Uma turma de Marceneiros — Gama Revista

Nó na madeira

Eles valorizam técnicas tradicionais, matéria-prima sustentável, produção artesanal e inspiram novos criadores

Gabriel Monteiro 16 de Maio de 2020

Embora seja uma prática milenar, a marcenaria vive um momento especial hoje. Um novo interesse pelo design em madeira fez com que a assinatura de criadores passasse a ser mais valorizada e que surgisse uma cena de apaixonados pelo trabalho, seja como ofício ou como hobby (sim, há os que querem dominar a técnica apenas para projetar e produzir a própria cadeira, mesa ou aparador).

Uma explicação para o fenômeno é que a marcenaria responde a um certo cansaço gerado pela fabricação em larga escala. Ao recuperar o objeto feito manualmente com materiais orgânicos e duráveis, ela dá um alívio para quem não quer mais bens artificiais ou datados. E há uma turma cujos princípios e produção se encaixam perfeitamente nesse espírito do tempo. Abaixo, conheça a cena de alguns dos marceneiros mais afinados com os desejos contemporâneos.

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    © instagram.com/morito.ebine

    Morito Ebine

    Radicado no Brasil, esse japonês usa técnica impecável para recuperar o compromisso com o tempo

    Os móveis de Morito Ebine são celebrados internacionalmente. Suas peças são expostas em museus e seu ateliê foi ranqueado pela revista britânica “Monocle” como um dos 25 estúdios de design mais importantes do mundo. Ainda assim, a modéstia não o deixa: “Mesmo que eu esteja há 30 anos nisso, sigo aprendendo”.

    Foi em sua cidade natal Yaita, ao norte de Tóquio, no Japão, que o filho de alfaiates decidiu seguir na produção artesanal com uma leve mudança em relação aos pais: em vez da costura, a carpintaria. “Sempre achei incrível como os templos japoneses feitos com árvores centenárias conseguem resistir por anos”, afirma.

    Apesar da forte relação com a madeira, o Japão viu essa tradição diminuir no final dos anos 1980, com um novo boom da industrialização e da tecnologia no país. Na contramão, Ebine entrou para o curso de marcenaria da Faculdade de Kanagawa, mas acredita que sua real formação aconteceu no tempo em que trabalhou na Oak Village. A empresa, especialista na técnica milenar de encaixe, não usa nenhum outro componente a não ser a própria madeira na fabricação de móveis. “Comecei de um jeito muito técnico, mas agora minha relação com a madeira pode ser vista como paixão.”

    Em 1995, após casar-se com uma brasileira, Morito mudou-se para o Brasil e hoje mantém seu ateliê em Santo Antônio do Pinhal. Aqui, deixou de lado o carvalho japonês para estudar espécies como o jatobá, o cumaru e o freijó. A qualidade da madeira é o principal fator para alcançar seu objetivo, a durabilidade das peças – o tempo é o fio condutor de sua obra. “Se uma árvore demora mais de cem anos para crescer, um móvel desta árvore deve durar mais de cem anos também”, ele repete como um mantra, que repassa a seus alunos.

    Desenho e execução integrados são os outros fundamentos para a longevidade de um móvel, segundo Morito. O cuidado com os dois quesitos é tão grande, que um novo projeto seu chega a demorar de dois a dez anos para sair do papel, com incontáveis versões de um protótipo. “Você pode fazer um móvel de ótimo encaixe, mas com um design descartável. E também fazer um móvel de desenho atemporal, mas que entorte em pouco tempo, porque não foi bem trabalhado.”

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    © instagram.com/marcenaria_quiari

    Marcelo Zocchio

    Sob o lema ‘somente o necessário’, o fotógrafo e ex-engenheiro faz de produtos utilitários a objetos de arte

    Apesar da formação de engenheiro civil, foi como fotojornalista que Marcelo Zocchio deu início a sua carreira. Para ser mais específico, durante os anos 1980, quando trabalhou para jornais como “O Estado de S. Paulo” e “Folha de S.Paulo”. No final daquela década, decidiu explorar uma linguagem mais pessoal. Foi a Nova York, onde teve aulas no International Center of Photography, e de volta ao Brasil deu início a uma produção mais artística, atingindo reputação nacional graças a seu olhar para a cidade.

    Mas a imagem que criava não se acomodava em suportes comuns. “Sempre gostei de fazer as coisas com as mãos”, conta. Passou a coletar madeira na rua, primeiro apenas para estocar, depois para fazer molduras ou integrar as obras até que os pedaços viraram bancos, luminárias. “A madeira é generosa, não pede muito equipamento para construir coisas”, afirma e emenda que precisa de poucas (mas boas) técnicas para fazer tudo o que deseja.

    Em seus projetos, as referências até passam pelas artes plásticas, como o trabalho do modernista italiano Enzo Mari, que também trabalhou com madeira. Mas a produção, ele explica, é feita com intuição e com o lema “somente o necessário” na mente. “Sim, o daquela música do Mogli. Eu uso somente o necessário, o extraordinário é demais.”

    A frase virou o conceito de uma exposição, apresentada por Zocchio no MAC USP, em 2017, e desembocou em projetos como o Truck Toco, uma série de brinquedos feitos com madeira de reaproveitamento que é parte do acervo de colecionadores do MAM. São 117 peças na qual usou a madeira “até o osso”, como ele mesmo explica. “Somente o necessário é o meu estilo de vida. Quando desenvolvo qualquer projeto me pergunto se aquela parte é fundamental. Tudo é feito com parcimônia.”

    Com este conceito de simplicidade, ele criou a Marcenaria Quiari em 2010, que hoje toca como projeto principal. “Para mim, é como resolver um problema. Quero uma mesa durável e esteticamente bonita? Construo como posso e com o que eu tenho. A minha ideia é não derrubar mais nenhuma árvore para fazer um móvel.”

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    © instagram.com/rodrigoquefez

    Rodrigo Silveira

    Para valorizar o recurso natural que usa como matéria-prima, o designer cria móveis com história

    “É engraçado mas as pessoas não costumam perceber que o banco em que elas sentam é uma árvore derrubada”, diz Rodrigo Silveira. “Odeiam quem derruba árvore, mas esquecem que no dia-a-dia sentam, comem, deitam em cima de madeira. O meu trabalho é contar a história desse material, lembrar que precisamos ter respeito ao usá-lo”, afirma sobre o fundamento que segue há 14 anos como marceneiro: dar valor às coisas.

    No atelier que comanda na Barra Funda há seis anos, sua produção é feita com madeira de manejo sustentável, que vem da Amazônia. “É a melhor forma de tirar da floresta, porque é controlada e garante que o dinheiro fique com a comunidade local”, diz. Apaixonado por história, ele pesquisa as primeiras ferramentas nacionais de marcenaria.

    Surfista nas horas vagas, Rodrigo diz que o hobby pouco tem a ver com sua preocupação com a natureza ou com o trabalho. Mas foi depois de viajar para a Austrália em 2004 para pegar onda que o então diretor de arte voltou ao Brasil mais determinado a seguir o ofício da marcenaria. “No começo, desenhava o projeto e mandava o marceneiro fazer, mas a distância entre o que eu imaginava e como o produto ficava era enorme”, conta. Resolveu estudar a produção para tocar os projetos com autoridade.

    Foi então que passou a trabalhar com madeira maciça e também a pensar no desperdício do material. “Vi como o recurso era valioso e como precisaria desenvolver tudo com mais racionalidade.” Na mesma lógica, os projetos deveriam ganhar formas atemporais. “Como designer, não sigo o pantone de 2020 se em 2021 vai existir outro. Procuro linhas retas, não datadas, para um resultado estético que perdure”, afirma ele, para quem Sergio Rodrigues e Carlos Motta são referências.

    De aprendiz virou mestre e passou a dar cursos para turmas de até 12 pessoas. Mas o encantamento com o poder transformador da marcenaria segue: “Ainda acho incrível como uma madeira cheia de farpa pode ser transformada em uma mesa gostosa, para tomar café da manhã com os meus filhos”.

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    © instagram.com/ateliejuliakrantz

    Julia Krantz

    Uma pioneira para quem o trabalho com a madeira tem um poder social e acolhedor

    Uma das primeiras mulheres a ganhar notoriedade trabalhando com o design em madeira no país, Julia Krantz entende a marcenaria sob uma perspectiva social. “Celebrar o trabalho manual no Brasil tem uma dimensão diferente”, afirma a designer. “Em um país de história escravocrata, que sempre dividiu as pessoas entre aqueles que criam e aqueles que fazem, valorizar as duas partes igualmente é de extrema importância.”

    E, de certa maneira, essa valorização da execução remete ao fato de ser mulher. “Quando me dizem que é um trabalho que demanda esforço braçal, eu respondo que não há nada ali que eu não consiga fazer.” Antes raras na marcenaria, as mulheres estão cada vez mais presentes nas oficinas hoje, com uma nova geração mais consciente sobre a presença feminina no ofício. “O trabalho dentro ou fora da oficina independe de gênero.”

    Desde a infância, Julia entende a marcenaria como um elemento de bem-estar. Filha de imigrantes alemães, ela percebia o calor trazido pela madeira no inverno, quando visitava os familiares na Europa. “O frio de lá faz as pessoas se enfiarem em casa e a madeira é parte fundamental do acolhimento”, conta. Quando foi para o curso de arquitetura da FAU, no final dos anos 1990, já entrou sem medo na oficina para criar a sua primeira cadeira. Daquele dia em diante, nunca mais parou de fazer “objetos de ambientes internos pensados para as pessoas”, como ela explica.

    Depois de alguns cursos de especialização, conheceu o marceneiro Piero Caló, com quem aprendeu a técnica de sobrepor laminados de madeira na criação de objetos. “Eu fiquei encantada com a plasticidade, mas ele avisou que era uma loucura aplicar em larga escala.” Loucura ou não, acabou virando sua assinatura.

    Desde 2000, cria esses e outros produtos em uma oficina própria. Além dos móveis-esculturas, produz também objetos de arte e outras experimentações com madeira maciça. A escolha por trabalhar com esta versão mais natural da madeira veio por influência de Morito Ebine, que conheceu em 2006 e de quem virou amiga. Com ele, aprendeu a técnica de encaixe e desenvolveu móveis como a cadeira Weg (caminho em alemão). “Ela simboliza o olhar diferente que eu tive em relação a madeira depois deste encontro.”

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