Maria Ribeiro
As mentiras que as mães contam por amor
‘Vai demorar muito, mãe?’. Era início de 2020, ou seja, ontem – e, ao mesmo tempo, século passado – quando meu caçula veio com a pergunta de um milhão de dólares
Ele tinha acabado de fazer 10 anos quando o mundo trocou de skin. Assim como no seu jogo de videogame favorito, o Fortnite, onde cada batalha pedia um look diferente pros seus combatentes, os personagens aqui também ganhariam roupa nova – apesar do acessório comum e obrigatório, a máscara cirúrgica. Todos, a partir daquele mês de março, usariam no rosto um pedaço de papel pra proteger nariz e boca. E, além disso, passariam a andar, alertas e precavidos, com um spray de álcool a tiracolo – pronto pra ser acionado ao menor sinal de
perigo. Chupa, Playstation.
Ok, não era um figurino exatamente fashionista, mas é aí que entra o talento de cada um: um cinto de tachas e um cabelo pro lado sempre podem transformar qualquer visual pandêmico em tendência pret-a-porter. Moda é, acima de tudo, um jeito de bancar a existência. Mas não a do Bento. “Vai demorar muito, mãe?”. Era início de 2020, ou seja, ontem – e, ao mesmo tempo, século passado – quando meu caçula veio com a pergunta de um milhão de dólares. “Quantos dias?”. Que saudade de quando ele perguntava coisas simples, como: “Deus existe com certeza, mãe?”, ou “Por que você e o meu pai não querem mais ser namorados?”. Um dia ainda investigo a fé que os filhos depositam nas respostas de suas mães. Então, filho, acho que vai demorar mais ou menos um mês. “Acha?”. “Mais ou menos?”. A angústia ficando mais concreta que o sabre vermelho do Darth Vader. “Dois meses, no máximo, Bento”. “Promete?”. “Prometo”.
Em seis meses, quando tiver 12 anos completos, meu pequeno Luke Skywalker já poderá receber o imunizante contra o vírus que roubou o final da sua meninice
Eu teria dito dois dias se fosse preciso. Duas horas. Dois minutos. Mas já são quase dois anos. Nesse tempo, Bento deixou de ser criança, e passou a ser, nas palavras dele, oficialmente um pré pré-adolescente. Em seis meses, quando tiver 12 anos completos – e só um pré, ao invés de dois, segundo sua classificação – meu pequeno Luke Skywalker já poderá, assim como seus pais e seu irmão, receber o imunizante contra o vírus que roubou o final da sua meninice. Não resolve tudo, mas já é alguma coisa.
Porque, sim, ele sofrerá de amor (e com sorte eu não saberei o endereço de garota tão tola). E também terá decepções com amigos; e aprenderá a se despedir dos seus avós, dos seus bichos, e até de quem não tem idade pra morrer; verá que a vida é totalmente sem garantias; descobrirá que nem sempre os mais velhos têm as palavras certas e, pior, que sua mãe às vezes mente, ainda que seja pra proteger seu filho. “Dois meses, no máximo”.
Foram dezessete até agora e, durante todo esse tempo, enquanto eu via a sua infância indo embora, uma avenida se abria pra ver surgir um cara legal. Um cara com quem há um ano e meio divido séries e pensamentos e faço planos bonitos pra quando a vida voltar a ser como era.
Quer dizer, como era não vai mais ser.
Nem a dele, nem a minha, nem a sua.
Mas estamos aqui. Com um pé em Harry Potter e outro no Brasil, entre o skate da Rayssa e a conta do isolamento, aproveitando os derradeiros instantes de uma parceria meio acidental, mas que vai nos acompanhar pra sempre, a despeito das mentiras que contei por amor.
“Dois meses, filho. Prometo”.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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