Modos de ocupar
Como artistas têm reinventado os vínculos com o espaço público para respeitar as restrições da pandemia
Quando, em março, as ruas começaram a se esvaziar no Brasil, as janelas ficaram cheias. Projetaços em edifícios e intervenções sonoras se espalharam pelas cidades, transformando o espaço público em uma performance coletiva e anônima, como descreveu a artista e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman na série “Coronavida”, publicada na revista seLecT, e agora reunida em um livro, disponível no site da Escola da Cidade. “As insatisfações subiram, na forma de imagens, literalmente pelas paredes, e a empena foi convertida na nova ágora dos tempos da coronavida”, escreve.
No sétimo mês de novo normal, em uma dinâmica de distanciamento mais afrouxada, mas ainda essencial para frear o contágio, os encontros e a ocupação urbana passam por outra etapa de reinvenções. “Nós somos animais sociais, e a rua é o lugar de confronto, do imprevisível, da perda de referência. Tudo isso é constitutivo da experiência urbana como uma experiência de negociação coletiva e permanente. Daí ocupar as ruas de alguma forma durante a pandemia é essencial”, afirma Giselle a Gama.
Neste segundo semestre, dois projetos que pautam reflexos políticos, sociais e sanitários da pandemia do novo coronavírus resgatam usos do espaço público — sem povoá-lo de pessoas, mas de obras. “O Real Resiste”, uma intervenção urbana que reúne 30 artistas no Rio de Janeiro, exibe lambe-lambes espalhados por todas as regiões da cidade.
O nome é emprestado da canção de Arnaldo Antunes, que participa do projeto com um cartaz em que exibe a pergunta “E quem nos protege da polícia?”. O projeto foi idealizado pelo galerista Maneco Muller, da carioca Mul.ti.plo Espaço Arte, em parceria com a arquiteta Manuella Muller. A dupla queria ocupar a rua, fazer provocações sobre a cidade e afirmar a importância da diferença: foram convocados artistas capazes de formar uma multiplicidade de identidades e a distribuição das obras se deu de maneira pulverizada.
O diretor de fotografia Walter Carvalho, um dos representantes de uma geração de artistas já consagrados, traz a imagem de uma cabeça de boi por onde se ligam as partes fragmentadas de seu corpo, com a legenda “Rio de Janeiro, 2020”. No projeto estão também artistas mais jovens, do coletivo Favelagrafia, de fotógrafos de nove favelas cariocas. Entre eles, Anderson Valentim, que aborda violência e racismo em uma interveção que utiliza retratos do bailarino Elton Sacramento; e a ativista e fotógrafa Josiane Santana, que traz em seu lambe-lambe uma foto da poeta e rapper do Complexo do Alemão Sabrina Martina.
“Estamos em um momento péssimo para a humanidade, em que está posta a impossibilidade do vôo, do sonho”, diz Maneco Muller a Gama. “A obra que vai para a rua se firma como um contraponto desse momento de horrores, silêncio e mortes. Não de uma maneira moralista, nem como panfleto, mas como manifestação da necessidade que temos de nos transformar. Já que existe o distanciamento social, já que respeitamos a ciência, que a arte vá para as ruas como sinal de vida e de existência poética.”
Na mesma lógica de distribuição hiperfragmentada no espaço público, a mostra “No Calor da Hora” experimenta e desafia os limites do que se considera uma exposição de arte. A exibição acontece em 27 outdoors, cada um em uma capital brasileira, rememorando o legado de práticas no espaço urbano de artistas como Hélio Oiticica, para quem “o museu é o mundo”, e Paulo Bruscky, autor do projeto “Artdoor”, nos anos 1980, e um dos participantes da mostra.
Dividida em ciclos, “No Calor da Hora” já exibiu em Goiânia o outdoor do diretor Karim Ainouz em homenagem ao líder indígena Aritana Yawalapiti, morto em abril por complicações da Covid-19, e obras de outros 19 artistas. Desde 28 de setembro, estão em exibição trabalhos de Anna Maria Maiolino, que se inspirou na filósofa alemã Hannah Arendt e sua definição de banalidade do mal; Mauro Restiffe, com um outdoor sobre a solidão, as relações afetivas e o tempo suspenso da pandemia; e Denilson Baniwa, que fala sobre a presença indígena em grandes centros urbanos, entre outros.
A exposição faz parte do projeto MAPA (Modos de Ação de Propagar Arte), da agência VIVA Projects, e tem curadoria de Patricia Wagner. “Havia um desejo de romper os limites do espaço institucional, de paradigmas da arte moderna que ainda não foram totalmente quebrados”, diz a curadora. Ela conta que o projeto havia sido previsto acontecer em São Paulo, e com a pandemia foi repensado. “Os reflexos desse contexto foram percebidos em uma escala geográfica, no país todo. Não tinha mais sentido fazer uma exposição que fosse só em São Paulo”, acrescenta.
O espaço ocupado tradicionalmente pela publicidade surgiu como suporte capaz de dar capilaridade ao projeto e trazer os trabalhos ao embate direto com um público ilimitado e não especializado. “Queríamos provocar deslocamentos entre os locais habituais de fala e de exibição dos artistas, que são de diversas regiões do Brasil e têm atuações em áreas diferentes da cultura visual”, diz.
“Ocupe, se vire”
As intervenções artísticas nas cidades e na mídia brasileiras têm uma ligação com momentos históricos e políticos de constrangimento da liberdade de expressão e da atividade crítica dos artistas. Surgem como uma resposta nas ruas, nos anúncios publicitários, na mídia digital. É o que conta a crítica, curadora e pesquisadora Ana Maria Maia, autora de “Arte-Veículo: Intervenções na Mídia de Massa Brasileira”, pesquisa em que mapeia artistas que usaram suportes como os jornais, o espaço publicitário e a televisão para disseminar seus trabalhos.
“Gosto da metáfora de um parasita diante de um hospedeiro: os meios de comunicação como um ambiente em que os artistas tomam carona para distribuir sua mensagem, seu olhar singular sobre o mundo, para muito mais gente do que fariam se estivessem em museus, galerias, em situações mais programadas e especializadas para a circulação de arte”, diz Ana.
A pesquisadora relembra trabalhos de intervenção em outdoors em capitais brasileiras no contexto de reabertura política e econômica, na virada para os anos 1980. Na região central de São Paulo, o coletivo Manga Rosa ocupou um outdoor e convidou outros artistas e coletivos para se expressarem pela mídia urbana. O projeto inaugural era baseado em um poema de Torquato Neto e exibia os dizeres: “Primeiro passo, conquistar espaços. Tem espaço à bessa [sic]. Ocupe, se vire”. “Era uma provocação para que artistas e pessoas comuns ocupassem aquele contexto que por décadas foi fechado, opressor, perseguiu individualidades críticas e naquele momento estava se abrindo”, diz Ana, que também rememora as intervenções feitas pela dupla de artistas Paulo Bruscky e Daniel Santiago em capitais do Nordeste, como Recife e João Pessoa, também no período da reabertura.
Dessa memória se estabelece uma relação com os projetos atuais de ocupação do espaço público nas cidades e na comunicação de massa por lambe-lambes, outdoors e outras manifestações. “Estamos vivendo um momento de crise institucional, econômica, política. O mal estar social, o contexto opressor e adverso convoca os artistas a comentar menos o circuito da arte e mais a sociedade”, explica Ana, que acrescenta uma oposição ao paralelo: “Na virada para os anos 1980, tratava-se de uma abertura. Aqui falamos de um fechamento, de um momento de redução de direitos, de redução de perspectiva crítica e da possibilidade de expressão dos indivíduos na cidade”.
A opção por agir no espaço público ou por suporte midiático, segundo a pesquisadora, está relacionada a um contexto de desencorajamento da prática artística. “Momentos de desmonte institucional, e naturalmente como um reflexo direto nas instituições de arte, instiga grupos políticos e artistas a se posicionarem, tanto num intuito de denúncia e resistência, como numa ação estratégica, numa busca de inventar outros modos de existir e se pronunciar enquanto a infraestrutura para a arte está enfraquecida”, acrescenta.
Tanto “No Calor da Hora” como “O Real Resiste” têm sua cauda na internet, para que as ações possam ser acessadas também por quem está fora das capitais ou segue cumprindo as recomendações de distanciamento social. Mas apostam primordialmente no jeito de levar a arte fisicamente à cidade. “Essas ações são gestos incontestáveis da nossa demanda por estar nos espaços de imprevisibilidade das ruas, de lidar com o imponderável da vida social”, analisa Giselle Beiguelman. “O grande legado do gesto de ocupar — mesmo sabendo que isso só será visível pela internet para a maioria das pessoas — é o legado da consciência de que o homem é um ser político, e que o mundo organizado a partir do home office é a perda de um dos horizontes mais ricos da experiência humana, que é a cidade”.
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