Autocuidado e saúde mental: aprenda a identificar e tratar doenças psíquicas — Gama Revista
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Carol Ito

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Reportagem

Qual o limite entre saúde mental e doença psíquica?

Como reconhecer e o que fazer quando a ansiedade, a tristeza ou o medo vão além do esperado em tempos de pandemia e sinalizam quadros mais graves

Cristina Nabuco 08 de Agosto de 2021

Qual o limite entre saúde mental e doença psíquica?

Cristina Nabuco 08 de Agosto de 2021
Carol Ito

Como reconhecer e o que fazer quando a ansiedade, a tristeza ou o medo vão além do esperado em tempos de pandemia e sinalizam quadros mais graves

Um dos assuntos mais comentados durante os Jogos Olímpicos de Tóquio foi a surpreendente decisão da ginasta norte-americana Simone Biles, considerada a melhor do mundo, de deixar a competição por equipes e desistir de quatro finais. A justificativa era que precisava cuidar da saúde mental. No Instagram, ela explicou que apresentava “twisties”, um bloqueio que impede o corpo e a mente de trabalharem em sincronia, produzindo desorientação e perda da referência no ar durante os giros. “Fico um pouco mais nervosa quando pratico a ginástica agora”, disse na ocasião. “Não somos apenas atletas, somos pessoas, afinal de contas, e às vezes é preciso dar um passo atrás.”

Ao falar abertamente sobre seu sofrimento psíquico, a ginasta derrubou a crença de que atletas são super-heróis e colocou o autocuidado no centro da discussão. “Numa sociedade de alto desempenho somos incentivados a transpor nossos limites, mesmo à custa de nossa saúde mental”, diz o psiquiatra e psicanalista Lucas Mendes de Oliveira, de Brasília, pesquisador independente em relações raciais. “A atitude de Simone Biles foi significativa, um exemplo de que respeitar os limites é tão ou mais importante do que os resultados imediatos e se torna ainda mais relevante com a pandemia”.

Especialistas da Organização Mundial da Saúde reunidos em Atenas, na Grécia, nos dias 22 e 23 de julho para o fórum europeu sobre o impacto do coronavírus na saúde mental, descreveram um cenário preocupante. “A pandemia abalou o mundo. Mais de 4 milhões de vidas foram perdidas em todo o planeta, rendas foram destruídas, famílias e comunidades se separaram, empresas quebraram” disse o diretor da agência na Europa, Hans Kluge, durante a abertura do evento. “O estresse causado pelas desigualdades socioeconômicas e pelos efeitos da quarentena, do confinamento, do fechamento de escolas e dos locais de trabalho pode ter consequências enormes.”

O Brasil caiu 12 posições no ranking da felicidade em um ano. Agora ocupa o 41º lugar, com a menor média desde 2005

Alguns reflexos foram percebidos no Relatório da Felicidade Mundial, elaborado pelo Instituto de Pesquisas Gallup em parceria com a ONU a partir de entrevistas realizadas com mais de 350 mil pessoas de 95 países em 2020. A perturbação de vários aspectos da vida, a maior insegurança econômica e outros desafios impostos pela covid-19 provocaram um aumento de emoções como ansiedade e tristeza, mas ao contrário do que se imaginava, o índice de satisfação com a vida dos países em geral permaneceu estável. Já o Brasil caiu 12 posições em comparação ao ano anterior. Agora ocupa o 41º lugar, com a menor média desde 2005, quando este ranking começou a ser produzido.

Resultado semelhante foi achado em um estudo da Faculdade Getúlio Vargas divulgado em junho de 2021: houve queda na renda média do brasileiro e piora do bem-estar social entre o primeiro trimestre de 2020 e o mesmo período de 2021. “Juntando todo o estresse da pandemia, o excesso de mortes e um governo ineficiente, o Brasil está mais infeliz e isso vai estourar na saúde mental das pessoas em algum nível”, explica o psiquiatra Maurício Scopel Hoffmann, professor do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

O tamanho do estrago

Várias pesquisas têm rastreado a incidência de sintomas psíquicos decorrentes da crise sanitária entre os brasileiros. Uma delas, conduzida na UFSM entre abril de 2020 e fevereiro de 2021, foi realizada online com mais de 6 mil pessoas – universitários, profissionais da saúde e trabalhadores – em quatro etapas. Na primeira coleta, 65% declararam que a saúde mental piorou desde que a pandemia do coronavírus revirou a vida pelo avesso e impôs o distanciamento social. Mas nas etapas seguintes, esse índice caiu. Vale destacar que esta pesquisa não abrangeu o mês de março de 2021, quando as UTIs ficaram lotadas e o sistema de saúde esteve à beira do colapso. De acordo com Hoffmann, que participou da investigação, observou-se um pico de sintomas de ansiedade (como preocupação excessiva) e depressivos (tristeza, choro fácil) nos meses iniciais. Passado o susto, a tendência foi de queda. Houve também maior incidência de estresse pós-traumático, que se manteve elevada diante do aumento do número de pessoas infectadas ou que perderam alguém próximo para a covid-19.

Independentemente do contexto, o estresse serve de estímulo para a ansiedade e o humor depressivo

“No início da pandemia, devido à apreensão diante do desconhecido, a ansiedade era o sintoma mais expressivo; já em março deste ano, com o colapso do sistema de saúde e aumento do número de mortes, os sintomas depressivos se destacaram”, conta a psiquiatra Carolina Blaya Dreher, professora do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e uma das coordenadoras do TelePSI, iniciativa financiada pelo Ministério da Saúde de psicoterapia online para profissionais da saúde que atuam no SUS. O projeto, que desde maio de 2020 atendeu mais de mil pessoas do Brasil inteiro, deve ser encerrado em dezembro de 2021. Segundo a especialista, o impacto da covid-19 tem variado conforme a faixa etária e o grupo social. Profissionais de saúde enfrentaram sobrecarga nos períodos mais críticos. O fechamento das escolas e o acúmulo de afazeres deixou as mulheres exaustas. Por conta do distanciamento, os jovens e adolescentes foram privados de interação social e os idosos ficaram mais expostos à solidão.

Carol Ito

“Independentemente do contexto, o estresse serve de estímulo para a ansiedade e o humor depressivo. As pessoas tendem a ficar mais medrosas e preocupadas ou tristes e desesperançosas”, diz o psicólogo Thiago Viola, professor da Escola de Medicina da PUC do Rio Grande do Sul e pesquisador do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul. Imagine, então, quando tantos estressores passam a afetar muita gente ao mesmo tempo. “Estar um pouco triste, ansioso, com medo e até com raiva, de certo modo, é natural. Mas a tendência, na maioria das vezes, é ir perdendo o medo, a não ser que seja retroalimentado”. Os mais vulneráveis a desenvolver um transtorno mental pela exposição aos estressores da pandemia são os que possuem predisposição genética para distúrbios mentais, antecedente de transtorno ou de abuso de álcool (o confinamento aumenta o risco de recaída), dificuldade de acesso ao tratamento, baixa renda (perda de emprego, fome), e que tem sensação de solidão e de desamparo por parte das instituições.

Os limites para suportar a pressão são individuais. Cada um tem os seus. Saber reconhecê-los é um grande fator de proteção

Deste modo, o aumento na incidência de sintomas psíquicos não significa que o diagnóstico de doenças mentais está crescendo ou ainda vai crescer na mesma proporção. A questão-chave para diferenciar o normal do patológico é saber se o “copo” de cada um aguenta esse volume extra ou pode começar a transbordar, pondera Oliveira. “Os limites para suportar a pressão são individuais. Cada um tem os seus. Saber reconhecer os próprios limites é um grande fator de proteção”.

Diferenças fundamentais

O medo é uma reação emocional e fisiológica frente a uma ameaça real. Desde a Pré-História aciona a resposta de luta ou fuga necessária para a humanidade sobreviver aos perigos. Já a ansiedade é uma reação frente a uma expectativa de ameaça. O que diferencia a normal da excessiva é o grau de sofrimento e o prejuízo ocasionado, informa o psicólogo Christian Kristensen, professor de pós-graduação em Psicologia da PUC do Rio Grande do Sul e participante do TelePSI. “Uma coisa é ter que se expor a uma aglomeração, situação de risco de contágio, sem estar vacinado. Outra, bem diferente é estar isolado em casa, mas tenso e excessivamente preocupado a ponto de não conseguir trabalhar ou ter dificuldade para dormir.”

A tristeza é uma emoção normal, que serve para inibir comportamentos que deram errado. Já a tristeza persistente pode sinalizar depressão

Da mesma forma, a tristeza é uma emoção normal. “Serve para inibir comportamentos que deram errado e revisar a estratégia adotada”, explica o psicólogo. Já a tristeza persistente pode sinalizar depressão, sobretudo quando vem acompanhada de falta de motivação, sensação de cansaço, perda de interesse por atividades que antes traziam prazer, queda na autoestima e sentimento de desvalia. Hoffmann acrescenta à lista a ideação suicida, pensamento constante de que a morte é solução, o que eleva o risco de suicídio. A previsão era que, por volta de 2030, a depressão se tornaria mais frequente e incapacitante do que as doenças cardiovasculares, principal causa de morte no Ocidente, mas a pandemia pode antecipar essa realidade.

Outro quadro prevalente, o estresse pós-traumático surge depois de vivenciar um evento que ameaçou sua integridade física ou mental ou presenciar tragédias, como os profissionais da linha de frente contra a covid vendo muita gente morrer. “Eles têm flashbacks, revivem a cena traumática; a imagem do ataque ou da pessoa morrendo não sai da sua cabeça”, descreve Hoffmann. A síndrome pode ter se instalado quando alguém passa mais de um mês às voltas com esses tormentos.

Christian Kristensen observa, ainda, aumento nos casos de esgotamento emocional, que pode ser componente da Síndrome de Burnout, distúrbio psíquico causado por exaustão extrema relacionada ao trabalho. “Com o home office perdeu-se a nitidez das barreiras entre a vida profissional e pessoal. Não havia horário-limite para reuniões, contatos, solicitação de tarefas. As pessoas tiveram que adaptar sua rotina de trabalho às demandas dos filhos, aos afazeres domésticos e reservar espaço para o lazer”, analisa Oliveira.

Fora isso, é preciso considerar as mais de 550 mil mortes no país: para cada perda há um cônjuge, familiar ou amigo sofrendo imensamente. Kristensen lembra que o coronavírus traz complicadores para o luto: a evolução rápida da doença, o isolamento dos pacientes, as restrições para os rituais de despedida, o distanciamento e a falta de apoio social. “Levar o familiar para a emergência e nunca mais vê-lo desperta uma profunda tristeza por não poder se despedir”, diz o psicólogo. “Estudos sugerem crescimento nos casos de transtorno do luto prolongado, uma reação emocional à perda que se estende por mais de seis meses e se caracteriza por pesar persistente, preocupação intensa com o falecido ou as circunstâncias em que a morte ocorreu, trazendo prejuízo na interação com a família, os amigos e no trabalho.”

Sinais de alerta

Três pistas podem indicar a presença de um transtorno mental e devem soar como alerta, explica Oliveira: mudanças no padrão de sono, de alimentação ou na libido. Passar a sofrer de insônia, pesadelos, despertares noturnos, sonolência excessiva; perder o apetite ou extrapolar na comida; ter diminuição ou aumento exagerado do desejo. Outro sinal apontado pelo psiquiatra é apresentar emoções mais intensas do que o habitual. “A mesma discussão do almoço que deixava a pessoa irritada agora aborrece três vezes mais. O filme que a entristecia agora provoca uma fossa tremenda.”

Mudanças no padrão de sono, de alimentação ou na libido devem soar como alerta. Emoções mais intensas também

“O que vai fazer a diferença é a intensidade, a duração do sofrimento (mais de duas semanas) e a interferência na vida da pessoa”, esclarece Carolina Dreher. Tudo bem passar uma semana irritado, na seguinte estar com o humor normal. Ficar todo esse tempo de mal com o mundo requer atenção. A ocorrência de prejuízo em alguma esfera da vida (não precisa ser em todas) é outro ponto decisivo: “A pessoa não se concentra mais no trabalho, não consegue se organizar, não tem motivação para sair da cama, perde o interesse pelos relacionamentos”, exemplifica Viola.

É preciso vencer o estigma de que sintoma psíquico é sinal de fraqueza moral

Ao identificar um sinal de alerta em si próprio ou em pessoa próxima, recomenda-se uma avaliação médica. Procure uma unidade de atenção básica, um serviço de telemedicina ou um profissional de saúde mental. Nem todo quadro requer medicação. Depende da gravidade. “Às vezes a psicoterapia é suficiente para ajudar o paciente a reorganizar a vida”, afirma Oliveira. O principal é vencer o estigma de que sintoma psíquico é sinal de fraqueza moral. “Algumas pessoas se colocam regras duras e fazem cobranças obsessivas: eu tinha que estar melhor. Não dá para ignorar o sofrimento”, salienta Hoffmann. “Os sentimentos negativos podem levar à ruína”. Não vale a pena ir além do que sua máquina aguenta, assegura o psiquiatra. É preciso respeitar seus limites e perceber a hora de dizer não.

Como se proteger

Não espere chegar ao limite para tomar providências benéficas à saúde mental. O projeto Resilieight, idealizado pelo psiquiatra Vitor Calegaro, professor da UFSM, a partir de pesquisas sobre resiliência e do atendimento a sobreviventes do incêndio da Boate Kiss, ensina como se preservar. Eis algumas dicas:

  • 1

    Mantenha um corpo sadio – Bastam 20 minutos diários ou 50 minutos três vezes por semana de exercícios físicos para ativar a produção de mensageiros químicos que favorecem o bom humor. Se desconfiar de depressão, invista na ação antes de esperar a motivação. Chame um amigo para caminhar com você. Melhor ainda se for em áreas verdes. Alimente-se bem.

  • 2

    Cultive relacionamentos saudáveis – Estudo coordenado pela cientista Karmel W. Choi, da Escola de Saúde Pública de Harvard (EUA), publicado em agosto de 2020 no The American Journal of Psiquiatry concluiu que o fator mais consistente para prevenir depressão é ter amigos ou familiares com quem compartilhar os problemas. Embora a interação social tenha sido muito afetada na pandemia, é possível resgatar a rede de apoio por videochamada ou telefone.

  • 3

    Respeite seus ritmos – Tenha horários determinados para o trabalho remoto, o sono, a higiene e as refeições. Nada de ficar acordado até de madrugada, almoçar na frente do computador ou trabalhar de pijama. Não fique à deriva. Procure estruturar sua rotina.

  • 4

    Invista em recursos internos – Olhe para dentro. Desenvolva habilidades que sejam fonte de prazer ou tragam paz, como a meditação. Evite o que estimula a ansiedade, como uso excessivo de redes sociais, sobrecarga de notícias negativas ou consumo abusivo de álcool.

  • 5

    Lembre-se que existe tratamento – E se um distúrbio cruzar seu caminho, saiba que é possível se livrar do sofrimento e recuperar o controle sobre a própria vida por meio de tratamento adequado. Como escreveu a filósofa alemã Hannah Arendt, em 1968, no prefácio de seu livro “Homens em Tempos Sombrios” (Companhia de Bolso): “Mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos de teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra”. Simone Biles é um desses seres humanos iluminados.