A vida sob a renda básica universal
Como funciona a renda básica universal, que foi testada na Finlândia e agora é vista mundo afora como resposta econômica emergencial ao Coronavírus
Imagine que todas as pessoas de um país recebessem um valor mínimo em dinheiro, todo mês, independente de condição social ou ocupação – apenas por existir. É o que sugerem tanto o vencedor no Nobel de Economia Angus Deaton quanto os bilionários Pierre Omidyar, fundador do eBay e Elon Musk, CEO da Tesla. Além, claro, uma parte dos políticos.
Mesmo Emanuel Macron, candidato à presidência da França em 2018 taxado como o “preferido dos banqueiros” sugeriu algo similar. Nunca o fez, mesmo eleito, mas o tema ressurgiu com a pandemia: 18 chefes de departamentos franceses exigiram dele uma renda mínima com urgência.
No Reino Unido, 170 parlamentares (de esquerda e direita) encaminharam ao primeiro-ministro, Boris Johnson, uma carta sugerindo a aplicação de uma “renda mínima de urgência” de 180 libras por semana.
E até os Estados Unidos decidiram apostar na ideia, que era o carro-chefe de um candidato de esquerda às eleições desse ano e agora é tida como solução (emergencial) entre democratas e republicanos. O governo propôs a entrega de um cheque a quem precisa. Não é exatamente uma renda universal, mas o paliativo vai a seu encontro.
Com um terço da população mundial em isolamento, o debate ganha força. Juan Pablo Bohoslavsky, especialista da ONU, recomendou que os governos adotassem a renda básica universal como estratégia para combater uma catástrofe econômica e social. Além de ajudar quem não pode trabalhar, ela amenizaria os impactos do lockdown sobre a economia.
Mas o que é, afinal? A Finlândia explica
A renda básica universal faz parte de um debate antigo, que ganha mais força em momentos de crise econômica. Foi assim em 2009, com o crash das bolsas. E está sendo assim agora por causa do coronavírus. O que acaba confundido uma política pública universal de longo prazo e uma ajuda emergencial para uma parcela da população e com prazo de validade.
Enquanto americanos, britânicos e franceses negociam a medida de maneira emergencial, a Finlândia aplicou o conceito na prática, ainda que de forma parcial, a partir de 2017. De janeiro daquele ano à dezembro de 2018, dois mil desempregados receberam o equivalente a R$ 2.360 por mês.
O teste, um dos primeiros na Europa, visava entender se a proposta ajudaria os beneficiados, desempregados, a conseguir uma vaga. Para muitos, foi um fracasso. Após dois anos, não houve melhora significativa na taxa de emprego do grupo.
Já o impacto na felicidade foi imenso. O experimento melhorou a saúde, a autoestima e o otimismo. Alguns conseguiram, com a segurança de uma rede de apoio, abrir um negócio. Outros afirmaram que a renda os tornou mais criativos. O jornalista Tuomas Muraja, por exemplo, disse ter sido entrevistado por cerca de 70 veículos graças ao programa de renda e que sua qualidade de vida e estado psicológico melhoraram.
O programa, porém, foi descontinuado após o segundo ano pelo governo, que optou por outras alternativas de distribuição de renda. O mesmo se deu em diferentes lugares do mundo. Na província Canadense de Ontário um programa semelhante foi iniciado em 2018, mas finalizado em 2019 após a oposição assumir o governo. Nos Países Baixos, Utrecht também foi palco para mais um experimento.
Os programas seguem a mesma linha experimental: uma quantidade limitada de pessoas recebe o benefício por um tempo pré-determinado. Em tempos de coronavírus, o debate volta com tudo, em caráter de urgência.
E no Brasil?
Por aqui, o defensor mais vocal da política é o vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT). Em 2004, quando senador, conseguiu a aprovação da lei que instituía a renda básica da cidadania. Sancionada, a lei não vingou. Outros projetos vão na mesma linha, mas esbarram em questões políticas.
Com a pandemia do coronavírus, o PSOL protocolou um projeto de lei que cria um programa de renda básica para famílias vulneráveis. A medida emergencial foi aprovada pela Câmara e pelo Senado e seguiu para a sanção do presidente Jair Bolsonaro. O “coronavoucher”, como foi apelidado, deverá ser distribuído por meio de bancos públicos.
Com isso, aos trabalhadores informais, pessoas sem assistência social e desempregados em geral receberão um valor de R$ 600 por mês durante a crise. “Espero que essa renda seja mantida após a pandemia, pois o mundo do trabalho está mudando e exige um novo sistema de proteção social”, diz a economista Laura Carvalho, professora da USP.
O timing é oportuno?
“Extremamente oportuno”, diz a economista.“Com a informalidade recorde que já tínhamos e a perda de renda e empregos que a pandemia vai gerar, o esforço tem que ser destinar vultosos recursos para preservar a renda das pessoas. No caso dos informais e autônomos, a renda básica é a solução.”
Para a professora, a renda básica emergencial aprovada pela Câmara é um excelente passo, que abre o debate sobre sua manutenção e expansão no futuro. Ela só não pode ser usada, afirma, para minar a importância dos sistemas universais de acesso a educação e saúde (como o SUS).
“Não se deve pensar a renda básica como substituta do Estado de bem-estar social”, diz. “Não podemos fazer dela um sistema de vouchers em que o trabalhador recebe o cheque para pagar por sua saúde e educação privadas.”
Para Carvalho, a renda mínima universal deve ser “uma rede de proteção em um mundo em que as relações de trabalho estão cada vez mais instáveis”.
Em um mundo onde o trabalho temporário e de meio-período são cada vez mais comuns, fora o prognóstico obscuro da automação do trabalho, que fará com que muitos trabalhadores percam sua fonte de renda para máquinas, a renda básica universal surge como o próximo passo do estado de bem estar social.