessoas. A crise nos fará repensar a experiência de viver junto?

  • G |Como a atual pandemia do coronavírus muda a forma como vivemos juntos, em sociedade ou acirra crises já existentes?

    Mario Luis Small |

    A resposta varia se pensamos no curto ou no longo prazo. De imediato, podemos esperar um aumento brutal do isolamento social e da dependência das mídias sociais como fonte de informação – o que tende a acirrar a polarização a partir desse consumo de notícias. Isso deve piorar muito. Nos Estados Unidos, já está acontecendo: diferentemente dos liberais, os conservadores tendem a pensar bem mais no COVID-19 como algo menos preocupante. Até a Casa Branca, hoje nas mãos de um conservador [Donald Trump], classificou o vírus de “embuste Democrata”, para então declarar uma emergência nacional poucas semanas depois. No longo prazo, é difícil dizer. Mas os sinais apontam para um aumento no isolamento social e para uma intensificação do fechamento das fronteiras. E países como os Estados Unidos e o Reino Unido, que não implementaram cedo o bastante medidas cientificamente recomendadas, tendem a pagar um preço maior. Assim, paradoxalmente, talvez vejamos enfraquecer no futuro essa forma tão particular de conservadorismo que rejeita a ciência moderna e encoraja as fronteiras e o isolamento social.

  • G |O que acontecerá após o fim de isolamento social forçado? Algo mudará na forma como viveremos juntos?

    MLS |

    Após os países se recuperarem economicamente e uma vacina for desenvolvida, creio que a vida deverá retornar ao normal, mas com algumas mudanças. Eu penso que haverá um aumento dos trajetos virtuais [tele-commuting, ou home office], já que mais pessoas estarão familiarizadas com a tecnologia e se sentirão confortáveis com ela. E espero que haja uma melhora no preparo para futuras emergências. A história, todavia, mostra algo distinto. Como no caso da Gripe Espanhola, talvez esqueçamos as lições rapidamente e voltemos aos velhos hábitos. Creio, porém, que o vírus nos fará perceber que nossas liberdades não são de forma alguma garantidas. Mas será que passaremos a cobrar mais de nossos governos? Vale esperar que nossa sociedade esteja mais organizada e preparada para proteger as camadas mais vulneráveis, e não apenas garantir o lucro de alguns? Ainda é difícil responder.

  • G |Para além da epidemia, o mundo já vive certo caos. Com tantas crises concomitantes, estamos desaprendendo a viver juntos?

    MLS |

    Veja, essa questão deve ser analisada como um movimento cultural complexo. Por exemplo, muitas pessoas em diversas partes do mundo compartilham visões nacionalistas, olham para o passado em busca de uma noção idealizada de tempos melhores, tempos em que não se preocupavam com as condições econômicas extremamente adversas que vivem agora: pobreza, moradia cara, falta de educação acessível aos filhos… o que ocorre num estado de bem-estar social enfraquecido. Então elas culpam os outros. Mas há também um conservadorismo ideológico que é cultural e que precisamos compreender melhor. No mesmo período em que testemunhamos o boom da globalização, o aumento da desigualdade etc., outros aspectos melhoraram – coisas que os cidadãos culturalmente liberais adoram, mas os conservadores detestam, como o casamento gay, que passou a ser aceito em algumas partes do mundo. Os direitos de pessoas trans, idem. Uma grande mudança cultural aconteceu ao mesmo tempo que mudanças econômicas passaram a prejudicar quem está longe do topo da pirâmide. Juntas, elas formam uma narrativa que leva essas pessoas a dizer: “Não, isso é demais”.

  • G |Além do declínio no bem-estar social, o mundo vive múltiplas crises. É possível que essa realidade esteja minando o sentimento de coletividade nas cidades?

    MLS |

    Sim. Desse declínio decorre o aumento da desigualdade, há menos suporte para que as pessoas vivam de forma decente. Assim, tem-se uma população cada vez mais rica, dentro da cidade, que entende cada vez menos o que se passa a seu redor. Numa cidade como São Francisco, por exemplo, isso se manifesta na questão da habitação. Os preços têm disparado nos últimos 20 anos. Certamente é o caso de São Paulo também. Se você é muito rico, vive bem numa cidade grande como essa. Se não é, se é classe média, gastará proporcionalmente bem mais de sua renda com moradia. E, se é pobre, dependerá mais e mais do Estado ou acabará sendo expulso da cidade. O resultado é que, dependendo do status de renda, vivem-se experiências completamente distintas na mesma cidade. Nesse contexto, a possibilidade de que pessoas tão diversas consigam entender a perspectiva das outras, no sentido de um sentimento coletivo de pertencimento, torna-se cada vez mais difícil.

  • G |O mesmo vale para a questão migratória?

    MLS |

    Sim, é um fenômeno curioso. Em partes não urbanas de um país, a interação dessas populações com imigrantes é muitíssimo menor; ainda assim, a agressividade e a falta de compreensão são maiores que nas cidades. Isso graças à política nacional, em relação direta com a mídia conservadora. Temas como a imigração têm sido intensamente publicizados – países mundo afora têm vivido uma polarização política forte, muitas vezes ligada a organizações de mídia politicamente engajadas. É o que explica que pessoas morando numa zona rural, afastada de onde vivem os imigrantes, sem contato com eles, acreditem que eles estejam arruinando a vida delas. Não quero dizer que é só questão de ignorância. Mas o fato é que essas pessoas – mais isoladas dos imigrantes diferentes delas, da convivência com elas – estão alimentando-se apenas de uma narrativa midiática coerente com as suas opiniões já formadas, isolando-se cada vez mais.

  • G |Em síntese, falando especialmente dos Estados Unidos, grandes cidades tendem a ser mais progressistas que áreas rurais e cidades pequenas e que o próprio país onde estão? Por quê?

    MLS |

    Sim, e essa é uma consequência-chave da urbanização. Os principais elementos da urbanização são o crescimento, a concentração de pessoas, a troca de ideias. Isso atrai gente de toda parte, desenvolve uma orientação cosmopolita. Conforme cresce, um lugar tende a ficar mais heterogêneo, a criar instituições que encorajam atitudes cosmopolitas, o que resulta numa compreensão do coletivo mais liberal, aberta. Portanto, há uma diferença de orientação política clara entre áreas urbanas e outras partes de um país. Nos Estados Unidos, isso fica claro em disputas em torno de como e quanto taxar os cidadãos, por exemplo. Aqui, as grandes metrópoles tendem a votar na centro-esquerda, enquanto áreas menos urbanas tendem a votar na direita. Foi o que ocorreu na última eleição. A principal promessa do presidente Trump era fortalecer as fronteiras contra a imigração, um discurso fortemente anti-imigrante. Mas, em grandes cidades, os imigrantes são parte importante da economia. O grau de oposição a Trump em cidades como Nova York é esmagador. É como se a nação do presidente fosse um lugar totalmente diferente de onde a maioria das pessoas vive.

  • G |Vivemos em bolhas urbanas, ignorando o que ocorre em áreas menos cosmopolitas?

    MLS |

    Sim e não. Graças à heterogeneidade de cidades como São Paulo, Shangai e Londres, é impossível viver numa bolha. Há muito “internacionalismo”, algo que a socióloga Saskia Sassen chama de “cidade global”. Nas metrópoles, o nível de educação tende a ser maior, as pessoas são expostas ou conectadas a pessoas de outros países. Assim, muitas vezes vivemos numa bolha em relação ao restante do país, e não em relação ao restante do mundo. Muitas pessoas em Nova York literalmente não conseguem entender ou explicar como alguém vota em Donald Trump. Mas é importante compreender a perspectiva do outro. É muito fácil ignorar, não conseguir se engajar com alguém que não compartilha de nossas crenças. Quantas pessoas em Londres conseguem articular o porquê do Brexit? Nesse sentido, boa parte de nós vive em lugares extremamente cosmopolitas ao mesmo tempo que vive numa bolha.

  • G |Se tivéssemos de eleger uma única questão com a qual inevitavelmente teremos que lidar nas grandes cidades, qual seria?

    MLS |

    O aquecimento global. Não parece óbvio, mas é. E não falo apenas das questões mais gritantes, como o aumento do nível dos oceanos – as metrópoles são, na maioria, costeiras; então centenas de milhões de pessoas acabarão sendo deslocadas. Cada novo furacão, cada novo desastre natural será mais imprevisível, mais violento, com consequências mais devastadoras e trarão choques cada vez mais dramáticos sobre o sistema. Podemos ainda falar sobre a falta d’água, que será cada vez mais frequente em todo o mundo. Penso no caso das cidades colombianas [que sofreram suas piores secas da história]: muita gente teve que deixar suas cidades natais. Todas essas mudanças ocasionam o quê? Maiores migrações – e muitas vezes para locais onde as pessoas têm idealizado o passado e abraçado visões nacionalistas. É uma receita para o desastre.

  • G |O clima impacta mais que a falta de transporte, de habitação etc.?

    MLS |

    A questão é: como o motor que move as cidades é o crescimento, elas terão que decidir se instituem coletivamente medidas para reduzir o impacto climático ou se competirão umas contra as outras por crescimento, piorando assim o aquecimento global. Não falo só de fábricas e carros, mas da demanda crescente por consumo: aparelhos de ar-condicionado, por exemplo, aquecem cada vez mais o concreto das selvas de pedra que as metrópoles têm se tornado. Mas, sem eles, as pessoas vão “cozinhar”. O que fazer? As cidades e seus países terão que coordenar essa resposta. O que não é fácil. Os Estados Unidos saíram do Acordo de Paris sobre o clima… mas é no nível municipal, onde a demanda por crescimento se traduz em maior consumo de energia, que enfrentaremos os maiores impactos. Por isso, a segunda questão que as cidades enfrentarão será justamente esse difícil relacionamento com as próprias nações de que fazem parte.

  • G |Cidades afluentes em países em desenvolvimento (caso de São Paulo) e em países ricos (vide São Francisco) podem ser muito desiguais. Falhamos como sociedade em lidar com a desigualdade?

    MLS |

    A resposta é: sim. A desigualdade nas cidades e a desigualdade entre as cidades estão crescendo. São dois lados do fenômeno. O que temos visto é essencialmente o capitalismo sendo vítima do próprio sucesso. Nessa conjuntura, o grau de prosperidade trazido pelo sistema criou um nível de desigualdade no qual é possível viver  completamente feliz numa bolha domiciliar, sem pensar no que está acontecendo no restante da cidade, do país, do mundo. Recentemente, um político disse: “Por que uma nação em desenvolvimento não aproveitaria suas reservas naturais?” [O presidente Jair Bolsonaro, na abertura da Assembleia Geral da ONU, acusou outros países e a imprensa internacional de estarem guiados por um “espírito colonialista” em relação à Amazônia.] Esse tipo de pensamento é o que faz com que vivamos numa cidade, protegidos pela própria riqueza, sem pensar nas consequências reais, por exemplo, do aquecimento global e da desigualdade. Por isso, pensar nisso é cabal para lidar com todas as outras questões.

  • G |Você mostra, em seus livros, que a participação na comunidade é fundamental para mudar a forma como as pessoas percebem a vida na cidade. O que mais pode ser feito?

    MLS |

    Em muitos contextos, a participação popular é geralmente motivada por um número pequeno de pessoas, geralmente 5% ou mesmo 2% do total de habitantes. Não creio que a saída seja envolver toda a sociedade – isso é irreal –, mas, sim, identificar esse pequeno número de líderes dispostos a agir e a cumprir sua parte no engajamento coletivo. Pesquisas sugerem que a forma como essa relação com a cidade é encarada tem impacto. Um dos problemas que os millenials, entre outros grupos, enfrentam no momento é um sentimento de desesperança sobre o futuro, sobretudo dada a crescente desigualdade e à baixa probabilidade de ascender socialmente. Nos Estados Unidos, por exemplo, eles têm a expectativa de viver pior, de ter um nível de vida abaixo do de seus pais. Nesse contexto, identificar zonas de esperança e oportunidade, nas quais o engajamento local de um sujeito pode fazer a diferença, é o que mais importa para a vida em comum. A participação no processo político é uma das chaves.

  • G |A rotina nas cidades tem mudado com as novas tecnologias. O que isso significa para a vida urbana?

    MLS |

    Não creio que a internet ou as tecnologias tenham nos tornado menos conectados uns com os outros. Muitas formas de engajamento local continuam de pé: as pessoas ainda se encontram em bares, restaurantes, clubes; elas visitam parques e museus, escolas, academias, instituições religiosas. As atividades comuns na cidade continuam essenciais. A internet e as tecnologias móveis criaram, isso sim, novas formas de conexão, e a velocidade da mudança é tamanha que ninguém sabe o que irá acontecer – o que não significa ou significará uma desconexão da vida urbana. Acredito ainda que o potencial das plataformas virtuais para mobilizar pessoas é enorme. Basta ver o número de movimentos populares recentes (do #MeToo ao #BlackLivesMatter, do #OccupyWallStreet à Primavera Árabe) para entender que elas são extraordinárias ferramentas de engajamento e mudança.

  • G |As cidades têm sido vistas, desde sempre, como o lugar privilegiado de encontro, de oportunidades, onde pessoas diferentes se conectam. Essa promessa tem sido cumprida?

    MLS |

    Sim e não. O nível de urbanização em todo o mundo cresceu dramaticamente. Pela primeira vez na história, a maioria das pessoas vive em cidades. Qualquer previsão razoável aposta na continuidade dessa tendência, tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Mas a promessa das cidades como lugar privilegiado de encontro, de viver junto, tem se complexificado. Há muitas oportunidades, mas cada vez mais conflitos, pobreza, desigualdade, às vezes violência. Saber se a promessa das cidades será cumprida vai depender de como lidamos com tais questões num cenário de contínuo crescimento e urbanização. Para entender a complexidade das comunidades urbanas, será preciso duas coisas: muito trabalho de campo etnográfico e muita análise comparativa em larga escala. É o que tenho tentado fazer.